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Maior comunidade poligâmica dos EUA é comandada da cadeia por homem que, aos poucos, institui uma guerra civil

Profeta da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Warren Jeffs tem cerca de 80 esposas e cumpre pena de prisão perpétua no Texas

Jesse Hyde Publicado em 18/05/2016, às 19h04 - Atualizado às 19h36

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Warren Jeffs e algumas de suas cerca de 80 esposas. Ele cumpre pena de prisão perpétua no Texas. - Sean Mccabe
Warren Jeffs e algumas de suas cerca de 80 esposas. Ele cumpre pena de prisão perpétua no Texas. - Sean Mccabe

Em uma manhã de janeiro em Phoenix, Arizona, Willie Jessop entra no tribunal por uma porta lateral, acena para os advogados e vai até o banco de testemunhas. É um homem corpulento 1,89 metro, bem mais de 90 quilos e, como sempre, está todo vestido de preto. No passado, Jessop foi o defensor mais leal da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Fundamentalist Church of Jesus Christ of Latter Day Saints – FLDS), um derivado poligâmico do mormonismo. Quando subia ao púlpito para explicar seu estilo de vida, algumas esposas-irmãs em vestidos em tons pastel sempre estavam a postos para demonstrar apoio. Só que nesse dia elas não estão no local, porque Jessop, ex-porta-voz da igreja e ex-guarda-costas do profeta dela, Warren Jeffs, que está preso, voltou-se contra seu antigo culto. Não está no tribunal para defendê-lo está lá para derrubá-lo.

O promotor pergunta por que Jessop entregaria o posto de liderança na igreja para se tornar uma testemunha-chave para o Departamento de Justiça. O rosto de Jessop fica vermelho enquanto ele se inclina para a frente. “Porque aqueles filhos da puta estavam estuprando meninas no Texas e sabiam disso e eu sabia disso, e essa batalha ainda continua”, afirma.

Era a segunda semana de um julgamento federal em andamento contra as cidades de Colorado City, no Arizona, e Hildale, em Utah, e revelações cada vez mais bizarras e perturbadoras vinham à tona. Conhecidas em conjunto como Short Creek, ambas têm uma população total de cerca de 8 mil habitantes, a maioria pertencente à FLDS, o que torna a comunidade o maior grupo poligâmico nos Estados Unidos. Há gerações, a liderança da FLDS tem controle total sobre esse enclave no deserto à beira do Grand Canyon, escolhendo prefeitos, vereadores e até delegados sem problema algum. No entanto, nos últimos anos, o Departamento de Justiça investigou alegações de que as duas cidades violaram direitos civis dos moradores, permitindo que a igreja usasse funcionários públicos para expulsar do território membros que abandonaram a fé “apóstatas”, no vocabulário da FLDS negando serviços de utilidade pública e até espionando esses habitantes. O julgamento terminou em março, com o veredicto de que o culto, políticos e policiais da região são culpados de violar direitos civis de inúmeros cidadãos.

Ainda assim, a FLDS não deve cair sem lutar. Um dia uma pequena comunidade religiosa aparentemente parada no tempo, Short Creek caiu no feitiço de seu profeta, Warren Jeffs um homem alto, magro e de olhos fundos que supostamente continua a comandar as cidades apesar de estar cumprindo uma pena de prisão perpétua no Texas devido a várias acusações de estupro de menores. Jeffs proibiu TV e internet em Short Creek. Sua força de segurança particular percorre as ruas em SUVs com janelas escurecidas, aplicando a disciplina da igreja e seguindo qualquer um que passe pela cidade. Membros da FLDS que desobedecem as palavras de Je s são banidos.

