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"Toda aquela música é um testemunho da visão artística de Kurt Cobain", diz Krist Novoselic sobre In Utero

Último disco de estúdio do Nirvana completou 20 anos com lançamento de edição de luxo

David Fricke Publicado em 07/10/2013, às 17h48 - Atualizado às 19h57

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Nirvana - Anton Corbijn/Divulgação
Nirvana - Anton Corbijn/Divulgação

"Tenho ouvido muito Nirvana ultimamente", diz o baixista Krist Novoselic em uma manhã de setembro. Estamos a poucas semanas do lançamento da versão de luxo que comemora o 20º aniversário de In Utero (1993) - último disco de estúdio que Novoselic fez com seu falecido amigo e líder do Nirvana, o cantor e guitarrista Kurt Cobain. Novoselic trabalhou ao lado do baterista Dave Grohl (que agora é frontman do Foo Fighters) no projeto, que inclui a remasterização definitiva do disco original, um novo mix assinado pelo produtor Steve Albini, demos e ensaios.

Dez shows de despedida que gostaríamos de ter visto, como o do Nirvana.

"Tem muita bagagem que vem com isso tudo”, afirma Novoselic a respeito do processo de ouvir o material. "Traz muitas memórias – memórias boas, memórias dolorosas. Mas é música boa – um rock bom.”

Novoselic falou com a Rolling Stone EUA a respeito de In Utero e do último ano de vida de Cobain, antes do cantor cometer suicídio, em abril de 1994. O ambiente da entrevista foi algo bem afastado da loucura do rock: a sala de leitura infantil em uma biblioteca pública em Longview, Washington, a mais ou menos uma hora ao sul de Aberdeen, onde Novoselic e Cobain se conheceram, em 1987, e formaram o que se tornou o Nirvana. Novoselic, agora com 48 anos, é ativo na política do estado e está estudando em uma universidade online para obter o diploma em ciências sociais.

Por dentro do relançamento repleto de raridades de In Utero.

Ele ainda toca baixo, além do acordeão. Recentemente, Novoselic gravou com o ex-guitarrista do R.E.M. Peter Buck, que trabalha em um disco solo. Ele também descreve a emoção que sentiu durante as gravações que fez, ano passado, ao lado de Grohl, o guitarrista Pat Smear – que tocou na turnê de In Utero ao lado do Nirvana – e o ex-Beatle Paul McCartney. Novoselic tem orgulho de ser, conforme ele descreve, “o cara do Nirvana" – uma ligação, para fãs e novatos, para a música e a história que ele fez ao lado da banda e de seus amigos. “É um privilégio.”

Entrevista: Dave Grohl relembra a última vez que falou com Kurt Cobain.

Mas quando questionado a respeito do lado ruim – ele e Grohl são obrigados a carregar o peso e a memória, na ausência de Cobain –, Novoselic responde com firmeza: "Kurt ainda carrega a música. Toda aquela música é um testemunho da visão artística dele. Não somos Dave e eu que estamos carregando a música. É Kurt."

Na capa da edição 83 da Rolling Stone Brasil: In Utero, último disco do Nirvana, nasceu no Brasil.

Você falou sobre como o relacionamento estava difícil dentro da banda no fim de 1992. Chegou a achar que nunca fariam um sucessor de Nevermind?

As coisas não estavam como de costume. Mas tinha uma coisa que gostávamos de fazer – gostávamos de tocar juntos. E era para isso que estávamos ali, de qualquer forma. Éramos uma banda. Gravamos as sessões do Laundry Room [no relançamento de In Utero] com Barrett Jones, na casa dele. A gente nunca teve nosso próprio estúdio para ensaiar, estávamos sempre roubando o tempo de estúdio de alguém. Ensaiamos em Bainbridge Island, Tacoma, Seattle, onde quer que achássemos uma vaga. Barrett tinha um gravador de várias faixas. Se tivéssemos algo assim, teríamos feito muito mais música.

Como as ideias de música entravam nos ensaios?

O Kurt trazia músicas e a gente ia trabalhando nelas. Algumas nós fizemos na hora, a partir de jams, e apenas com alguns ensaios elas encontravam forma. Tinha outra coisa a respeito de Kurt – ele podia ter um riff, mas era muito bom de fazer a frase vocal. Ele costumava fazer a letra no último minuto, mas era tão bom em colocar o vocal que [nos ensaios], voilà – você tinha uma música.

Assim que definíamos o arranjo, nunca mudávamos nada. Dá para ver isso em diferentes versões de músicas que gravamos [ao vivo] ao longo dos anos. Nunca mudávamos o arranjo. Quando ele ficava pronto, ficava pronto. “Vamos tocar.”

Seria justo dizer que o Nirvana era a banda de Kurt? Ele era a voz principal e o compositor. E a banda era a conexão dele com o mundo.

