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Um general com ideias muito próprias

Stanley McChrystal, o principal comandante do presidente norte-americano Barack Obama no Afeganistão, tomou o controle da guerra com a tática de nunca tirar os olhos do verdadeiro inimigo: os molengas da Casa Branca

Por Michael Hastings Publicado em 26/06/2010, às 12h38

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McChrystal trabalha a bordo de um C-130 entre visitas ao campo de batalha, em março - Mark O'Donald, Oficial de 1ª Classe da Marinha/Otan
McChrystal trabalha a bordo de um C-130 entre visitas ao campo de batalha, em março - Mark O'Donald, Oficial de 1ª Classe da Marinha/Otan

A reportagem abaixo foi publicada na quarta, 23, no site da Rolling Stone EUA, e está na edição impressa da revista, que chega às bancas dos Estados Unidos nesta sexta, 25. Depois da divulgação do texto, o general Stanley McChrystal, então comandante de todas as forças dos Estados Unidos e da Otan no Afeganistão, foi demitido pelo presidente Barack Obama.

"Como foi que conseguiram me obrigar a participar deste jantar?", é a pergunta que não cala na mente do general Stanley McChrystal. É uma quinta-feira à noite de meados de abril, e o comandante de todas as forças dos Estados Unidos e da Otan no Afeganistão está acomodado em uma suíte quatro estrelas do Hotel Westminster, em Paris. Ele está na França para vender sua nova estratégia de guerra para os aliados dos Estados Unidos na Otan - para dar continuidade à ficção, em essência, de que os norte-americanos de fato têm aliados. Desde que McChrystal assumiu seu posto há um ano, a guerra no Afeganistão se tornou propriedade exclusiva dos Estados Unidos. A oposição à guerra já tinha derrubado o governo holandês, forçado a renúncia do presidente da Alemanha e feito com que a Holanda e o Canadá anunciassem a retirada de seus 4,5 mil soldados. McChrystal está em Paris para impedir que os franceses, que perderam mais de 40 soldados no Afeganistão, colocassem sua atuação em dúvida.

"O jantar faz parte do seu cargo, senhor", responde seu chefe de equipe, o coronel Charlie Flynn.

McChrystal dá meia-volta abrupta em sua cadeira.

"Ei, Charlie", ele pergunta, "E isto aqui, faz parte do cargo também?"

McChrystal mostra o dedo médio para ele.

O general se levanta e dá uma olhada na suíte que sua equipe de viagem com dez pessoas transformou em um centro de operações completo. As mesas estão lotadas de laptops resistentes (Toughbooks prateados da Panasonic) e cabos azuis se cruzam por cima do carpete grosso do hotel, acoplados a antenas de satélite para fornecer comunicação criptografada por telefone e e-mail. Vestido com roupas civis que se compram em qualquer loja - gravata azul, camisa e calça de sarja sociais - McChrystal está completamente fora de sua zona de conforto. Paris, como um de seus consultores diz, é a "cidade mais antagonista a McChrystal que se pode imaginar". O general detesta restaurantes refinados, rejeitando qualquer lugar que tenha velas nas mesas como "Gucci" demais. Ele prefere Bud Light Lime (sua cerveja preferida) a Bordeaux, Rick Bobby - A Toda Velocidade (seu filme preferido) a Jean-Luc Godard. Além do mais, em público McChrystal nunca se sentiu confortável: antes de o presidente Obama lhe dar a responsabilidade de cuidar da guerra no Afeganistão, ele passou cinco anos tocando a operação negra mais sigilosa do Pentágono.

"Quais são as últimas notícias do bombardeio em Kandahar?", McChrystal pergunta a Flynn. A cidade foi sacudida por duas enormes explosões de carros-bomba só nas últimas 24 horas, colocando em dúvida as garantias do general de que ele vai conseguir tirá-la das mãos do talibã.

"Temos dois soldados mortos em ação, mas ainda não foi confirmado", diz Flynn.

McChrystal dá uma olhada final na suíte. Aos 55 anos, ele é taciturno e magro, não muito diferente de uma versão mais envelhecida de Christian Bale em O Sobrevivente. Seus olhos cinza-azulados têm a capacidade desconcertante de perfurar os seus quando ele o encara. Se você pisou na bola ou o decepcionou, são capazes de destruir sua alma sem que ele precise erguer a voz.

"Eu preferia que uma sala cheia de gente acabasse comigo a ter que ir a este jantar", McChrystal diz.

Faz uma pausa de um segundo.

"Infelizmente", completa, "ninguém aqui presente seria capaz de fazer isso."

E, com a frase, ele sai porta afora.

"Com quem ele vai jantar?", pergunto a um de seus auxiliares.

"Com um ministro francês qualquer", o auxiliar me informa. "É gay pra caralho."

Na manhã seguinte, McChrystal e sua equipe se reúnem para se preparar para uma palestra que ele vai fazer na École Militaire, uma academia militar francesa. O general se orgulha de ser mais tenaz e mais corajoso do que qualquer outra pessoa, mas tanta ousadia tem um preço: apesar de McChrystal ser o responsável pela guerra há apenas um ano, nesse curto tempo ele conseguiu irritar quase todo mundo que tem algum envolvimento no conflito. No segundo semestre do ano passado, durante a sessão de perguntas e respostas que se seguiu a uma palestra em Londres, McChrystal desprezou a estratégia antiterrorista defendida pelo vice-presidente norte-americano Joe Biden como "de visão restrita", dizendo que só serviria para criar o estado do "Caos-quistão". As observações lhe valeram uma bronca enorme do próprio presidente, que convocou o general para uma reunião particular curta e grossa a bordo do avião presidencial, o Air Force One. A mensagem a McChrystal parecia clara: Cale a boca, porra, e mantenha mais discrição.

A substituição de McChrystal: será que Petraeus é capaz de vencer a guerra?.

Agora, folheando os cartões impressos de sua palestra em Paris, McChrystal fica imaginando em voz alta qual será a pergunta que Biden lhe fará hoje, e como deve responder. "Eu nunca sei o que vai surgir até estar lá, esse é o problema", ele diz. Então, sem conseguir se conter, ele e sua equipe imaginam o general despachando o vice-presidente com uma boa frase feita.

"Você está falando do vice-presidente Biden?", McChrystal diz e dá risada. "Quem é esse aí?"