No entanto, nem todos seguem mais as ordens dele. Willie Jessop faz parte de um grupo crescente de centenas de párias que se recusaram a sair da cidade; a tensão crescente entre os fiéis e esses exilados deixou Short Creek à beira de uma guerra civil. Ex-membros da igreja alegam que foram encurralados enquanto dirigiam em estradas, viram lhos da FLDS urinando em seus gramados e encontraram animais mortos em suas varandas. Em setembro, um tiro arrancou a janela do escritório do advogado de uma vítima. Uma semana depois, alguém explodiu a caminhonete de um apóstata. Há até boatos de que Je s está tentando criar uma raça superior, leal somente a ele, através de um programa secreto de reprodução conhecido como “portadoras da semente”. “Esta é uma comunidade controlada por um maníaco que agora está em uma cadeia no Texas”, afirma Sam Brower, investigador particular que trabalhou no caso de Jeffs e é autor do livro Prophet’s Prey (“Presa do Profeta”), um olhar penetrante sobre as entranhas da FLDS. “Esta é a parte realmente assustadora disso. Esse cara é maluco. Quanto mais poder Warren Je s perde, mais desesperado fica.”

Durante a maior parte de sua história, pouca gente de fora sabia da existência de Short Creek. Um território poligâmico remoto à beira de uma estrada estreita no deserto, era o tipo de lugar em que ninguém trancava a porta ou eram mais “dignos do sacerdócio”, entregando as esposas e os filhos deles a fiéis nos quais sentia que podia confiar.

Em 2002, ele começou a ser investigado por estupro de menores em Utah. Então, passou a se esquivar das autoridades enquanto promovia o casamento de adolescentes com líderes da seita. Além disso, ordenou a construção de um novo complexo da FLDS, o rancho Yearning for Zion (“Ansiando por Zion”, ou YFZ), em um deserto no oeste do Texas. Em maio de 2006, foi parar na lista dos dez mais procurados pelo FBI por diversas acusações de agressão sexual a menores. Fugiu com a esposa preferida, Naomi (codinome: 91). Com a ajuda de Jessop, que comandava a força de segurança da igreja – chamada de Esquadrão de Deus pelos detratores –, Jeffs se comunicava por cartas codificadas e telefones descartáveis e ficava em “casas-esconderijo” espalhadas pelo oeste norte-americano (mas visitava com frequência suas noivas preferidas no complexo no Texas). Em agosto de 2006, foi preso durante uma blitz de rotina na periferia de Las Vegas, carregando 16 celulares, três perucas e US$ 56 mil em dinheiro no forro de uma mala.

Convencido de que Deus o libertaria de sua cela na prisão em Utah, fez as esposas gravarem seus sermões quando telefonava para elas e pedia para que os reproduzissem aos seguidores em Short Creek. O fim do mundo estava chegando e eles deveriam se preparar.

Por algum tempo, com diversos casos contra ele se desfazendo, parecia que Jeffs realmente seria solto. Então, no outono de 2008, respondendo a um chamado anônimo, a polícia do Texas cruzou os portões do complexo da FLDS, coletando evidências que resultaram na remoção temporária de mais de 400 crianças. A batida ganhou manchetes internacionais e gerou a maior batalha por custódia de crianças da história dos Estados Unidos.

De repente, veículos de jornalismo de todo o país foram para Short Creek para relatar o gosto de Jeffs por meninas menores de idade e como realmente era a vida dentro do culto cheio de segredos. Enquanto isso, investigadores descobriram provas de que Jeffs havia feito de várias adolescentes suas noivas e se casado com uma menina de apenas 12 anos. Ele acabou sendo extraditado de Utah para o Texas e, em agosto de 2011, foi sentenciado à prisão perpétua.

Mesmo assim, apesar de estar na cadeia, Je s seguiu como profeta e permaneceu determinado a manter seu domínio sobre Short Creek, onde a maioria de seus Quando Jeffs assumiu a FLDS, em 2002, ele era dono de quase todos os terrenos do lugar, o que significava que poderia expulsar de casa quem quisesse, um poder do qual frequentemente abusava.

Só que tudo isso mudou quando vários dos Garotos Perdidos processaram a igreja em 2004 por tê-los expulsado. “Não responda nada a eles”, Jeffs disse aos advogados. Qualquer tipo de reação, alegou, seria um reconhecimento do poder profano do governo. Como estratégia legal, foi um desastre: ignorar o processo colocou os bens da igreja em risco. A lei tirou de Je s o controle sobre o comitê, o revisitando ocasionalmente para beneficiar qualquer um que tivesse contribuído com tempo ou dinheiro para construir a comunidade. Logo, apóstatas começaram a retornar a Short Creek, voltando a morar em suas antigas casas. “É para deixá-los completamente sós”, Jeffs instruiu, o que significava não comprar nas lojas deles, falar com eles ou mesmo acenar quando os vissem na rua. Quando ele foi conde- nado, em 2011, os apóstatas estavam voltando aos montes. A cidade cou amargamente dividida. Irmãos e irmãs, primos, sobrinhas e sobrinhos foram forçados a escolher um lado.

