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The Midnight Gospel não é o desenho 'tipo Rick and Morty' que você quer: é muito melhor

A nova animação da Netflix, assinada por Pendleton Ward, criador do aclamado Hora de Aventura, vai te fazer refletir sobre morte, meditação, magia e muito (muito) mais

Igor Brunaldi Publicado em 26/04/2020, às 18h00

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Clancy e a mãe dele conversam enquanto observam a infinidade do Universo emThe Midnight Gospel (Foto: Reprodução)
Clancy e a mãe dele conversam enquanto observam a infinidade do Universo emThe Midnight Gospel (Foto: Reprodução)

No último dia 20, a Netflix disponibilizou oito episódios de um dos desenhos animados mais peculiares e originais dos últimos muitos anos. Com base no trailer divulgado alguns dias antes do lançamento, The Midnight Gospel ganhou destaque inicial não apenas por carregar o nome de Pendleton Ward (mente por trás do aclamado Hora de Aventura), mas também pelos visuais coloridos psicodélicos e diálogos aparentemente "nonsense".

Uma coisa era certa: diferente da animação estrelada por Finn e Jake, que teve as nove temporadas transmitidas pelo Cartoon Network, essa nova criação de Ward teria como foco conquistar o público adulto.

E assim que os oito episódios de aproximadamente 24 minutos chegaram à plataforma de streaming, é seguro dizer que muito adulto que correu para assistir foi pego totalmente desprevenido e de surpresa pela carga emocional, sentimental e reflexiva do programa. 

Quem espera ver em The Midnight Gospel um desenho que possa ser colocado na mesma categoria, ou lado a lado com Rick and Morty, com certeza está com as expectativas aplicadas no lugar errado. Aliás, sequer comparar os dois desenhos é julgar da pior forma esse novo projeto brilhante de Pendleton Ward.

Se por um lado a autoproclamada "fanbase" de Rick and Morty alega ser necessário um QI alto ou até uma "superinteligência" para apreciar e compreender completamente o desenho criado por Justin Roiland e Dan Harmon, The Midnight Gospel chega com uma abordagem completamente diferente: exigir simplesmente uma cabeça aberta disposta a mergulhar profundamente em questões delicadas e até assustadoras sobre a (in)existência humana.

Além de, claro, uma boa dose de sentimentalismo racional e um preparo mental para ter inúmeras epifanias por minuto.

Apesar de eventuais momentos de violência, o que fez esse desenho ganhar a classificação etária de "para maiores de 18 anos" são esses temas, que recorrentemente envolvem autodescobertas preciosas, abordadas por meio de diálogos naturais e fluidos o suficiente para transformarem até o mais denso dos assuntos em uma prosa reflexiva que vai te deixar imóvel e perplexo por um bom tempo, até você perceber que precisa recolher os pedaços do seu cérebro que foram parar no teto, antes que as manchas se tornem permanentes. 

Lembra daquele suposto caráter "nonsense", mencionado no primeiro parágrafo? Pois é, classificar essa nova produção original Netflix dessa forma depois de ter assistido ao desenho é uma blasfêmia comparada em tamanho apenas à colocação do desenho ao lado de Rick and Morty. Porque se tem uma coisa que The Midnight Gospel tem de sobra, é o exato oposto desse termo em inglês, para o qual crio aqui a antítese "ultrasense".


O enredo e os temas

O desenho é protagonizado por Clancy, o criador de um spacecast (podcast transmitido no espaço) chamado The Midnight Gospel. Com a ajuda de um simulador de universos, ele viaja para os planetas mais surrealistas que você pode imaginar, em busca de seres interessantes dispostos a darem uma entrevista para o programa.

A partir disso, a estrutura dos episódios segue um certo padrão: Clancy vai para um novo planeta (e em cada um ele se transforma em uma criatura diferente), conhece o entrevistado principal que então o guia por uma jornada (com temas específicos a cada capítulo) na qual diálogo, ponderação e aceitação são chaves para se chegar ao fim daquilo que muitas vezes parece um caos infindável e incontrolável.

Não é apenas na reflexão que os personagens precisam superar obstáculos. As duplas, sempre formadas pelo protagonista (complexo e mal resolvido por si só) e pelo novo entrevistado, se deparam com aventuras realmente absurdas enquanto conversam com uma naturalidade igualmente absurda sobre temas absurdamente profundos.

E sim, a repetição do adjetivo "absurdo" no parágrafo anterior foi totalmente proposital.