"Biden?", sugere um dos principais assessores. "Você disse: Bite Me?" [expressão que significa algo como "vá se ferrar"]

Quando Barack Obama entrou no Salão Oval da Casa Branca, ele imediatamente começou a cumprir sua promessa mais importante em relação à política externa: mudar o foco da guerra no Afeganistão para o motivo que levou à invasão norte-americana inicialmenteem primeiro lugar. "Quero que o povo norte-americano compreenda", ele anunciou em março de 2009. "Temos um objetivo claro e fechado: desestabilizar, desmontar e derrotar a Al Qaeda no Paquistão e no Afeganistão." Ele ordenou que mais 21 mil soldados fossem enviados para Cabul, o maior aumento de contingente desde o início da guerra, em 2001. Ele aceitou o conselho do Pentágono e do Comando Maior do Estado e demitiu o general David McKiernan - que na época era o comandante dos Estados Unidos e da Otan no Afeganistão - e o substituiu por um homem que ele não conhecia e a quem só tinha sido apresentado de modo superficial: o general Stanley McChrystal. Foi a primeira vez que um general de alto escalão tinha sido dispensado durante uma guerra em mais de 50 anos, desde que Harry Truman tinha demitido o general Douglas MacArthur no auge da guerra da Coreia.

Apesar de ter votado em Obama, McChrystal e o novo chefe da nação tiveram dificuldade de se conectar desde o início. O primeiro encontro entre o general e o presidente se deu apenas uma semana depois de o militar assumir seu posto, quando Obama se reuniu com uma dúzia de oficiais militares de alto escalão em uma sala do Pentágono conhecida como "o Tanque". De acordo com fontes informadas sobre a reunião, McChrystal achou que Obama parecia "pouco à vontade e intimidado" pela sala cheia de militares condecorados. O primeiro encontro a sós entre os dois se deu no Salão Oval, quatro meses mais tarde, depois que McChrystal recebeu a tarefa no Afeganistão, e não foi muito melhor. "Foi uma operação de dez minutos só para tirarem fotos", diz um dos assessores de McChrystal. "Era óbvio que Obama não sabia nada sobre ele, quem ele era. Ali estava o cara que ia administrar a porra da guerra, mas não parecia muito envolvido. O patrão ficou bem decepcionado."

Desde o início, McChrystal estava determinado a colocar sua marca pessoal no Afeganistão, a usar o lugar como laboratório para uma teoria militar controversa conhecida como "contrainsurgência". COIN, como a teoria é conhecida, é o novo evangelho dos homens condecorados do Pentágono, uma doutrina que tenta combinar a preferência dos militares pela violência de alta tecnologia com as exigências de uma guerra extensa em Estados falidos. A COIN exige que sejam enviados números enormes de soldados de solo não só para destruir o inimigo, mas para viver entre a população civil e lentamente construir, ou construir do zero, outro governo nacional - um processo que até os defensores mais ferrenhos reconhecem que demora anos, se não décadas, para ser completado. A teoria essencialmente modifica a função dos militares, expandindo sua autoridade (e seus recursos) para abranger os lados diplomático e político da guerra: pense nos Boinas Verdes como um Corpo de Paz armado. Em 2006, depois que o general David Petraeus fez um teste "beta" da teoria durante seu "avanço" no Iraque, ela rapidamente conquistou seguidores ferrenhos na forma de teóricos estrategistas, jornalistas, oficiais do exército e representantes do governo civil. Apelidados de "COINdinistas" pela defesa ardorosa, como se a teoria fosse um culto, esse grupo influente passou a achar que a doutrina seria a solução perfeita para o Afeganistão. A única coisa necessária seria um general com carisma e inteligência política suficiente para implementá-la.

Quando McChrystal contou com Obama para reforçar a guerra, ele o fez com o mesmo esquema destemido que usou para perseguir terroristas no Iraque: descobrir como o inimigo opera, ser mais rápido e mais impiedoso do que qualquer outra pessoa e depois tirar todos os trouxas de cena. Depois de chegar ao Afeganistão em junho do ano passado, o general conduziu sua própria revisão de política de atuação, ordenada pelo secretário de Defesa Robert Gates. O relatório, hoje considerado infame, foi vazado para a imprensa, e sua conclusão foi horrenda: se os Estados Unidos não enviassem mais 40 mil soldados - assim aumentando a força presente no Afeganistão em quase 50% - havia o perigo de que "a missão falhasse". A Casa Branca ficou furiosa. Acharam que McChrystal estava tentando achacar Obama, abrindo-o a acusações de fraqueza em relação à segurança nacional, a menos que fizesse o que o general queria. Era Obama contra o Pentágono, e o Pentágono estava determinado a dar um pau no presidente.

No segundo semestre do ano passado, com seu general de mais alta posição pedindo mais soldados, Obama deu início a uma revisão de três meses para reavaliar a estratégia no Afeganistão. "Aquele período foi agonizante", McChrystal me diz em uma de suas diversas longas entrevistas. "Eu estava vendendo uma posição invendável." Para o general, foi um curso-relâmpago sobre a política de Washington D.C. - uma batalha que o lançou contra homens com vasta experiência na capital dos Estados Unidos, como o vice-presidente Biden, que argumentava que uma longa campanha de contrainsurgência no Afeganistão faria com que os norte-americanos mergulhassem em um pântano militar, ao mesmo tempo em que as redes terroristas internacionais não se enfraqueceriam. "Toda a estratégia de COIN é uma fraude martelada na cabeça do povo norte-americano", diz Douglas Macgregor, um coronel aposentado que é um dos principais críticos da contrainsurgência, que estudou na academia militar West Point com McChrystal. "A ideia de que vamos gastar um trilhão de dólares para redefinir a cultura do mundo islâmico é um absurdo disparatado."

Mas, no final, McChrystal obteve quase exatamente aquilo que desejava. No dia 1º de dezembro, em uma palestra em West Point, o presidente expôs todas as razões por que lutar a guerra no Afeganistão é má ideia: é caro, há uma crise econômica; o envolvimento com duração de uma década minaria o poder norte-americano; a Al Qaeda transferiu sua base de operações para o Paquistão. Então, sem nunca usar as palavras "vitória" ou "vencer", Obama anunciou que enviaria mais 30 mil soldados para o Afeganistão - quase o número requisitado por McChrystal. O presidente tinha colocado seu peso, ainda que com hesitação, para apoiar o pessoal da contrainsurgência.

Hoje, enquanto McChrystal se prepara para uma ofensiva no sul do Afeganistão, as perspectivas de qualquer tipo de sucesso parecem ínfimas. Em junho, o número de mortes de norte-americanos passou de mil, e o número de bombas improvisadas tinha dobrado. A ideia de gastar centenas de bilhões de dólares no quinto país mais pobre do mundo não caiu bem junto à população, cuja atitude em relação aos soldados dos Estados Unidos varia de intensamente desconfiada a descaradamente ofensiva. A maior operação militar do ano - uma ofensiva feroz que começou em fevereiro para a retomada da cidade de Marja, no sul do país - continua a se arrastar, levando o próprio McChrystal a se referir a ela como "úlcera aberta". Em junho, o Afeganistão ultrapassou oficialmente o Vietnã como a guerra mais longa da história dos Estados Unidos - e Obama, na surdina, começou a recuar do prazo que tinha estabelecido de retirar os soldados norte-americanos do país em julho do ano que vem. O presidente está atolado em algo ainda mais insano do pântano: uma guerra que se arrasta, na qual ele entrou consciente, apesar de ser exatamente o tipo de projeto gigantesco e estonteante de reconstruir uma nação, envolvendo diversas gerações, de que ele não queria tomar parte, como afirmou de modo explícito.

