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O caso do namoro entre TikTokers - e a necessária discussão sobre abuso sexual infantil que gerou [ANÁLISE]

Suposto namoro entre influenciador de 19 anos e menina de 13 gerou revolta nas redes sociais no final de setembro

Larissa Catharine Oliveira | @whosanniecarol Publicado em 19/11/2020, às 10h00

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TikTokers foram alvo de polêmica após anunciar suposto namoro (Foto: Reprodução/Instagram)
TikTokers foram alvo de polêmica após anunciar suposto namoro (Foto: Reprodução/Instagram)

No final de setembro, os termos “estupro de vulnerável” e “pedófilo” entraram para os mais comentados entre usuários brasileiros no Twitter. O intenso debate virtual foi causado pelo anúncio do namoro entre o TikToker Pietro Riguengo, de 19 anos, e uma menina de 13 anos de idade com quem mantinha um perfil no TikTok com mais de um milhão de seguidores.

No Quarentenados1819, agora banido do aplicativo por violar regras da comunidade, Pietro e a menina responderam uma pergunta sobre a natureza da relação entre os dois. Os jovens já haviam se beijado de “selinho” durante um vídeo, aumentando rumores sobre um envolvimento amoroso. “Depois de muitas perguntas como essa, a gente veio aqui esclarecer tudo pra vocês. Estamos, sim, namorando. Nossos pais sabem e autorizam nosso namoro”, explicou a menina. “Aliás, toda a família sabe. Eu quero e autorizo nosso namoro. (...) A diferença de idade que a gente tem não é nada comparado ao amor que a gente tem um pelo outro”.

O vídeo foi intensamente compartilhado nas redes sociais e causou uma forte reação. As pesquisas pelo termo “estupro de vulnerável” tiveram um pico no Google entre 26 de outubro, data da explosão do debate, e 04 de novembro. Pietro foi acusado de pedofilia por internautas e diversos vídeos dos dois em clima de flerte, até mesmo com a torcida das respectivas mães, viralizazam nas redes sociais. Rapidamente, no dia 27, ambos negaram o envolvimento - na nova versão, tudo não passava de uma “trollagem”. “Todo mundo que nos acompanha sabe que temos uma relação de irmãos. A gente se respeita muito”, garantiu ele.

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Menos de um mês depois da polêmica, os envolvidos saíram das redes sociais e os vídeos do canal do Youtube foram deletados. A Rolling Stone Brasil conversou com Luciana Temer, advogada e presidente do Instituto Liberta, focado na luta contra a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, sobre o caso dos TikTokers e outras facetas do abuso sexual infantil no país.

Afinal, é crime?

De fato, o suposto relacionamento entre os influenciadores se enquadraria no crime de estupro de vulnerável, descrito na Constituição Federal como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso” com qualquer menor de 14 anos de idade. Nesses casos, consentimento da criança ou dos familiares é indiferente.

Existe ainda uma dificuldade por parte da sociedade em reconhecer uma violação de direitos em um relacionamento entre jovens. “Me parece razoável pensar que é uma situação distinta de um homem de 50 [anos] com uma menina de 13”, pondera Luciana. “Não dá para ficar crucificando casos isolados, a gente precisa mudar uma cultura que permite a violência sexual e objetificação de meninas e meninos”.

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Se, por um lado, os vídeos virais do suposto casal trouxeram um debate importante nesse aspecto, o interesse no tema se mostrou, mais uma vez, pontual e sem estrutura para promover mudanças sociais significativas. A curva de pesquisas sobre o tema caiu drasticamente, como mostram gráficos do Google, e outros casos graves não ganharam a mesma repercussão e engajamento.

O retrato do abuso infantil no Brasil

Apenas três meses atrás, a hashtag #GravidezAos10Mata apoiava uma menina de 10 anos abusada por um tio que enfrentava dificuldades para realizar um aborto legal. Dias antes dos TikTokers mobilizarem uma avalanche de tuítes, uma menina de 13 anos morreu no Pará durante o parto do primeiro filho, fruto de uma relação com um homem de 41, com quem morava desde os nove anos. Esses casos são um retrato mais fiel da violência sexual infantil no país.