A batalha por Short Creek havia começado.

É uma manhã gelada de novembro de 2015 e, enquanto dirijo por Short Creek, as divisões entre a FLDS e os apóstatas são aparentes. Membros da igreja construíram cercas altas em torno de suas casas, fazendo-as parecer minifortalezas, e colocaram placas de Zion acima das portas para se separar do restante da cidade. De vez em quando, consigo olhar entre as grades e ver um menino brincando de calça comprida e camisa ou uma menina de vestido campestre. Como basicamente todos os jogos foram proibidos, “diversão” significa algo como pular pra lá e pra cá sobre uma pedra grande.

Desde que a FLDS começou a perder terreno para os apóstatas, fechou quase todos os negócios de propriedade da igreja, especialmente os abertos ao público, incluindo a pizzaria e o único supermercado. Embora eu pudesse frequentar qualquer um desses lugares como “gentio” ou não crente, eles eram proibidos para apóstatas, que poderiam ser ameaçados de prisão por invasão se simplesmente entrassem.

Paro no Merry Wives Cafe, de propriedade de apóstatas e um dos poucos lugares na cidade para tomar uma xícara de café, para encontrar Isaac Wyler. Tirando Willie Jessop, Wyler pode ser o homem mais odiado na cidade entre os membros da FLDS. Um fazendeiro de pele corada, cresceu na irmandade, embora, como muitos nos baixos escalões, nunca tenha tido mais de uma esposa. Sempre descon ou de Jeffs, mas a gota d’água veio quando ouviu o profeta rezar pela execução de seu vizinho Jason Williams. Pouco depois, conta, a caminhonete de Williams explodiu na frente de sua casa. Wyler entrou na internet, começou a pesquisar a igreja e a gravar secretamente os sermões de Jeffs para os vazar online para a polícia. Em 2004, ele diz que foi expulso por motivos que nunca lhe foram explicados. Ouviu que tinha de deixar sua propriedade e entregar a fazenda. Ele se recusou e relata que, desde então, sofre assédios constantes: suas cercas foram arrancadas; os pneus são furados quase toda semana. “Começaram a deixar bichos mortos na minha propriedade”, relata. “Galinhas, gatos, cachorros, patos, de tudo. Deixavam a cabeça deles na minha varanda, penduravam o corpo com a garganta cortada.”

Atualmente, Wyler trabalha como contador responsável pelo UEP para ajudar os exilados por Jeffs a voltar para suas casas, algumas delas ocupadas por membros da FLDS. O respaldo legal do estado vem de uma ordem judicial de 2014 ordenando o despejo de membros da FLDS que se recusam a obedecer o UEP. Essa é a verdadeira linha de frente na batalha por Short Creek e está deixando a polícia de cabelos em pé. Wyler me conta que realizou mais de 100 despejos só no último ano e que a ameaça de violência é constante. Há algumas semanas, uma mulher da FLDS ameaçou um membro de sua equipe com uma faca durante um despejo. Ele também alega que a polícia da cidade aparece lhe dizendo que está invadindo propriedade particular, embora esteja aplicando a lei do estado. Wyler começou a pedir para xerifes do vizinho Condado de Mohave para lhe acompanhar, por questões de segurança.

O contador me leva a uma propriedade que esvaziou recentemente: uma grande casa de tijolos com imponentes colunas gregas. Ele diz que, quando começa o processo de despejo, a FLDS às vezes envia “guardas” para residir temporariamente na casa. Esses intrusos normalmente são mulheres e crianças e, se possível, parentes dele. “É uma espécie de guerra psicológica que estão tentando travar”, afirma. “Eles me chamam de traidor, dizendo que estou entregando minha própria família.”