Isso é totalmente justo, totalmente correto.

E você e Dave foram facilitadores ajudando Kurt a fazer essa conexão.

Claro, eu fazia minha parte. Eu sabia o que queria fazer com a banda. [Pausa] Posso te contar uma história? Acho que estou respondendo. Dave, Pat e eu não tocávamos juntos havia 20 anos, até ano passado, quando nos reunimos com Paul McCartney [para uma sessão que apareceu no filme de Grohl Sound City]. Fiquei tipo: “Meu Deus”. Eu amo esse cara. E ele é um instrumentista canhoto, como Kurt. Comecei a tocar, tentando pegar o groove, usando distorção para tentar deixar do jeito que queria. Dave estava tocando. Aí Pat mandou um riff para mim, eu peguei. Eu joguei algo de volta para ele, ele pegou.

De repente, saiu uma música ["Cut Me Some Slack"]. Saiu em uma hora. Olhei para Dave e Pat e meio que esqueci de Paul. Fiquei pensando que não fazia aquilo havia tanto tempo. Saímos por aquela porta 20 anos antes e depois voltamos e estava tudo lá ainda. Isso é na parte do filme quando Paul diz: "Não sabia que estava no meio de uma reunião do Nirvana..." [Sorri]

Depois da morte de Kurt, as pessoas começaram a enxergar pistas nas letras de In Utero, sendo que na verdade uma parte das faixas foi composta durante um longo período de tempo, durante o qual se passaram vários humores – algumas coisas são até de antes de Nevermind. O que você ouviu naquelas músicas, antes e depois da morte dele?

Eu nunca interpretei nenhuma música dele. Kurt não fazia isso. Dava para interpretar o que quisesse das letras dele. Ouço muito essas histórias das pessoas: "Cara, quando eu estava em recuperação, fiquei ouvindo Nirvana todo dia e isso me ajudou a superar”. Isso é ótimo. Não vou ficar te dizendo o que a música quer dizer.

Eu chamava Kurt de Moinho. Perguntava: "Você ouviu o que acabou de dizer? Está contradizendo o que falou há um minuto”. E ele ria dele mesmo porque sabia disso. Ele queria ser um astro do rock – mas ao mesmo tempo odiava isso.

Era difícil de dizer, às vezes, se ele estava apenas brincando com as palavras – os trocadilhos e combinações – em uma letra.

Kurt dizia que nunca gostou de coisas literais. Gostava de coisas misteriosas. Ele cortava fotos de carne dos panfletos do mercado e colava orquídeas nelas. O que isso significa? O que estava tentando dizer? Todas aquelas coisas em [In Utero] a respeito do corpo... ele gostava de anatomia. Se você olha para a arte dele, tem essas pessoas e elas são todas estranhas, como mutantes. E bonecos meio assustadores.

Ele explicava essas coisas para vocês?

Não, nunca. Ele simplesmente ria. Ele sabia que ia fazer algo legal e ficava feliz com isso. Vai ver ele simplesmente gostava de deixar as pessoas tentando decifrar. [Pausa] Ele que teria que te dizer isso, eu não sei.

Durante as gravações de In Utero, Kurt explicava para Steve Albini o que queria nas faixas? Ele era bastante específico com as músicas?

Sim. Em "Heart-Shaped Box" tinha um solo de guitarra. Conversamos longamente sobre isso. Steve e Kurt estavam contra mim. Eles colocaram um efeito estranho e eu achei repulsivo. [risos]. "Tem esse solo de guitarra ótimo aqui, por que querem colocar isso? É uma música linda.” Discursos foram feitos. Finalmente eles concordaram em tirar. Foi uma discussão que durou tempo demais.

Kurt estava tentando fazer a música deixar de ser bonitinha? Ele era ótimo para compor letras e melodias, mas ele tinha esse ímpeto de deixar cicatrizes na música.

Era essa a estética, como as belas orquídeas com a carne crua em volta delas. É a mesma coisa. "Dumb" é uma música linda. "All Apologies" é ótima. E aí temos faixas como "Milk It" que são completamente perturbadas. Tem coisas para todo mundo nesse disco. Se bem que ele não é para todo mundo. [Risos].

Por causa do que aconteceu depois, muita gente ouve o disco como se fosse um tributo. Você ouve assim?

É um disco perturbador. Mas ele não me assombra. Existe um imaginário ali que eu nunca conseguiria expressar para as outras pessoas. Eu estragaria tudo se dissesse “Essa música quer dizer isso”. Eu roubaria a imaginação das pessoas e isso seria como trair Kurt.

Eu tenho minha experiência pessoal com ele e as pessoas têm as experiências delas. Cada um de nós tem o direito de interpretar como quiser e nenhuma interpretação é a definitiva. Ele seria o único que poderia dizer isso e ele se foi. E ele nunca deu essas explicações quando estava vivo.