Até mesmo as pessoas que apóiam McChrystal e sua estratégia de contrainsurgência sabem que qualquer coisa que o general consiga fazer no Afeganistão vai ter mais cara de Vietnã do que de Tempestade no Deserto. "Não vai parecer uma vitória, não vai ter cheiro de vitória, nem vai ter gosto de vitória", diz o major-general Bill Mayville, que ocupa o cargo de chefe de operações para McChrystal. "Isto tudo vai terminar em discussão."

Na noite depois de sua palestra em Paris, McChrystal e sua equipe se dirigem pata o Kitty O'Shea's, um pub irlandês que serve turistas, na esquina do hotel. A esposa dele, Annie, veio até aqui para uma rara visita: desde que a guerra do Iraque começou em 2003, ela tem visto o marido menos de 30 dias por ano. Apesar de ser o aniversário de 33 anos de casamento dos dois, McChrystal convidou seus colaboradores mais próximos para o jantar e alguns drinques no lugar "menos Gucci" que seus funcionários conseguissem encontrar. A esposa dele não se surpreende. "Uma vez, ele me levou a uma [lanchonete de fast-food] Jack in the Box quando eu estava em traje formal", ela diz e dá risada.

A equipe do general é uma coleção de assassinos, espiões, gênios, patriotas, operadores políticos e maníacos de carteirinha escolhidos a dedo. Há um ex-chefe das Forças Especiais Britânicas, dois Fuzileiros Navais, um soldado das Forças Especiais Afegãs, um advogado, dois pilotos de caça e pelo menos duas dúzias de veteranos de combate e especialistas em contrainsurgência. De piada, eles se referem a si mesmos como Team America, nome tirado da paródia de militares sem a menor noção, dos criadores de South Park, e se orgulham de sua atitude de que tudo é possível e de seu desdém pela autoridade. Depois de chegar a Cabul em meados do ano passado, o Team America se empenhou em mudar a cultura da Força Internacional de Auxílio à Segurança, como a missão liderada pela Otan (ou International Security Assistance Force, cuja sigla Isaf virou motivo de chacota entre os soldados dos Estados Unidos, que a associaram a "I Suck at Fighting" - sou péssimo na briga; ou "In Sandals and Flip-Flops" - de sandália e chinelo de dedo). McChrystal proibiu o álcool na base, expulsou o Burger King e outros símbolos do excesso norte-americano, expandiu as orientações matinais para incluir milhares de oficiais e reordenou o centro de comando, transformando-o em um "Situational Awareness Room" - centro de informações que circulam livremente, baseado no modelo do gabinete do prefeito Michael Bloomberg em Nova York. Ele também determinou ritmo enlouquecido para sua equipe: virou lenda por dormir quatro horas por noite, correr 11 quilômetros toda manhã e fazer uma refeição por dia (no mês que eu passei perto do general, só o vi comer uma vez). É como se um tipo de narrativa sobre-humana tivesse sido construída ao redor do general, presente em quase todos os seus perfis na mídia, como se a capacidade de ficar sem dormir e sem comer se traduzisse na possibilidade de um homem vencer uma guerra sozinho.

Quando bate a meia-noite no Kitty O'Shea's, boa parte do Team America está completamente bêbada. Dois oficiais fazem uma dancinha irlandesa misturada com passos de uma dança afegã tradicional de casamento, enquanto os principais assessores de McChrystal se dão os braços e cantam uma musiquinha que eles mesmos inventaram com a língua arrastada. "Afeganistão!", eles urram. "Afeganistão!" Chamam aquilo de sua canção do Afeganistão.

McChrystal afasta-se do círculo e fica observando seus amigos. "Eu morreria por todos estes homens", ele me diz. "E eles morreriam por mim."

Os homens reunidos podem parecer um bando de veteranos de combate espairecendo, mas, na verdade, esse grupo tão unido representa a força mais poderosa no comando da política de ação norte-americana no Afeganistão. Ao mesmo tempo em que McChrystal e seus homens estão indiscutivelmente no comando de todos os aspectos militares da guerra, não existe posição equivalente no lado diplomático ou político. Em vez disso, uma ampla variedade de coadjuvantes administrativos competem entre si pelo portfólio afegão: o embaixador norte-americano Karl Eikenberry, o representante especial para o Afeganistão Richard Holbrooke, o assessor de Segurança Nacional Jim Jones e a secretária de Estado Hillary Clinton, isso sem mencionar os cerca de 40 outros embaixadores da coalizão e uma longa lista de cabeças falantes que tentam se inserir na confusão, de John Kerry a John McCain. Essa incoerência diplomática permitiu efetivamente que a equipe de McChrystal desse as cartas e atrapalhasse as iniciativas de construir um governo estável e com credibilidade no Afeganistão. "Isso ameaça a missão", diz Stephen Biddle, membro de posição sênior do Conselho de Relações Exteriores, que apóia McChrystal. "Os militares não podem sozinhos criar reformas no modo de governar."

Parte do problema é estrutural: o orçamento do Departamento de Defesa ultrapassa US$ 600 bilhões por ano, ao passo que o Departamento de Estado recebe apenas US$ 50 bilhões. Mas parte do problema é pessoal: em particular, a turma de McChrystal gosta de meter o pau em muitas das pessoas de maior confiança de Obama no campo diplomático. Um integrante chama Jim Jones, general de quatro estrelas aposentado e veterano da Guerra Fria, de um "palhaço" que ficou "preso em 1985". Políticos como McCain e Kerry, diz outro integrante, "chegam, fazem uma reunião com Karzai, fazem críticas a ele na coletiva à imprensa no aeroporto e voltam [para os Estados Unidos] para participar dos talk shows de domingo. Sinceramente, não ajuda muito". Hillary Clinton é a única que recebe boa avaliação junto ao círculo próximo de McChrystal. "Hillary deu apoio a Stan durante a avaliação estratégica", diz um assessor. "Ela disse: 'Se Stan quiser, dê a ele o que precisar'."

McChrystal reserva ceticismo especial para Holbrooke, o oficial responsável pela reintegração do talibã. "O patrão diz que ele é igual a um animal ferido", diz um integrante da equipe do general. "Holbrooke vive ouvindo boatos de que vai ser demitido, por isso é perigoso. Ele é um sujeito brilhante, mas ele simplesmente entra, puxa uma alavanca, mexe em qualquer coisa que estiver ao alcance. Mas isto aqui é COIN, não dá para deixar alguém simplesmente entrar e ficar mexendo nas coisas."

A certa altura de sua viagem a Paris, McChrystal confere o BlackBerry. "Ah, não acredito que tem outro e-mail de Holbrooke", ele resmunga. "Eu nem quero abrir." Ele clica na mensagem e lê a saudação em voz alta, depois enfia o BlackBerry de volta no bolso, sem se preocupar em esconder seu aborrecimento.