Ele aponta para um armário no qual o aquecedor de água deveria estar. Não está. Explica que, quando o estado toma posse de uma casa, frequentemente a encontra desprovida de qualquer coisa valiosa – aquecedor de água, caldeira, pontos de iluminação antes que possa vendê-la. “Às vezes, você não encontra nem uma maçaneta na porta”, conta.

“E por que você não relata isso para a polícia?”, pergunto.

“Para os presbíteros da cidade?”, ele ri.

Já relatei. Nada acontece. Caramba, pro- vavelmente são eles que fazem isso.”

Em seguida, Wyler me leva até um acampamento com tendas dentro dos limites da cidade que algumas pessoas começaram a chamar de Lyleville, uma menção nada sutil ao irmão de Jeffs, Lyle, que atuava como bispo de Short Creek até ser preso, em março. Ele explica que as propriedades não pagam impostos há anos. Um juiz do estado capacitou o UEP a trabalhar com membros da FLDS para que eles pudessem car em suas casas se pagassem os impostos retroativos e uma taxa de ocupação de US$ 100 por mês. Só que o código de silêncio de Je s ainda impera. Então, em vez de cooperar com o estado de alguma maneira, os despejados montaram algo que lembra um acampamento de refugiados da ONU cercado por muros de metal de 3 metros de altura. É difícil ver o que acontece lá dentro, mas entre as lâminas podemos enxergar um agrupamento de trailers e tendas brancas imensas. Em breve, a neve cobrirá a Canaan Mountain e as temperaturas cairão até carem congelantes. “Não acredito que pre ram ter mulheres e crianças pequenas dormindo aqui a cooperar conosco”, diz Wyler.

A existência de um lugar como Short Creek está enraizada no início da história mórmon. A igreja principal a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, ou LDS – baniu a poligamia em 1890, mas alguns mórmons continuaram praticando-a em segredo durante anos, enviando membros proeminentes, como o bisavô do ex-candidato a presidente dos Estados Unidos Mitt Romney, a lugares como o México para iniciar colônias poligâmicas. Quando a igreja finalmente decidiu excomungar famílias poligâmicas, elas se refugiaram. Na década de 1930, vários desses clãs estabeleceram Short Creek.

Warren Jeffs nasceu em 1955, filho de Rulon Jeffs, que mais tarde se tornou profeta da FLDS. Por ter nascido prematuro e com poucas chances de vida, era tão pequeno que, dizem, foi para casa em uma caixa de sapato, mas sua sobrevivência foi um sinal de que era o escolhido de Deus, insistiu sua mãe. Como um dos filhos preferidos do pai, teve uma vida muito diferente da das outras crianças de Short Creek.

Criado no condomínio bem decorado da família nos arredores de Salt Lake City, mais de 640 quilômetros ao norte de Short Creek, ele acabou se tornando diretor da Alta Academy, a escola particular da igreja para as cerca de 90 famílias que viviam na cidade e secretamente praticavam a poligamia, como a família no seriado Big Love, da HBO. Alto e pálido, Jeffs usava óculos com lentes grossas e falava em um tom monótono e nasalado que raramente se alterava.

Ex-alunos o descrevem como um supervisor exigente com pouca tolerância por aqueles que infringiam suas regras. “A obediência perfeita requer a fé perfeita”, ensinava. Jeffs se aproximava de ninho por trás dos alunos na sala de aula, agarrando-os pelo pescoço e sussurrando coisas como “você está sendo um doce ou precisa ser punido?” Só que nada era mais apavorante do que subir as escadas até o gabinete dele. Para alguns alunos, o castigo que os aguardava era apanhar de vara e, para outros, os horrores eram muito piores. Um dos sobrinhos de Jeffs mais tarde processou o tio por tê-lo estuprado repetidamente entreos 5 e 7 anos de idade.

No final dos anos 1990, ele começou a passar mais tempo em Short Creek. Seu pai tinha se tornado profeta em 1986, mas uma série de derrames o deixou mentalmente incapacitado; com o tempo, Jeffs virou o conselheiro mais estimado dele e, posteriormente, seu porta-voz.