Ao longo de toda a história narrada nesses oito episódios da primeira temporada, ele entrevista a morte, um pássaro que já tomou DMT e trabalha como a voz de um prisioneiro que mordeu a própria língua, aprende sobre meditação, debate o uso de drogas enquanto foge de zumbis, discute com um ser bizarro que se alimenta de minúsculos palhaços como a verdade pode ser paradoxal, aprende sobre magia com um peixe, e muito, mas muito mais.

Com cada um desses aprendizados, Clancy aprende também, acima de tudo, não apenas a se aceitar cada vez mais, mas também descobre como se desvendar.

E acredite, contar tudo isso não entregou nada do enredo envolvente e das cenas repletas de simbolismo, mas apenas deu uma noção do quão surpreendente o desenho consegue ser (sem se tornar uma catástrofe "nonsense").

Muita coisa, não? E ainda assim, mesmo com tanto absurdo aparente e escancarado, é fácil e ao mesmo tempo reconfortante e desafiador para nós, como espectadores, enxergar traços de nós mesmo em Clancy.


A origem

Duncan Trussell foi um nome essencial para a criação de The Midnight Gospel, e até agora omitido nesse texto. Mas não deixe que isso diminua o valor dele para o desenho animado, afinal de contas, sem ele, nada disso existiria.

Não por coincidência, o ator, dublador e comediante norte-americano, que faz a voz de Clancy e escreveu os roteiros junto com Ward, também tem um podcast. No chamado Duncan Trussel Family Hour, ele entrevista pessoas com histórias interessantes para contar, e com pontos de vista dignos de reflexões profundas.

Soa familiar? Isso é por que Pendleton Ward teve a ideia para a animação após ouvir o podcast de Trussell.

Lembra daquela naturalidade atípica dos diálogos, mencionada anteriormente? Sim, exatamente isso que você pode (deve? poderia?) estar pensando. A grande maioria não foi gravada com o intuito de ser usada como fala de um desenho animado, e são trechos das próprias conversas entre Trussell e os convidados. É até possível notar momentos em que os personagens chamam Clancy de Duncan.

Apenas falas complementares, essenciais para criarem uma coerência na narrativa, foram gravadas separadamente.

E com base nessas entrevistas reais, a equipe desenvolveu os universos, os personagens e as histórias contadas em cada um dos episódios


A arte

Até agora falamos basicamente sobre como os temas são complexos, sobre como foram criados os diálogos e sobre as jornadas insanas de Clancy. E para completar a magnitude incomparável desse todo, já que se trata de um desenho animado, não podemos deixar de mencionar a arte.

Os mundos pelos quais o protagonista viaja são milimetricamente construídos e, assim como a variedade impressionante de personagens com os quais ele interage (e até os de fundo), esbanjam criatividade, personalidade e um uso desigual de cores.

A direção de arte é assinada por Jesse Moynihan, que também trabalhou com Pendleton Ward em Hora de Aventura e participou de outros desenhos do Cartoon Network como Summer Camp Island, além de ser criador da animação Manly (disponível para assistir no YouTube aqui).

Essa explosão de cores e formas, tão onírica quanto a mais insana das viagens lisérgicas, apesar de ser uma banquete para os olhos, contribui também para tornar um pouco mais difícil a compreensão dos diálogos, que devido aos respectivos temas, não são expressados por falas que caminham em uma linha reta do ponto A ao ponto B.

Então para de fato assimilar a mensagem e conseguir fundir em uma única obra magnífica essa dualidade do surrealismo imagético com a realidade palpável dos diálogos, pode ser necessário assistir mais de uma vez cada episódio.

Para uns, isso é gratificante e enriquece toda a experiência. Mas não dá para negar que para outros, isso pode atrapalhar a ponto de fazer com que desistam de assistir.

No fim das contas, podemos considerar The Midnight Gospel o irmão mais velho, mais maduro e mais sábio de Hora de Aventura. Ambos são ambientados em mundos fantásticos, repletos de referências e que unem magia e espiritualidade a ficção científica e traços da realidade em que vivemos.

Com tantas aventuras icônicas, inesquecíveis e também repletas de aprendizado e crescimento, Finn e Jake abriram as portas para o amadurecimento e para a exploração de um universo mais complexo e mais difícil de ser enfrentado.

E do outro lado dessas portas, Clancy nos aguarda, para mergulhar conosco nessa nova fase de imersão em nós mesmos.


+++ RUBEL | MELHORES DE TODOS OS TEMPOS EM 1 MINUTO | ROLLING STONE BRASIL