"Tome cuidado para não ficar com a perna suja", um integrante brinca, referindo-se ao e-mail.

A relação mais fundamental - e que está sob maior pressão - é de longe entre McChrystal e Eikenberry, o embaixador dos Estados Unidos. De acordo com as pessoas próximas aos dois homens, Eikenberry - general de três estrelas aposentado que serviu no Afeganistão em 2002 e 2005 - não suporta o fato de seu ex-subordinado hoje dar as cartas. Ele também está furioso com o fato de que McChrystal, com o apoio dos aliados da Otan, recusou-se a colocar Eikenberry no papel fundamental de vice-rei do Afeganistão, coisa que o transformaria no equivalente diplomático do general. Em vez disso, a função ficou com o embaixador britânico Mark Sedwill - movimento que efetivamente fez aumentar a influência de McChrystal na diplomacia ao abafar um rival poderoso. "Na realidade, essa posição precisa ser preenchida por um norte-americano para ter peso", diz um oficial norte-americano a par das negociações.

A relação ficou ainda mais difícil em janeiro, quando uma mensagem confidencial que Eikenberry escreveu foi vazada para o jornal The New York Times. A mensagem era tão sarcástica quanto presciente. O embaixador ofereceu uma crítica brutal à estratégia de McChrystal, desdenhou do presidente Hamid Karzai como "não sendo um parceiro estratégico adequado" e lançou dúvidas em relação ao plano de contrainsurgência não ser "suficiente" para dar conta da Al Qaeda. "Nós vamos nos envolver mais profundamente aqui, e não vamos ter como nos desvencilhar", Eikenberry avisou, "a não ser que deixemos o país cair mais uma vez na ausência de lei e no caos."

McChrystal e sua turma foram pegos de calça curta pela mensagem. "Eu gosto de Karl, eu o conheço há anos, mas nunca tinham dito nada desse tipo para nós antes", diz McChrystal, completando que se sentiu "traído" pelo vazamento. "Eis aqui um homem que protege o próprio rabo para os livros de história. Agora, se falharmos, ele pode dizer: 'Eu te disse'."

O exemplo mais marcante da usurpação de McChrystal da política diplomática é a maneira como ele trata Karzai. É McChrystal, e não diplomatas como Eikenberry ou Holbrooke, que desfruta da melhor relação com o homem em quem os Estados Unidos confiam para liderar o Afeganistão. A doutrina de contrainsurgência requer governo com credibilidade, e como Karzai não conta com a credibilidade de seu próprio povo, McChrystal se esforçou muito para mudar essa situação. Ao longo dos últimos meses, ele acompanhou o presidente em mais de dez viagens por todo o país, postando-se ao lado dele em encontros políticos, ou shuras, em Kandahar. Em fevereiro, no dia anterior à malfadada ofensiva em Marja, McChrystal chegou a ir de carro até o palácio do presidente para fazer com que ele ficasse do lado daquela que seria a maior operação militar do ano. Um funcionário de Karzai, no entanto, insistiu que o presidente estava dormindo, curando-se de uma gripe e não podia ser perturbado. Depois de várias horas de insistência, McChrystal finalmente conseguiu falar com o assessor do ministro da Defesa do Afeganistão, que convenceu o pessoal de Karzai a acordar o presidente da soneca.

Essa é uma das falhas centrais da estratégia de contrainsurgência de McChrystal: a necessidade de construir um governo com credibilidade coloca os Estados Unidos à mercê de qualquer líder vagabundo a quem o país dê apoio - perigo a respeito do qual Eikenberry fez um alerta explícito em sua mensagem. Até mesmo a turma de McChrystal reconhece, no âmbito particular, que Karzai é um parceiro menos do que ideal. "Ele passou o ano passado todo trancado em seu palácio", lamenta um dos principais assessores do general. Em certas ocasiões, o próprio Karzai minou de maneira ativa o desejo de McChrystal de lhe dar responsabilidades. Durante uma visita recente ao centro médico do exército Walter Reed, Karzai conheceu três soldados norte-americanos que tinham se ferido na província de Uruzgan. "General, eu nem sabia que nós estávamos lutando no Uruzgan!", ele declarou a McChrystal.

Criado no meio militar desde garoto, McChrystal já exibia a mistura de brilhantismo e arrogância que o seguiria durante toda sua carreira. Seu pai lutou na Coreia e no Vietnã e se aposentou como general de duas estrelas, e todos os seus quatro irmãos entraram para as forças armadas. Mudando sempre de uma base para outra, McChrystal encontrava conforto no beisebol, um esporte no qual ele não se esforçava nem um pouco para esconder sua superioridade: nos jogos da liga infantil, ele comemorava a boa jogada com a torcida antes mesmo de rebater a bola.

McChrystal entrou para a academia militar West Point em 1972, quando o exército dos Estados Unidos estava perto de sua maior baixa de todos os tempos em popularidade. Sua turma foi a última a se formar antes de a academia começar a aceitar mulheres. A "Prisão no Hudson", como era conhecida na época, era uma mistura potente de testosterona, arruaça e patriotismo reacionário. Os cadetes repetidamente destruíam o refeitório com guerras de comida, e aniversários eram comemorados com uma tradição chamada "foda de rato", que geralmente consistia em deixar o aniversariante ao relento, na neve ou na lama, coberto de creme de barbear. "Era bem descontrolado", diz o tenente-general David Barno, colega de turma que serviu como o comandante mais alto no Afeganistão de 2003 a 2005. A turma, cheia de "enormes talentos" e "adolescentes com olhos enlouquecidos e uma forte noção de idealismo", nas palavras de Barno, também produziu o general Ray Odierno, a atual comandante das forças norte-americanas no Iraque.

Filho de um general, McChrystal também era chefe do bando de dissidentes no campus - papel dualista que o ensinou a se dar bem em um ambiente rígido, em que era necessário respeitar a hierarquia, ao mesmo tempo em que ele desafiava a autoridade em toda oportunidade que tinha. Ele acumulou mais de cem horas de demérito por beber, cair na balada e insubordinação - recorde que fez seus colegas apelidarem-no de "homem centenário". Um companheiro de turma, que pediu para não ser identificado, lembra-se de ter encontrado McChrystal inconsciente no chuveiro depois de virar uma caixa de cerveja que ele tinha escondido embaixo da pia. Por causar tanta confusão, ele quase foi expulso, e passou horas fazendo marchas forçadas na Área, um pátio pavimentado que era usado para disciplinar cadetes rebeldes. "Eu ia visitá-lo e acabava passando a maior parte do tempo na biblioteca, enquanto Stan estava na Área", lembra Annie, que começou a namorar McChrystal em 1973.