Em uma reunião pouco após a morte do pai, Jeffs se sentou perto do púlpito na capela da FLDS, olhando para a congregação com um grande retrato do progenitor apoiado em uma cadeira ao seu lado. Ele explicou que Rulon não estava morto havia sido “renovado”, ou reencarnado, e estava ali diante deles. Em outras palavras, Jeffs era Rulon e, por isso, era perfeitamente aceitável que se casasse com as esposas dele. Willie Jessop, então o principal guarda-costas do profeta, apoiou.

Jessop cresceu em Short Creek e se lembra do lugar como uma cidade idílica no deserto quase 13 quilômetros quadrados ladeados por penhascos de arenito onde todos se conheciam. Aos 17 anos, foi convidado a se tornar guarda-costas para proteger a liderança de Short Creek de polígamos rivais que haviam criado uma lista de seitas “inimigas” no estado. Quando recebeu uma ligação de Jeffs em 2004, Jessop tinha se tornado chefe do Esquadrão de Deus e não hesitaria em dar a vida para proteger a igreja.

Como profeta, o pai de Jeffs havia instituído novas e estranhas regras para testar a lealdade dos seguidores por exemplo, ninguém podia usar roupas vermelhas ou dirigir um carro vermelho, porque Jesus voltaria em vermelho. Só que Jeffs elevou isso a um novo patamar. Ordenou que todos entregassem suas armas e, depois, suas ferramentas. Feriados deixaram de existir e livros foram queimados.

Se Jessop tinha algum receio disso, guardou para si mesmo. “Acreditava muito na minha religião”, ele me conta. “Acreditava em nossa sociedade. Acreditava em nossa ética. Na época,simplesmente não acreditei em muitas dessas acusações contra Warren.”

Assim, Jessop fez o que podia para proteger o profeta e os líderes da igreja. Quando Jeffs queria se encontrar com uma das esposas, Jessop diz que protegia o perímetro, às vezes tremendo de frio fora das muralhas do complexo até Jeffs acabar.

“É bem difícil perceber agora o que ele fazia na época lá dentro, porque eu não sabia”, Jessop afirma. “Eu não coordenava quem estava ali com ele. Ficava congelando até os ossos em uma tempestade de neve. Teria dado a vida em um estalar de dedos por ele e lá ele estava, trancado com menininhas.”

Depois que Jeffs foi capturado em 2006, foi julgado em Utah e sentenciado como cúmplice no estupro de uma menor de idade. Em 2010, essa acusação foi retirada, mas o estado o extraditou para o Texas, onde enfrentava acusações mais graves surgidas na batida no rancho Yearning for Zion alegações que acabariam condenando-o a passar o resto da vida na cadeia.

Jessop foi ao Texas para analisar as provas, tentando ajudar a montar a defesa de Jeffs, mas encontrou algo que o deteve. Uma menina de 12 anos chamada Merrianne Jessop, sua sobrinha, havia dito aos investigadores que, durante sua cerimônia de casamento no templo do YFZ, Jeffs tinha deitado-a em uma cama cerimonial e tido relações sexuais com ela enquanto algumas das outras esposas assistiam. Também tinha uma fita de áudio do encontro.

Ele ficou incrédulo. A declaração da sobrinha fazia referência à “lei de Sara”, a doutrina da FLDS que permite o casamento múltiplo, mas aqui brutalmente mal interpretada para atender às perversões sexuais de Jeffs. Era tão absurdo que Jessop achou que a polícia estava mentindo. Encontrou algumas jovens esposas em uma das casas de esconderijo da igreja, em New Bruns field, no Texas. Para ficarem sozinhos, foram até um pomar no quintal.

“Que negócio é esse de lei de Sara?”, Jessop perguntou, esperando que as garotas dissessem que não faziam ideia. Em vez disso, elas con rmaram que Jeffs havia estuprado Merrianne e que tinham assistido.

Jessop sentiu o chão abrir sob seus pés. “Meu mundo inteiro se desfez”, conta. “Tudo que eu achava que conhecia virou de cabeça para baixo.”Ele retornou a Short Creek e enfrentou Lyle Je s. Disse a Lyle que queria autorização para ir a público com o que havia descoberto sobre isso. Lyle recusou. “Foi aí que soube que, para mim, já tinha dado.”

