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Luiz Melodia: o "maldito" que desceu o morro para fazer o jazz sambar

Artista descobriu câncer agressivo em 2016, após um sangramento ocorrido no que viria a ser o último show da carreira

Mauro Ferreira Publicado em 05/08/2017, às 11h59 - Atualizado em 06/08/2017, às 09h22

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Luiz Melodia - Daryan Dornelles/Divulgação
Luiz Melodia - Daryan Dornelles/Divulgação

O poeta não morreu de amor no bairro do Estácio, berço carioca de pioneiros bambas como Bide (1902-1975), Marçal (1902-1947) e Ismael Silva (1905-1978). Bairro onde ele também viveu, crescendo entre rodas de samba e choro frequentadas pelo pai, Oswaldo, compositor que já tinha o Melodia no sobrenome artístico e que foi herdado pelo filho. Mas Luiz Carlos dos Santos, ele também um bamba que se recusou a seguir somente a cadência bonita do samba, morreu cercado pelo amor da mulher e dos filhos na madrugada de sexta-feira, 4 de agosto.

A causa mortis nada teve do romantismo trágico imaginado nos versos do samba “Estácio, Holy, Estácio”, lançado em 1972 na voz da cantora baiana Maria Bethânia. Um câncer agressivo na medula óssea, diagnosticado dias após sangramento no nariz nos bastidores do último show, feito na cidade paulista de Jaú em julho de 2016, forçou Melodia a sair do tom, dos palcos, e o tirou de cena um ano depois, para surpresa e tristeza do Brasil. Nascido em janeiro de 1951, Melodia tinha 66 anos. “A estrela africana agora brilha no céu”, poetiza Bethânia.

Por ser negro e ter vindo do morro, tentaram enquadrá-lo na moldura pré-fabricada de sambista. Melodia, tão sambista quando roqueiro ou bluesman, se rebelou

O país chorou e saudou a singularidade de uma obra que amalgamou samba, blues, rock, soul e samba-rock em fusão única. A síntese dessa obra está no álbum Pérola Negra, o primeiro dos 15 registros fonográficos oficiais da carreira de Luiz Melodia. Lançado em 1973, ano em que Raul Seixas e Fagner também lançaram os respectivos primeiros álbuns, Pérola Negra resiste ao tempo como uma maravilha contemporânea, carioca da gema como este Negro Gato que também amou as canções de Roberto Carlos e da turma comandada pelo então Rei da Juventude nas tardes dominicais dos anos 1960.

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Diante da revelação da morte, os colegas preferem destacar a genialidade, a simpatia e a generosidade do artista. “Além de grande cantor e compositor, era uma pessoa muito especial”, saúda Gal Costa, ressaltando a honra de ter sido a primeira a cantar uma música de Melodia. No caso, “Pérola Negra”, canção incomum de amor que Gal apresentou ao Brasil em outubro de 1971 no show Fa-Tal – Gal a Todo Vapor.

“Pérola Negra” chegou a Gal, assim como “Estácio, Holy, Estácio” foi parar na voz de Bethânia, por meio da inquietude do poeta tropicalista Waly Salomão (1943-2003). Foi preciso que Waly subisse o morro do Estácio, ao lado de outros integrantes da geleia geral brasileira como o também poeta Torquarto Neto (1944-1972) e o artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980), para descobrir Melodia e fazer com que o poeta do samba descesse o morro com músicas que desconcertaram o universo musical brasileiro então dominado pela MPB.

No asfalto, ele mostrou valentia para brigar com a imposição da indústria do disco. Por ser negro e ter vindo do morro, tentaram enquadrá-lo na moldura pré-fabricada de sambista. Melodia, tão sambista quando roqueiro ou bluesman, se rebelou. Ganhou logo o rótulo de “maldito” imposto aos que não se deixam dobrar. Mas foi em frente. Dois anos após a edição do álbum Pérola Negra, obra-prima repleta de joias como “Magrelinha”, o compositor defendeu a música “Ébano” no Festival Abertura, promovido pela TV Globo em 1975, ano em que a cantora Vanusa lançou “Congênito”, outro clássico deste ourives de suingue próprio.