McChrystal acabou em 298º lugar em uma turma de 855 alunos, resultado seriamente fraco para alguém considerado brilhante pela maior parte das pessoas. Seu trabalho mais interessante era extracurricular: como editor responsável da The Pointer, a revista literária de West Point, McChrystal escreveu sete contos que prevêem, de maneira sobrenatural, muitas das questões com que ele depararia em sua carreira. Em uma história, um oficial fictício reclama da dificuldade de treinar soldados estrangeiros para a luta; em outra, um soldado de 19 anos mata um garoto que ele confunde com um terrorista. Em "Brinkman's Note" [recado de Brinkman], peça de ficção de suspense, o narrador sem nome parece tentar impedir um plano para assassinar o presidente. Mas acontece que o próprio narrador é o assassino, e ele consegue se infiltrar na Casa Branca: "O presidente chegou sorrindo. Do bolso direito da capa de chuva que eu carregava, lentamente tirei minha pistola calibre 32. Na falha de Brinkman, eu fui bem-sucedido."

Depois da formatura, o segundo tenente Stanley McChrystal entrou para um exército que estava praticamente quebrado logo depois do Vietnã. "Nós realmente achávamos que seríamos uma geração de um período de paz", ele lembra. "Teve a Guerra do Golfo, mas nem isso pareceu assim tão importante." Assim, McChrystal passou sua carreira perto da ação: ele se matriculou na escola das Forças Especiais e se transformou em comandante de regimento no 3º Batalhão de Patrulheiros em 1986. Era uma posição perigosa, mesmo em tempos de paz - quase duas dúzias de patrulheiros morreram em acidentes de treinamento durante a década de 80. Também era um trajeto de carreira nada ortodoxo: a maior parte dos soldados que desejam subir até a posição de general não entra para os patrulheiros. Ao demonstrar inclinação para transformar sistemas que ele considera antiquados, McChrystal se empenhou em revolucionar o regime de treinamento para os patrulheiros. Ele introduziu uma mistura de artes marciais, exigiu que todos os soldados se qualificassem com óculos de visão noturna no treinamento de tiro e forçou os soldados a construírem sua resistência com marchas semanais carregando mochilas pesadas.

No final da década de 1990s, McChrystal foi sagaz ao aprimorar suas habilidades pessoais: passou um ano na faculdade Kennedy de Governo em Harvard, e depois no conselho de Relações Exteriores, onde foi coautor de um tratado a respeito dos méritos e das desvantagens do intervencionismo do auxílio humanitário. Mas, na medida em que ia subindo na hierarquia, McChrystal confiava nas habilidades que tinha adquirido quando era um moleque causador de encrencas em West Point: sabia exatamente até onde podia ir dentro da hierarquia militar rígida sem ser expulso. Ele descobriu que ser um "fodão" altamente inteligente é algo que pode fazer alguém ir muito longe - principalmente no caos político que se seguiu a 11 de setembro. "Ele sempre foi muito concentrado", diz Annie. "Mesmo quando era um jovem oficial, ele parecia saber exatamente o que desejava fazer. Não acho que sua personalidade tenha mudado em todos esses anos."

De acordo com alguns relatos, a carreira de McChrystal a esta altura já devia ter acabado duas vezes. Como porta-voz do Pentágono durante a invasão do Iraque, o general parecia mais um papagaio da Casa Branca do que um comandante em ascensão com reputação de dizer o que lhe passava pela cabeça. Quando o secretário de Defesa Donald Rumsfeld fez sua observação infeliz de que "essas coisas acontecem" durante os saques em Bagdá, McChrystal o apoiou. Alguns dias depois, ele ecoou a gafe da "missão cumprida" do presidente ao insistir que as principais operações de combate no Iraque tinham chegado ao fim. Mas foi durante sua função seguinte - como supervisor das unidades mais elitistas das forças do exército, incluindo os patrulheiros, os fuzileiros navais e a força delta - que McChrystal participou de um acobertamento que teria destruído a carreira de um homem mais fraco.

Depois que o cabo Pat Tillman, ex-estrela da liga profissional de futebol americano que se tornou patrulheiro, foi morto acidentalmente por sue própria tropa no Afeganistão, em abril de 2004, McChrystal assumiu papel ativo em criar a impressão de que Tillman tinha morrido pelas mãos de guerrilheiros do talibã. Ele assinou uma recomendação falsificada para uma estrela de prata, sugerindo que Tillman tinha sido morto por fogo inimigo (McChrystal posteriormente alegaria não ter lido a recomendação com concentração suficiente - desculpa estranha para um comandante conhecido por sua atenção com precisão a laser). Uma semana depois, McChrystal enviou um memorando às instâncias mais altas de comando, com um alerta específico para que o presidente Bush evitasse mencionar a causa da morte de Tillman. "Se as circunstâncias da morte do cabo Tillman se tornarem públicas", ele escreveu, poderia ser causa de "constrangimento público" para o presidente.

"A narrativa falsa que McChrystal obviamente ajudou a construir diminuía as verdadeiras ações de Pat", Mary, a mãe de Tillman, escreve em seu livro Boots on the Ground by Dusk [algo como "botas no solo ao crepúsculo"]. McChrystal se safou, ela completa, porque era o "menino de ouro" de Rumsfeld e Bush, que adoravam sua disposição para conseguir dar conta das tarefas necessárias, mesmo que isso envolvesse dobrar as regras ou desrespeitar a hierarquia. Nove dias depois da morte de Tillman, McChrystal foi promovido a major-general.

Dois anos depois, em 2006, McChrystal ficou manchado por um escândalo envolvendo violência e tortura de prisioneiros no campo Nama, no Iraque. De acordo com um relatório do grupo de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch, os prisioneiros do campo eram submetidos a uma cartilha de abusos hoje bem conhecida: posições de estresse, serem arrastados nus pela lama. McChrystal não recebeu sanções disciplinares depois do escândalo, apesar de um interrogador presente no campo ter relatado o ter visto inspecionar a prisão várias vezes. Mas a experiência foi tão desconcertante para McChrystal que ele tentou impedir que operações com prisioneiros fossem colocadas sob sua responsabilidade no Afeganistão, por considerá-las um "pântano político", de acordo com um integrante do governo norte-americano. Em maio de 2009, quando McChrystal se preparava para suas audiências de confirmação, sua equipe o preparou para perguntas difíceis a respeito do campo Nama e do abafamento do caso Tillman. Mas os escândalos mal causaram marolas no Congresso, e McChrystal logo estava voltando para Cabul para comandar a guerra no Afeganistão.

