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Na cama com Lucifer: série da Netflix promove representatividade ou apagamento bissexual?

Personagem se envolve com homens e mulheres na série, mas sem nunca assumir a própria sexualidade

Larissa Catharine Oliveira | @whosanniecarol Publicado em 21/08/2020, às 07h00

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Montagem de Lucifer Morningstar e a bandeira bissexual (Foto: Divulgação/ Netflix | Montagem: Larissa Catharine Oliveira)
Montagem de Lucifer Morningstar e a bandeira bissexual (Foto: Divulgação/ Netflix | Montagem: Larissa Catharine Oliveira)

A série Lucifer é uma das mais queridas do catálogo da Netflix. Originalmente transmitida na televisão estadunidense, pela Fox, a produção foi salva do cancelamento pela plataforma de streaming no meio da execução. A série chegaria ao fim em 2018, mas uma campanha intensa do público nas redes sociais incentivou a Netflix na aquisição dos direitos da trama. A primeira parte da quinta temporada estreia nesta sexta, 21, e uma sexta está confirmada.

Na história, Lucifer Morningstar abandona o posto como Senhor do Inferno e decide tirar férias em Los Angeles, conhecida como Cidade do Pecado, onde se envolve com a polícia local para investigar crimes. Apesar da fama de ser uma criatura das trevas, o diabo mostra sede de justiça e vontade de se provar diferente das expectativas.

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Como é de se esperar, porém, o código moral do anjo decaído não se aproxima em nada dos preceitos puritanos pregados pela Igreja quando se trata de relacionamentos sexuais, e o personagem é protagonista de cenas devassas. Na cama, Lucifer não faz distinção entre homens e mulheres. Será? 

Nas primeiras temporadas, Lucifer tem um sex appeal quase irresistível às mulheres e não perde oportunidade de flertar com qualquer interesse romântico. Enquanto a maioria das personagens femininas literalmente se jogam em cima dele - com exceção da detetive Chloe Decker, imune aos encantos diabólicos do personagem -, o mesmo não acontece com homens. 

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A bissexualidade do protagonista é demonstrada de maneira implícita e muitas vezes retratadas como parte de uma postura liberal e “mente aberta” de Lucifer: uma menção ao Grindr aqui, um homem seminu na cama acolá. O único beijo com outro homem ocorre durante uma ação policial, na terceira temporada, como parte do disfarce exigido pela investigação, e é justamente com um rival pelo amor de Chloe.

Ao investigar o assassinato de uma ex-amante de Lucifer, na segunda temporada, outro homicídio acontece e Chloe descarta a possibilidade de conexão entre a morte do homem e o companheiro de investigações. “Parece que você não tem relação com esse caso, afinal. Certamente você não dormiu com esse cara”,  comenta. A oportunidade perfeita para assumir a bissexualidade é deixada de lado, apesar de Lucifer assumir envolvimento com o homem. Diante da reprovação de Chloe, preocupada com a motivação para os crimes, Lucifer assume a postura de homem (diabo, no caso) com mente aberta. “Qual é, detetive, estamos no século 21”, responde. 

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Tom Ellis, intérprete de Lucifer, foi eleito por dois anos consecutivos como o Melhor Protagonista Bissexual na categoria masculina da premiação Bisexual Representation Award, em 2017 e 2018, resultado da votação do público. Apesar do elenco reconhecer a sexualidade dos personagens principais, nada é explícito na série. Ellis agradeceu a oportunidade de representar a comunidade bissexual e Lesley-Ann Brandt, a Mazikeen, confirmou as suspeitas do público sobre a sexualidade dos personagens - ele é bi, enquanto ela é pan. 

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Uma publicação compartilhada por Lesley-Ann Brandt (@lesleyannbrandt) em

Lucifer é uma série com classificação indicativa para maiores de 16 anos pelas cenas de violência e conteúdo sexual. Apesar de não existir receios na abordagem de temas como pornografia, uso de drogas e orgias, ter um homem assumidamente bissexual no protagonismo parece um pouco demais para a produção. 