No ano seguinte, 1976, saiu o segundo álbum, Maravilhas Contemporâneas, cujo repertório continha “Juventude Transviada”. Esse samba torto, de poética alucinada, virou hit radiofônico e televisivo ao parar na trilha sonora da novela Pecado Capital, retumbante sucesso da TV Globo exibido entre fins de 1975 e meados de 1976. Era o tema da principal personagem feminina da novela, Lucinha. Interpretada pela atriz Betty Faria, Lucinha era mulher tão carioca e suburbana quanto Melodia.

Essa malemolência carioca garantiu a Melodia a admiração de bambas que tomam alto partido do samba, caso do positivista Zeca Pagodinho. “Melodia não tinha maldade com nada. O negócio dele era cantar samba e as coisas que ele amava”, depõe o sambista.

As coisas que Melodia amou transcenderam rótulos e gerações. A ponto de possibilitar conexões com a empoderada rapper curitibana Karol Conka. “A melodia dele inspirou e encantou juntamente com a voz cheia de personalidade. Tenho orgulho de ter um registro com uma das pessoas mais importantes da nossa música brasileira”, celebra Karol, em referência ao dueto na música “Até Amanhecer”, composta por ele e gravada pelos dois em novembro de 2012 para o projeto Meet the Legends.

O produtor musical Líber Gadelha também amou intensamente as coisas de Luiz Melodia – produziu e lançou vários álbuns do artista, inclusive o último, Zerima (2014), inacreditáveis 13 anos após o disco anterior de músicas inéditas, Retrato do Artista Quando Coisa, editado em 2001 pela gravadora presidida por Gadelha, a Indie Records. “Melodia foi o maior cantor brasileiro, um grande compositor, muito amigo, generoso. Foi a humildade em pessoa. Quando dançava, era uma coisa linda. Ele amava as crianças e os amigos dele”, testemunha Gadelha.

Foi na Indie Records de Gadelha que Luiz Melodia conquistou o único Disco de Ouro de carreira fonográfica desenvolvida entre 1973 e 2014 (um DVD póstumo, com o registro ao vivo do show Zerima, deverá estender essa obra). O prêmio concedido a quem vendia 100 mil cópias de um disco foi conquistado por Melodia com um registro ao vivo gravado por insistência de Gadelha. O CD Acústico ao Vivo saiu em 1999, mas poderia não ter saído. “Quando ele era artista da Indie Records e eu era o presidente da gravadora, fui ver seu show no Teatro Rival, saí enlouquecido e disse que íamos gravar no dia seguinte ao vivo. Ele perguntou: ‘Se eu não gostar, você joga fora?’ Eu respondi que sim. Mas ele gostou, o CD foi lançado e foi o único Disco de Ouro que ele teve. Realmente é um disco muito lindo. Viva Luiz Melodia!”, saúda Gadelha.

O disco ao vivo de 1999 promoveu a confluência de vários caminhos seguidos por Melodia. “Quase Fui lhe Procurar” (Getúlio Cortes) expôs o apego do Negro Gato ao cancioneiro da Jovem Guarda. “Codinome Beija-Flor” (Reinaldo Arias, Cazuza e Ezequiel Neves) mostrou que, como intérprete de voz aveludada, Melodia tornava dele as músicas alheias que cantava, como essa balada de 1985 que ele gravou em 1991 para a trilha sonora da novela O Dono do Mundo, da TV Globo. “Cruel” reiterou o apreço pela obra de Sérgio Sampaio (1944-1994), compositor também carimbado com o rótulo de “maldito” pela indústria do disco. Já músicas como “Fadas” e “Dores de Amores”, gravadas em 1978, ratificaram que a obra do bamba do Estácio está entranhada no coração do Brasil. Assim como a alma desse artista que, de certa forma, morreu de amor. Pela música e pela vida.