“Acho que a melhor maneira de ver isso é como crime organizado, não religião”, afirma. “Esta cidade basicamente é comandada por uma família e todos aqui sempre obedeceram. Conseguiram se esconder atrás da lei, alegando direitos religiosos para protegerem o que fazem. Quando você enxerga o que esse negócio realmente é, uma má a, tudo começa a fazer sentido.”

Como o próprio Jeffs, Jessop é uma figura controversa na cidade. Talvez por ter sido chefe do Esquadrão de Deus, há certa desconfiança de que ele realmente tenha passado para o outro lado. O fato de ter mantido contato com Lyle Je s até antes da recente prisão do ex-bispo só aumenta a suspeita.

“Willie sempre será Willie”, diz Sam Brower, o investigador particular que foi crucial para derrubar Jeffs. “Ele não mudou desde a época em que estava com Warren. Diz que não sabia sobre o sexo? Claro que sabia! Permitia aquilo. Tirando Warren Jeffs, é o cara mais corrupto de Short Creek.”

Jessop sabe que pessoas como Brower não confiam nele, mas afirma que essa é uma preocupação menor. “Entendo, um dia estava daquele lado, agora estou do lado oposto”, ele me diz.

Passe um tempo em short creek e será difícil fugir da sensação de que as coisas estão cando mais sombrias e assustadoras.

Da prisão, Jeffs está dividindo ainda mais a cidade ao montar uma célula de fanáticos que batizou de Ordem Unida, essencialmente um grupo de elite dentro da fé. Por toda a cidade, Wyler mostra as casas de membros da Ordem Unida enquanto dirigimos. São fáceis de distinguir: um ramo de oliveira sobre o símbolo de Zion e, muito frequentemente, um abrigo ou contêiner no quintal.

“Para que isso?”, pergunto a Wyler.

Ele diz que, se você é casado com uma mulher da Ordem Unida, não pode dormir no mesmo lugar que ela. “Então, os homens cam para fora”, acrescenta. Jeffs anulou e invalidou todos os casamentos, explicando às mulheres de Short Creek que elas são de propriedade do sacerdócio. Até dormir com a própria esposa é considerado adultério agora.

Para quem decide finalmente sair, o caminho pode ser penoso. Ben Thomas e sua família foram exilados da comunidade há três anos, embora sua esposa e sete dos oito filhos tivessem estado na Ordem Unida. “Foi simplesmente: ‘Ok, este é mais um teste, você precisa passar e seguir em frente’”,elemeconta.“Você mora ali por mais de 40 anos e, se fez alguma besteira no último ano, isso é realmente ruim.”

Tomada pela culpa, a esposa tinha começado a escrever cartas de con ssão a Lyle Jeffs, informando sobre atitudes que via como pecados. Pouco depois, ele afirmou que ela não era digna de viver com o esposo. Eles não eram mais membros da FLDS, mas ainda podiam viver na comunidade e entregar seu salário à igreja. “Só que não poderíamos mais falar um com o outro ou com qualquer pessoa, não poderíamos falar com nossos lhos nem vê-los”, diz Thomas.

Ele e a esposa acabaram se separando e saindo de Short Creek. Agora morando na região de Salt Lake e trabalhando com suporte de TI, Thomas me conta que a esposa e os lhos esperam que os irmãos Je s permitam o retorno deles à comunidade. Liga todo dia para a família, mas eles se recusam a falar com ele. “Alguns dias falo no viva-voz que os amo”, diz. “Tenho uns dez segundos e o telefone desliga.”

Como outras pessoas com quem converso em Short Creek, Thomas está especialmente preocupado com a ascensão de algo chamado “portadores das sementes” talvez a ordem mais perturbadora vinda do profeta encarcerado da FLDS. Segundo ex-membros que ainda têm familiares na igreja, Jeffs decretou que apenas homens de uma “estirpe real” podem se reproduzir, e somente com mulheres selecionadas para a Ordem Unida. De acordo com boatos, esses homens (cerca de 15) são os portadores das sementes. Para ter um filho, as mulheres devem fazer uma dieta de desintoxicação especial e apresentar sua inscrição para Jeffs na prisão. Os maridos são forçados a assistir a essas sessões de procriação, nas quais os portadores usam um capuz e um lençol é colocado entre o homem e a mulher durante a relação sexual para manter a identidade deles em segredo. Qualquer criança que nasça dessas uniões é colocada em confinamento, provavelmente na rede da FLDS de complexos secretos espalhados pelo oeste norte-americano. Então, elas se tornam propriedade da igreja, sem conhecer a identidade de seus pais. Vários ex-membros me dizem acreditar que Jeffs está tentando criar uma raça superior, leal somente a ele.