Os registros de abuso e exploração sexual infantil no Brasil são assustadores, mas pouco divulgados. Enquanto a cultura do estupro contra mulheres adultas já entra em pauta com certo destaque na grande mídia, as crianças seguem as maiores vítimas, mas sem tanta visibilidade. Os debates sobre a problemática ainda são relegados a nichos mesmo no movimento progressista, enquanto figuras conservadoras, como a ministra Damares Alves, são automaticamente classificados como alarmistas ou fantasiosas pela oposição. Em ambos os casos, as crianças ainda são entendidas como responsabilidade única e exclusiva dos membros da família - uma mentalidade perigosa quando 54% das denúncias são contra familiares das vítimas, segundo dados do Disque 100 entre 2011 e 2017.

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Infográfico do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019 (Foto: Reprodução)

De acordo com o levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, cerca de 63% dos estupros registrados entre 2017 e 2018 eram contra vulneráveis, principalmente meninas (81,8%) negras (50,9%) - e os números ainda não refletem o tamanho real do problema, tendo em mente que crimes sexuais possuem as menores taxas de notificação à polícia. Em mais de 75% dos casos, o autor da violência é conhecido da vítima. São 4 meninas de até 13 anos estupradas por hora.

Em um país patriarcal e racista, casos como da menina de 13 anos que morreu em 24 de setembro durante o parto, após ser “casada” com um adulto desde os nove anos de idade, parece comover menos. “A gente tem uma cultura de naturalização da sexualização precoce”, aponta a advogada. “Especialmente quando são meninas de baixa renda e negras, que é o recorte da violência: gênero, raça e classe social. Essa é uma violência invisibilizada, porque é naturalizada”.

E as famílias?

Em todos os casos citados nesta matéria, as mães das crianças foram indagadas, mas Luciana reitera a necessidade de uma transformação cultural ao invés de uma perseguição a indivíduos inseridos nessa cultura - o que não significa fechar os olhos para a responsabilidade das famílias, mas uma abordagem mais voltada às raízes desse problema. “A mãe dessa menina viveu a mesma história. Como você cobra dessa família algo que ela não tem para dar?”, reflete. “Na nossa sociedade, a mulher é tão culpada, que até quando a menina está em uma situação de exploração e violência, as pessoas perguntam da mãe dessa menina”.

A defesa da criança e do adolescente deve ser discutida como uma responsabilidade social. Em pesquisa do Datafolha, realizada em 2018, 24% dos entrevistados já haviam presenciado uma situação de exploração sexual de crianças e adolescentes - mas 72% dessas testemunhas não realizaram nenhuma denúncia. “A menina em situação de exploração é culpada pela exploração, a sociedade não a vê como vítima, ela se torna uma vagabunda”, explica Luciana. “E no caso de estupro de vulnerável, a sociedade não consegue tratar isso como uma violência epidêmica, é difícil entender que as crianças são estupradas a todo momento”.

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Quem pode denunciar?

Qualquer pessoa pode realizar uma denúncia ao tomar conhecimento de um crime. No caso do abuso ou exploração sexual infantil de qualquer natureza, existem diferentes meios: diretamente na Delegacia de Polícia, no Ministério Público ou no Conselho Tutelar, pelo Disque 100 disponível em todo país, que pode ser feita de maneira anônima. 

“O importante é que a gente não silencie diante de uma violência de qualquer ordem contra a criança e o adolescente”, enfatiza Luciana Temer. “E conscientizar a sociedade da necessidade de não ficar inerte”. 

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Tornar o assunto 'pop'

A advogada coloca a comunicação como um dos primeiros pilares para iniciar essa transformação cultural por meio da educação das novas gerações e da discussão ampla na mídia. "Tenho que convencer a sociedade a enxergar e falar sobre violência sexual. Para isso, precisa ficar pop o assunto - e pra isso, precisamos que a imprensa fale disso". 

O envolvimento da sociedade civil incentiva a construção de políticas públicas no combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. “Essa não é uma questão privada é um problema da sociedade, de todos nós”, conclui. "Não é um crime para ter vergonha e silenciar, é um crime para gritar". 


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