A imprensa, de maneira geral, também deixou McChrystal escapar ileso de ambas as acusações. Ao mesmo tempo em que o general Petraeus é um tipo de pau-mandado, um puxa-saco com patente de patrulheiro, McChrystal é um rebelde dos mais durões, um comandante Jedi, como a revista Newsweek o classificou. Ele não se incomodou quando seu filho adolescente chegou em casa com o cabelo azul e um corte moicano. Ele fala o que lhe passa pela cabeça com sinceridade rara para um oficial de alta patente. Ele pede opiniões e parece verdadeiramente interessado nas respostas. Ele coloca relatórios no iPod e escuta livros falados. Carrega consigo um par de nunchucks feitos sob encomenda, gravados com seu nome e quatro estrelas, e seu itinerário com frequência exibe uma citação nova de Bruce Lee ("Não existem limites. Só existem platôs, e você não deve ficar ali, precisa ir além deles."). Ele participou de dúzias de batidas noturnas durante o período que passou no Iraque, fato sem precedentes para um comandante de alto escalão, e apareceu para tomar parte em missões sem avisar, quase sem comitiva. "A porra do pessoal adora Stan McChrystal", diz um oficial britânico a serviço em Cabul. "Você podia estar em um lugar qualquer do Iraque e alguém vinha e se ajoelhava ao seu lado, e um cabo perguntava: 'Quem diabos é este cara?' E o cara era Stan McChrystal, porra."

Também não atrapalhou o fato de McChrystal ter obtido alto sucesso como chefe do Comando de Operações Especiais Conjuntas, as forças de elite que dão conta das operações mais obscuras do governo. Durante a rebelião no Iraque, seu pessoal matou e capturou milhares de rebeldes, inclusive Abu Musab al-Zarqawi, o líder da Al-Qaeda no Iraque. "A organização era uma máquina de matar", diz o major-general Mayville, seu chefe de operações. McChrystal também se mostrava aberto a novas maneiras de matar. Ele mapeava sistematicamente redes de terrorismo, identificava rebeldes específicos e saía em seu encalço - geralmente com a ajuda de aficionados por informática esquisitões que geralmente são desprezados pelos militares. "O patrão arrumava um garoto de 24 anos com piercing no nariz e algum diploma brilhante da porra do MIT e o colocava sentado em um canto com 16 monitores de computador que zumbiam", diz um comandante das Forças Especiais que trabalhou com McChrystal no Iraque e hoje faz parte de sua equipe em Cabul. "Ele dizia: 'Sabe, vocês, com todas essas porras de músculos, não são capazes de achar o almoço sozinhos. Precisam trabalhar junto com esses caras'."

Mesmo em seu novo papel de evangelista-chefe dos Estados Unidos na questão da contrainsurgência, McChrystal detém seus instintos profundamente arraigados de um caçador de terroristas. Para pressionar o talibã, ele aumentou o número de unidades das Forças Especiais no Afeganistão de quatro para 19. "É melhor que você saia hoje à noite e acerte quatro ou cinco alvos", McChrystal diria a um fuzileiro naval com quem cruza nos corredores da base. Depois, completaria: "Mas vou ter que dar uma bronca em você por causa disso amanhã." Na verdade, o general com frequência se pega pedindo desculpas pelas consequências desastrosas da contrainsurgência. Nos primeiros quatro meses deste ano, as forças da Otan mataram cerca de 90 civis, 76% a mais do que no mesmo período em 2009 - um recorde que criou ressentimento tremendo entre a própria população. Em fevereiro, uma batida noturna das Forças Especiais acabou com a morte de duas grávidas afegãs e alegações de abafamento, e em abril, manifestações pipocaram em Kandahar depois que as forças norte-americanas atiraram contra um ônibus e acidentalmente mataram cinco afegãos. "Nós matamos um número incrível de pessoas", McChrystal reconheceu recentemente.

Apesar das tragédias e dos passos em falso, McChrystal determinou algumas das diretrizes mais rígidas para evitar as perdas de civis que o exército dos Estados Unidos já aplicou em uma zona de guerra. É a "matemática da insurreição", como ele chama - para cada pessoa inocente que é morta, criam-se dez novos inimigos. Ele ordenou que comboios prestassem atenção à direção negligente, impôs restrições ao uso das forças aéreas e limitou com severidade as batidas noturnas. Ele pede desculpas frequentes a Hamid Karzai quando civis são mortos, e repreende comandantes responsáveis pela morte de civis. "Durante um tempo", diz um oficial norte-americano, "o lugar mais perigoso para se estar no Afeganistão era na frente de McChrystal depois de um incidente de 'baixa civil'". O comando da Força Internacional de Auxílio à Segurança até discutiu maneiras de transformar o ato de não matar em algo que pudesse se transformar em prêmio: existe a ideia de criar uma nova medalha para "autocontrole corajoso", um bochicho que provavelmente não vai ganhar muita atenção na cultura entusiasmada das forças militares dos Estados Unidos.

Mas, por mais estratégicas que sejam, as novas ordens em marcha de McChrystal tiveram enorme efeito contrário sobre seus próprios soldados. Quando são orientados a não abrir fogo, os soldados reclamam que são expostos a maior perigo. "Em resumo?", diz um ex-operador de alto escalão das Forças Especiais no Afeganistão. "Eu adoraria dar um chute no saco de McChrystal. As regras de combate dele colocam a vida dos soldados em maior perigo ainda. Qualquer soldado de verdade vai dizer a mesma coisa."

Em março, McChrystal viajou ao posto avançado de combate JFM - um pequeno acampamento nos arredores de Kandahar - para confrontar diretamente essas acusações dos soldados. Foi uma ação tipicamente ousada do general. Apenas dois dias antes, ele tinha recebido um e-mail de Israel Arroyo, um sargento de 25 anos que pediu a McChrystal que participasse de uma missão com sua unidade. "Estou escrevendo porque ouvi dizer que o senhor não se preocupa com os soldados e fez com que ficasse mais difícil para nós nos defendermos", Arroyo escreveu.

Em poucas horas, McChrystal respondeu pessoalmente: "Fico entristecido com a acusação de que eu não me preocupo com os soldados, já que, desconfio, isso seja algo que qualquer soldado vai levar para o lado pessoal e profissional - pelo menos eu levo. Mas eu sei que as percepções dependem da perspectiva de cada um no momento, e eu respeito o ponto de vista de cada soldado como sua opinião pessoal". Então ele apareceu no posto avançado de Arroyo e participou de uma patrulha a pé com os soldados - e não foi um passeiozinho de merda em um mercado só para tirar fotos, mas sim uma verdadeira operação em uma zona de guerra perigosa.

Seis semanas depois, pouco antes de McChrystal retornar de Paris, o general recebeu outro e-mail de Arroyo. Um cabo de 23 anos chamado Michael Ingram - um dos soldados que tinha participado da patrulha com McChrystal - tinha sido morto por uma bomba improvisada no dia anterior. Foi o terceiro homem que um pelotão de 25 integrantes perdia em um ano, e Arroyo estava escrevendo para ver se o general participaria da missa em homenagem a Ingram. "Ele passou a admirá-lo", Arroyo escreveu. McChrystal disse que tentaria ir até lá e prestar suas homenagens o mais rápido possível.