O pior medo de Thomas é que sua filha mais velha, que voltou a Short Creek, vire uma esposa da Ordem Unida. “No meu fundo do poço, fiquei sentado na cama com uma arma”, conta. “A dor é insuportável.”

É uma frase que ouço várias e várias vezes. Praticamente todos com quem converso em Short Creek conhecem pelo menos um exilado que se suicidou. Jessop diz que um irmão se matou e um tio recentemente se atirou da Hurricane Hill depois que Je s desfez seu casamento e redesignou sua família. Ele me conta que houve dois ou três suicídios por mês no outono norte-americano. São as verdadeiras perdas da guerra por Short Creek.

Fim das regalias

Depois de anos exercendo poder sem ser questionado, Warren Jeffs sente o peso de viver na prisão

Apesar de seu status de profeta, Warren Jeffs vive em condições humilhantes em comparação ao seu passado. Passa quase o tempo inteiro sozinho em uma cela nas profundezas das orestas de pinheiros de Palestine, no Texas. Segregado da população carcerária, nunca interage com outros presos, nem nas raras vezes em que sai da cela para caminhar pelo jardim. Na maior parte do tempo, ca sentado sozinho, lendo cartas dos seguidores e escrevendo revelações. Em uma época, estava rezando tanto que feridas começara a abrir em seus joelhos e guardas da prisão tiveram de acorrentá-lo à parede, forçando-o a ficar em pé. Há pouco tempo, Sam Brower, investigador e autor do livro Prophet’s Prey,o visitou na prisão para ajudar em um depoimento. Curvado e grisalho, Jeffs não era mais a figura imponente que um dia inspirou temor em seus seguidores. Sua pele agora está fantasmagoricamente pálida e ele parece fraco. Recusou-se a responder a todas as perguntas que os investigadores fizeram naquele dia, Brower conta, declarando repetidamente seus direitos garantidos pela quinta emenda da Constituição dos EUA [que permite permanecer em silêncio para não gerar testemunho contra si mesmo]. “Ele tem várias doenças mentais”, afirma Brower. “Acho que é esquizofrênico, que realmente ouve vozes.”

O Outro Lado

Advogados de defesa afirmam que o governo norte-americano está discriminando a religião

Durante meu período em Short Creek, tentei falar com membros da FLDS para saber seu ponto de vista sobre o que acontece na cidade. Passo pelo condomínio da família Jeffs, que ocupa um quarteirão, mas ninguém atende. Esperando me encontrar com alguma autoridade, passo pela prefeitura, notando que a bandeira está a meio mastro. Quando pergunto o motivo, co sabendo que está assim desde a prisão de Jeffs, e esse talvez seja o símbolo mais poderoso de quem realmente manda em Short Creek.

Consigo contato com Blake Hamilton, um advogado de Salt Lake City que representa a cidade de Hildale no caso de direitos civis levantado pelo Departamento de Justiça. “O que está acontecendo aqui é muito alarmante.

O governo federal está discriminando com base na religião”, afirma. Hamilton diz que, ao contrário do estereótipo, nem todos na FLDS seguem cegamente Warren Jeffs e que nem todas as autoridades na cidade obedecem as ordens da igreja. O que está em risco, argumenta, é se uma cidade é capaz de se governar. “Esse caso tem implicações bastante extensas”, diz Je Matura, um advogado de Phoenix que representa Colorado City. “Porque é um esforço do governo federal erradicar uma religião da qual não gosta. Se isso acontece com uma comunidade no norte

do Arizona com 10 mil habitantes, pode acontecer com qualquer lugar”, conclui o advogado, meses antes de perder a causa no tribunal, em março