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Um mundo com Gilberto Gil é muito melhor

Opinião: em meio à crise política e à democracia, artista relança 'Andar Com Fé' como um ato político e mostra as marcas do tempo - e sem medo

Pedro Antunes, editor-chefe Publicado em 28/06/2020, às 10h00

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Gilberto Fil no clipe de "Andar Com Fé" (Foto: Reprodução / YouTube)
Gilberto Fil no clipe de "Andar Com Fé" (Foto: Reprodução / YouTube)

"Ok, ok, ok", como já cantou Gilberto Gil no disco de mesmo nome, o último dele de inéditas, lançado em 2018. "Já sei que querem a minha opinião". Político até o último fio de cabelo já branco, Gil decidiu aceitar o clamor por um posicionamento. Mas o ano era 2018, veja só, o quanto o mundo já mudou?

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2020 tem sido um teste de fé, sem dúvida. A última pesquisa do Datafolha revela que 75% dos entrevistados prefere a democracia como regime político a ser seguido no Brasil. Absurdo talvez seja pensar a necessidade de uma pesquisa dessas, não? Mais assustador é saber que 10% dos entrevistados dessa mesma pesquisa afirmam que a ditadura pode ser aceitável em algumas situações.

Sim, em pleno 2020. Depois das décadas fantasmagóricas da ditadura militar no Brasil, em meio à crise mundial criada pelo novo coronavírus, diante do levante importantíssimo do movimento Vidas Negras Importam e à beira de um abismo político do qual não se vê o fundo, o País tem o sistema democrático questionado a esse ponto.

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Mas temos Gilberto Gil. Não, ele não quer ser um herói nacional. É, por sua vez, um bastião da liberdade e, principalmente, da fé - qualquer que seja a sua fé, caro leitor.

Assim Gil soltou "Andar com Fé", uma versão daquela lançada em 1982, no álbum Um Banda Um (o mesmo disco de outros clássicos como "Drão" e "Esotérico"). A música, disponível em todas as plataformas, também ganhou uma versão no YouTube (assista abaixo).

No vídeo, publicado como uma celebração ao aniversário de 78 anos de Gil, participam artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Marisa Monte, Alcione, Daniela Mercury, Lenine, Milton Nascimento, Nando Reis, Stevie Wonder, Jorge Ben Jor, Ana Carolina, Emicida entre muitos outros.

Se você não arrepiar com a gravação, melhor verificar se tem um coração pulsando aí.

Permita-me, após assistir ao vídeo acima, voltar à "OK OK OK", música de 2018 escolhida para a abertura desse texto, e à seguinte estrofe:

"Penúria, fúria, clamor, desencanto /
Substantivos duros de roer /
Enquanto os ratos roem o poder /
Os corações da multidão aos prantos /
Alguns sugerem que eu saia no grito /
Outros, que eu me quede quieto e mudo /
E eis que alguém me pede 'encarne o mito' /
'Seja nosso herói, resolva tudo'"

O Gil artista fez dessa canção, em um disco produzido por Bem Gil, um ato político. Um desabafo, também.

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A história do artista se mistura com a política brasileira, obviamente. Gil foi perseguido pela ditadura, buscou asilo político, voltou aclamado, foi até ministro da cultura.

Soava como um desafogo em 2018. Ao resgatar "Andar Com Fé", ele ressurge mais político ainda, como um herói depois de anos de batalha. Crer, hoje, é um ato político.

São 38 anos entre as duas versões, a original e essa (seja da versão só comGil das plataformas de streaming ou a com esse mutirão de artistas no vídeo de YouTube). Nos tempos da original, o Brasil via o enfraquecimento da ditadura, que chegaria ao fim três anos depois. Agora, o contrário se dá: ela passa a ser ventilada mais uma vez.

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Mais importante que Gilberto Gil, neste momento, não há. A voz de Gil (assim como na deliciosa introdução de Chico à capella no vídeo) mostra a ação do tempo. Tempo que age, machuca, enruga, embranquece. Em contrapartida, o tempo também fortalece o discurso.

"Andar com Fé" parece ser uma utopia hoje, mas é algo necessário. O discurso é buscar a fé no calor do verão, no anoitecer. O Gilberto Gil de 1982, assim como o de 2020, não restringe o papo à religião: "Mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar".

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Porque "andar com fé" é um estilo de vida, não necessariamente uma ode à crença por uma divindade específica. É seguir adiante apesar das forças que puxam a gente para baixo, para trás, para o lado.

Forças que podem ser muitas e ter diferentes máscaras, do coronavírus, de quem está no maior cargo do País, do desemprego, do racismo estrutural, do patriarcado, da violência policial. É seguir, apesar disso tudo. De lutar. De brigar contra. Levantar-se todo dia, com fé, é a primeira e mais urgente resposta que se pode dar contra tudo isso.

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Nem sempre é fácil ter fôlego para dar conta da batalha. São muitos os tapas que a vida dá. Escrevo esse texto ciente dos meus muitos privilégios, inclusive.

O que Gilberto Gil faz é nos lembrar das pequenas belezas e nos fazer acreditar em um futuro melhor.

Afinal, "a fé não costuma faiá".