Na noite anterior ao dia marcado para a visita do general ao pelotão do sargento Arroyo para a missa, eu chego ao posto avançado de combate JFM para conversar com os soldados com quem ele tinha feito a patrulha. O JFM é um acampamento pequeno, cercado por muros antibomba altos e torres de vigilância. Quase todos os soldados aqui participaram de vários períodos de serviço em combate tanto no Iraque quanto no Afeganistão, e testemunharam algumas das piores lutas em ambas as guerras. Mas eles ficaram particularmente irritados com a morte de Ingram. Seus comandantes tinham pedido permissão várias vezes para destruir a casa em que Ingram foi morto, com a observação de que tinha sido usada com frequência como posição de combate do talibã. Mas, graças às novas restrições de McChrystal para evitar perturbar os civis, o pedido tinha sido negado. "Eram casas abandonadas", o sargento Kennith Hicks se irrita. "Ninguém voltaria para morar lá."

Um soldado me mostra a lista de novas regulamentações que o pelotão recebeu. "Patrulhem apenas áreas em que tenham certeza razoável de que não vão precisar se defender com força letal", diz o cartão plastificado. Para um soldado que viajou meio mundo para lutar, é a mesma coisa que dizer a um policial para patrulhar áreas em que sabe que não precisará fazer nenhuma prisão. "Será que isso faz alguma porra de sentido?", pergunta o soldado de primeira classe Jared Pautsch. "Devíamos simplesmente jogar uma porra de uma bomba neste lugar. A gente fica aqui sem fazer nada e se pergunta: O que estamos fazendo aqui?"

As regras que foram entregues aqui não eram intenção de McChrystal - foram distorcidas na medida em que foram sendo transmitidas aos níveis mais baixos da hierarquia -, mas saber disso não adianta para diminuir a raiva dos soldados em solo. "Caralho, quando eu cheguei aqui e fiquei sabendo que McChrystal estava no comando, achei que íamos sair com as porras das nossas armas nas mãos", diz Hicks, que já serviu em três temporadas de combate. "Eu entendo a COIN. Eu entendo tudo. McChrystal vem aqui, explica, a coisa faz sentido. Mas daí ele vai embora no helicóptero dele, e quando as diretrizes dele chegam até nós por meio Grande Exército, chegam todas fodidas - ou porque alguém está tentando proteger o próprio rabo ou porque simplesmente eles próprios não conseguem entender nada. Mas nós estamos perdendo esta coisa, porra."

McChrystal e sua equipe chegam no dia seguinte. Dentro de uma barraca, o general trava uma conversa de 45 minutos com uma dúzia de soldados. A atmosfera é tensa. "Estou perguntando o que está acontecendo no mundo de vocês, e também acho importante que compreendam o quadro geral", McChrystal começa. "Como está o clima na companhia? Vocês estão com pena de si mesmos? Alguém quer falar alguma coisa? Alguém sente que está perdendo?", McChrystal pergunta.

"Senhor, alguns dos homens aqui, senhor, acham que nós estamos perdendo, senhor", diz Hicks.

McChrystal assente. "Força é liderar quando você simplesmente não quer liderar" ele diz aos homens. "Vocês lideram por meio de exemplo. É isso que nós fazemos. Principalmente quando é muito, muito difícil, e quando dói lá dentro." Daí ele passa 20 minutos falando de contrainsurgência, explanando seus conceitos e princípios em um quadro branco. Ele faz com que a COIN pareça algo sensato, mas toma cuidado para não ficar falando coisas vazias para os homens. "Estamos atolados até os joelhos no ano decisivo", ele diz a eles. O talibã, ele insiste, não tem mais iniciativa - "mas também não acho que nós tenhamos". É parecido com a palestra que ele deu em Paris, mas não está conquistando nenhum coração entre os soldados. "Esta é a parte filosófica que funciona com os estrategistas", McChrystal tenta fazer piada. "Mas não tem a mesma recepção junto às companhias de infantaria."

Durante o período de perguntas e respostas, a frustração vem à tona. Os soldados reclamam por não terem permissão para usar força letal, por verem os rebeldes que prendem serem soltos por falta de provas. Eles querem ter a possibilidade de lutar - como fizeram no Iraque, como faziam no Afeganistão antes de McChrystal. "Não estamos metendo medo no talibã", um soldado diz.

"Conquistar corações e mentes com a COIN é uma atividade que exige sangue frio", diz McChrystal, citando uma máxima repetida com frequência, de que não vai dar para conseguir sair do Afeganistão com uma matança. "Os russos mataram um milhão de afegãos e não deu certo."

"Não estou dizendo para sair por aí matando todo mundo, senhor", o soldado insiste. "O senhor disse que nós detivemos o clímax da rebelião. Não acho que isso seja verdade nesta região. Quanto mais recuamos, quanto mais nos seguramos, mais forte fica."

"Concordo com você", diz McChrystal. "É provável que não tenhamos obtido progresso nesta área. Vocês demonstraram força aqui, vocês precisaram abrir fogo. Estou dizendo que este fogo custa caro para vocês. O que desejam fazer? Dizimar a população aqui e recolonizar?"

Um soldado reclama que, de acordo com as regras, qualquer rebelde que não esteja armado imediatamente é considerado civil. "O jogo é assim", McChrystal diz. "É complexo. Não posso simplesmente resolver: com e sem camisa, e matamos todos que estão de camisa."

Quando a conversa termina, McChrystal parece sentir que ele não conseguiu aplacar a raiva dos homens. Faz uma última tentativa de tocá-los, ao reconhecer a morte do cabo Ingram. "Não vai ter como eu fazer com que pareça mais fácil", ele diz. "Não vai ter como fingir que não vai doer. Não vai ter como dizer para vocês não sentirem (...). Vou dizer que estão fazendo um ótimo trabalho. Não permitam que a frustração os abale." A sessão termina sem palmas, e sem nenhuma resolução verdadeira. McChrystal pode ter conseguido vender a contrainsurgência ao presidente Obama, mas muitos de seus próprios homens não estão comprando a ideia.

Quando o assunto é o Afeganistão, a história não está do lado de McChrystal. O único invasor estrangeiro que obteve algum sucesso aqui foi Gêngis Khan - e ele não contava com empecilhos como direitos humanos, desenvolvimento econômico e críticas da imprensa. A doutrina COIN, estranhamente, tira sua inspiração de alguns dos maiores vexames dos militares ocidentais na memória recente: a guerra terrível da França na Argélia (perdida em 1962) e as desventuras norte-americanas no Vietnã (perdida em 1975). McChrystal, assim como outros defensores da COIN, prontamente reconhece que as campanhas de contrainsurgência são, de modo intrínseco, confusas, caras e fáceis de perder. "Até os afegãos ficam atrapalhados com o Afeganistão", ele diz. Mas até se ele de algum modo conseguir ser bem-sucedido, depois de anos de luta sangrenta com jovens afegãos que não representam nenhum perigo para o território norte-americano, essa guerra não vai contribuir muito para eliminar a Al-Qaeda, que transferiu suas operações para o Paquistão. Despachar 150 mil soldados para construir novas escolas, estradas, mesquitas e instalações de tratamento de água nos arredores de Kandahar é a mesma coisa que tentar acabar com a guerra das drogas no México com a ocupação do estado norte-americano do Arkansas e construir igrejas batistas em Little Rock. "É tudo muito cínico do ponto de vista político", diz Marc Sageman, ex-oficial da CIA que tem ampla experiência na região. "O Afeganistão não é um dos nossos interesses vitais - não há nada para nós lá."