Esse tipo de representação implícita foi classificado como “Não Tão Bi” pelo site TV Tropes, especializado em classificar padrões na mídia. Existe a demonstração tímida do interesse do personagem por pessoas do mesmo sexo, mas não passa das insinuações.

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Representatividade ou apagamento?

Cena da terceira temporada de Lucifer (Foto: Reprodução)

As referências sobre a bissexualidade de Lucifer não são garantia de representatividade. A perpetuação de estereótipos e convenções sobre a comunidade podem, inclusive, gerar efeito contrário e apagar a comunidade bi. “O problema é que, na maioria das vezes, nunca falam em alto e bom som ‘sou bissexual’. Sempre tem atitudes que provam sua bissexualidade, mas nunca, de fato, falam e se aprofundam sobre ela”, comenta Igor Carvalho, criador do canal Igor Afirma. “Isso causa a invisibilização da nossa sexualidade, pois não tem como o público ter a chance de entender algo se não é citado ou nomeado”. 

Os rótulos possuem importância política e auxiliam na identificação com o público. Um estudo realizado na Austrália, publicado no Australian Journal of General Practice em 2019, confirmou que a população bissexual enfrenta mais problemas de saúde mental e tentativas de suicídio em comparação às pessoas gays, lésbicas e heterossexuais. O estudo incluiu a invisibilidade como um fator para esse resultado.

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Para Alex Anders, escritor e criador do prêmio Bisexual Representation Award, a existência de personagens assumidamente bissexuais “é importante para sociedade” e pode salvar vidas. “Um grande motivo para [as questões de saúde mental] é a alienação que os bissexuais sentem quando percebem que têm a capacidade de serem atraídos por mais de um gênero. Quando personagens de TV dizem que são bissexuais, isso atinge jovens e adultos que se sentem isolados”, explica o escritor.

O homem bissexual 

Lucifer e Chloe Decker (Foto: Divulgação/Netflix)

Segundo levantamento da GLAAD de 2019, existe grande  disparidade entre o número de personagens bissexuais femininos e masculinos na mídia, com maior atenção aos personagens femininos. “A maioria dos espectadores ainda pensa nas mulheres bissexuais como sexualmente excitantes e os homens bissexuais como complicados”, aponta Anders. “E como as salas dos roteiristas e os estúdios de TV ainda são dominados por homens, existe mais interesse em adicionar o apelo sexual de mulheres bissexuais aos programas do que desafiar os telespectadores”. 

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Muitas vezes, homens bi em relacionamentos com outros homens são entendidos como gays não assumidos, o que torna a representatividade ainda mais importante para desmistificar a bissexualidade. “O homem bissexual em qualquer mídia, nas poucas vezes que aparece, não é diverso. É alguém mais luxurioso que a maioria dos personagens e usa a sexualidade como artifício para alcançar um objetivo maior, nunca está em um relacionamento”, detalha Igor.  “Não existe o menor problema em ser um bissexual que gosta muito de sexo e não está afim de um relacionamento, como retratado na série Lucifer, mas a mídia se aproveita desses estereótipos em troca de polêmicas e nunca trabalham em algum personagem bi fora desses círculos”. 

“O maior obstáculo à representação bissexual masculina é a falta de entendimento sobre o que é bissexualidade. Bissexualidade é a capacidade de sentir atração romântica ou sexual por mais de um gênero, não necessariamente ao mesmo tempo ou na mesma proporção”, argumenta Anders. “Entender isso levaria a uma redução do estigma em torno de ser bissexual. E menos estigma permitiria que mais homens fossem abertos sobre quem são”. 

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O autor escreve romances eróticos com personagens bissexuais, como a série Until Your Toes Curl, mas tem o foco na autoaceitação. “A capacidade de amar é o fio condutor que nos une. Bissexuais são como todo mundo. Simplesmente têm o superpoder adicional de sentir atração por mais de um gênero”, lembra Anders.


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