Em meados de maio, duas semanas depois da visita às tropas em Kandahar, McChrystal viaja à Casa Branca para uma visita de alto nível de importância de Hamid Karzai. É um momento de triunfo para o general, que demonstra como ele de fato está no comando - tanto em Cabul quanto em Washington. No salão leste, que está lotado de jornalistas e dignitários, o presidente faz elogios a Karzai. Os dois líderes conversam sobre como a relação entre eles é maravilhosa, sobre a dor que sentem em relação às perdas de civis. Mencionam a palavra "progresso" 16 vezes em menos de uma hora. Mas não há menção de vitória. Ainda assim, a sessão representa o compromisso mais forte que Obama assumiu com a estratégia de McChrystal em meses. "Não dá para negar o progresso que o povo afegão fez nos últimos anos - na educação, na assistência à saúde e no desenvolvimento econômico", diz o presidente norte-americano. "Já que vi luzes por toda Cabul quando pousei - luzes que não seriam visíveis apenas alguns anos antes."

Foi uma observação desconcertante da parte de Obama. Durante os piores anos no Iraque, quando o governo Bush não tinha verdadeiros progressos para apontar, seus representantes costumavam usar exatamente a mesma prova como exemplo de sucesso. "Foi uma das nossas primeiras impressões", disse um representante do Partido Republicano em 2006, depois de pousar em Bagdá no auge da violência sectária. "Tantas luzes brilhando forte." Então, o governo de Obama está recorrendo à linguagem da guerra do Iraque - um papo de progresso, luzes nas cidades, medidas como assistência à saúde e na educação. Uma retórica da qual ele teria desdenhado há apenas alguns anos. "Estão tentando manipular as percepções porque não há definição de vitória - porque a vitória não pode ser nem definida nem reconhecida", diz Celeste Ward, analista de defesa sênior na RAND Corporation, que trabalhou com aconselhamento político aos comandantes norte-americanos no Iraque, em 2006. "Esse é o jogo em que estamos inseridos no momento. Por motivos estratégicos, agora precisamos criar a percepção de que não nos exaurimos. Os fatos concretos não são grande coisa, e não vão melhorar no futuro próximo."

Mas fatos concretos, como a história já comprovou, geralmente não servem para deter um militar determinado a não se desviar de sua rota traçada. Até mesmo as pessoas mais próximas de McChrystal sabem que o crescente sentimento antiguerra em seu país nem começa a refletir o estado de danação profunda da situação no Afeganistão. "Se os norte-americanos recuassem e começassem a prestar atenção a esta guerra, ela ganharia ainda mais reprovação", um assessor sênior de McChrystal diz. Mas esse realismo, no entanto, não impede que defensores da contrainsurgência sonhem alto: em vez de começar a retirar os soldados no ano que vem, como Obama tinha prometido, os militares esperam dar ainda mais gás para sua campanha de contrainsurgência. "Existe a possibilidade de pedirmos mais um reforço nas forças norte-americanas em meados deste ano se detectarmos sucesso aqui", um oficial militar sênior em Cabul me diz.

De volta ao Afeganistão, menos de um mês depois do encontro com Karzai na Casa Branca e todo aquele papo de "progresso", McChrystal é atingido pelo maior golpe contra sua visão da contrainsurgência. Desde o ano passado, o Pentágono tem planos de lançar uma grande operação militar em meados deste ano em Kandahar, a segunda maior cidade do país, e base original do talibã. Supostamente, devia servir para marcar uma virada na guerra - a principal razão para o aumento das tropas que McChrystal arrancou de Obama no ano passado. Mas, no dia 10 de junho, ao reconhecer que os militares precisam executar mais trabalho de base, o general anunciou que vai postergar a ofensiva para o segundo semestre. Em vez de uma grande batalha, como ocorreu em Fallujah ou Ramadi, os solados dos Estados Unidos vão implementar aquilo que McChrystal chama de "onda crescente de segurança". A polícia e o exército do Afeganistão vão entrar em Kandahar para tentar tomar o controle de bairros, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos colocam US$ 90 milhões em auxílio humanitário para conquistar a população civil.

Até mesmo os proponentes da contrainsurgência têm dificuldade de explicar o novo plano. "Esta aqui não é uma operação clássica", diz um oficial do exército dos Estados Unidos. "Não vai ser 'Falcão Negro em Perigo'. Aqui não há nenhuma porta para chutar." Outros representantes dos ESTADOS UNIDOS afirmam que portas serão chutadas, mas que esta será uma ofensiva mais gentil e delicada do que o desastre em Marja. "O talibã tem um coturno na cidade", diz um oficial militar. "Precisamos removê-los, mas temos de fazer isso de maneira que não deixe a população incomodada." Quando o vice- residente foi informado sobre o novo plano no Salão Oval, pessoas próximas disseram que ele ficou chocado de ver como espelhava, em vários aspectos, o plano mais gradual de ações antiterrorismo que ele defendera no segundo semestre do ano passado. "Isto aqui parece antiterrorismo master!", ele teria dito, de acordo com representantes do governo norte-americano a par da reunião.

Seja lá qual for a natureza do novo plano, o atraso ressalta as falhas fundamentais da contrainsurgência. Depois de nove anos de guerra, o talibã simplesmente continua tão fortemente entrincheirado que é impossível para os militares dos Estados Unidos atacarem abertamente. As mesmas pessoas que a COIN pretende conquistar - o povo afegão - não querem os norte-americanos por lá. O suposto aliado dos Estados Unidos, o presidente Karzai, usou sua influência para postergar a ofensiva, e a entrada pesada de auxílio defendido por McChrystal provavelmente só vai servir para piorar a situação. "Jogar dinheiro em cima do problema só serve para acentuar o problema", diz Andrew Wilder, especialista da Universidade de Tufts [Estados Unidos] que estudou o efeito do auxílio no sul do Afeganistão. "Um tsunami de dinheiro alimenta a corrupção, tira a legitimidade do governo e cria um ambiente em que passamos a escolher vencedores e perdedores" - um processo que alimenta o ressentimento e a hostilidade entre a população civil. Até agora, a contrainsurgência só conseguiu criar demanda infinita pelo produto de fornecimento primário dos militares: a guerra perpétua. Existe uma razão pela qual o presidente Obama evita com muito cuidado o uso da palavra "vitória" ao falar sobre o Afeganistão. Parece que vencer na verdade não é algo possível. Nem mesmo com Stanley McChrystal no comando.