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Por Trás dos Quadrinhos, Histórias (Parte III)

No terceiro capítulo dessa viagem pelo universo prolífero dos quadrinhos independentes, conheça a anarquia psicodélica do Moletonfantasma, e a inquietude propulsora de Janaína de Luna, da Editora Mino

Igor Brunaldi Publicado em 03/09/2020, às 07h00

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Arte do Moletonfantasma para o gibi Loco e Janaína de Luna por Pedro Cobiaco, para o Mino Day (Foto: Reprodução e Divulgação)
Arte do Moletonfantasma para o gibi Loco e Janaína de Luna por Pedro Cobiaco, para o Mino Day (Foto: Reprodução e Divulgação)

Mais uma semana e mais um mergulho nesse vasto, diversificado e incomparável mundo dos quadrinhos independentes nacionais.

Nessa nova etapa da nossa viagem, vocês vão conhecer o universo absurdo, abismal e anormal do Moletonfantasma, e também a força motriz da Editora Mino, Janaína de Luna.

Na Parte I, que você pode ler aqui, conversei com Lobo Ramirez, a mente hardcore solitária (porém sempre pensando no coletivo) por trás da Escória Comix, com a artista Ing Lee, que me contou sobre a autodescoberta dela por meio da arte, e mergulhei no afrofuturismo de Eryk Souza.

Já na Parte II, disponível aqui, troquei uma ideia com Adriano Rampazzo, Benson Chin, Breno Ferreira e Thiago A.M.S., os quatro integrantes do coletivo O Miolo Frito, falei sobre militância na arte (e arte na militância) com a artista Amando Miranda e sobre perfeccionismo e autocrítica com a autointitulada "entusiasta dos quadrinhos" Jéssica Groke.


Mistério, lisergia e letargia: Quem é Moletonfantasma? 

Quem é Moletonfantasma? Ou a pergunta mais correta seria o que é Moletonfantasma? Talvez uma inteligência artificial que se libertou das limitações de algoritmos e se tornou capaz de produzir quadrinhos psicodélicos e se comunica sem precisar de uma representação física? Ou um artista incrível adepto da filosofia do mistério popularizada por Banksy? Obviamente a última opção.

O pseudônimo emergiu e tomou conta desse artista (nascido e criado em Itararé) em 2012, na época em que ele estudava Design na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba.

Se existe aquele ditado "a ocasião faz o ladrão", a partir de agora precisa existir também "a ocasião faz o artista", que tem menos impacto porque não rima, mas resume exatamente a história de origem desse quadrinista itarareense (e não, a imagem acima não é um autorretrato dele).

Imagem: fragmento de Loco (2017)

"Eu havia acabado de trancar a matrícula para a disciplina Geometria Descritiva II, e fiquei com um bloco inteiro de papel A3  e canetas novas. Então decidi aproveitar esse material e o tempo livre para criar um gibi", conta.

Apesar de carregar consigo o gosto pela criação de desenhos e narrativas desde criança, foi naquele momento que ele percebeu "que aquela era a hora de começar a produzir de maneira definitiva sob o nome de Moletonfantasma".

Ele descreve a criação das narrativas como um processo bem orgânico, porém anárquico. É só depois do nascimento conceitual de umas duas ou três páginas, já com toda a estética visual (cores, atmosfera, texturas, cenários) consideravelmente decidida, que ele começa o desenvolvimento de um roteiro em constante mutação.

Imagem: fragmento de Loco (2017)

"Ao desenhar, faço tudo com muita calma e paciência. Não tenho prazo para terminar nada. Durante esse processo, muita coisa vem e vai: anoto textos e diálogos, refaço quadros, novos personagens surgem, experiências visuais podem acontecer."

A partir do exercício e da prática de evitar o estabelecimento de limites,Moletonfantasma não apenas procura, como encontra soluções inusitadas e criativas para dar vida a "uma narrativa estranha e misteriosa, sempre atento aos detalhes, planejando uma segunda camada de interpretação dos acontecimentos e evitando complexidades desnecessárias".

Ler um gibi escrito, desenhado e editado por Moletonfantasma é uma experiência bizarramente satisfatória, desconfortante e absolutamente surpreendente, assim como assistir a um filme do David Lynch.

Tal qual nas produções desse cineasta lendário, predomina durante toda a leitura de uma HQ desse artista brasileiro uma atmosfera lisérgica e tensa, que faz o leitor se perguntar "mano, que porra é essa" com a mesma frequência que exclama "cara, que doideira" e "uau".

Os universos criados por Moletonfantasma são oníricos, dopados e fantásticos, sem parecerem forçados, e isso se aplica tanto para a arte extremamente detalhada quanto para as narrativas por vezes propositalmente vagas. Afinal de contas, aquilo que não vemos gera mais desconforto do que algo explícito.

Pegue, por exemplo...

Sinistreza

Quadrinho produzido durante o ano de 2018, teve o lançamento realizado na Feira Des.gráfica do mesmo ano. Segundo a mente criadora, "é uma espécie de fábula sobre a incerteza, explorando diferentes sentimentos e reflexões sobre o assunto".

Essa breve história de terror é carregada de simbolismos, e ao longo de uma simples passagem por um dia um tanto quanto importuno na vida do Diabo, o artista contrasta no gibi "a letargia e desesperança do primeiro ato à obstinação e inconformismo do final macabro".

Moletonfantasma ainda completa que "os cenários e o andamento lento são tão importantes quanto as atitudes bizarras dos personagens presentes na trama".

Insano Animal Em Fuga

Recém-publicado o primeiro capítulo dessa história milimetricamente insana, esse "é o gibi que eu sempre quis fazer", diz ele. "Cores vibrantes, muita psicodelia, deserto, entorpecentes e alucinações, personagens absurdos, situações insólitas e loucura."

O projeto é ambiociosa, e dá para perceber isso apesar de estar ainda no começo. Moletonfantasma explica que "a intenção é que seja algo longo. Tenho planejado criar algo assim faz tempo, fui colecionando ideias e agora me sinto hábil à executá-las. Quero misturar tudo que acho legal na ficção, emulando mídias diversas, sem freio."

Ele pretende abordar desde realismo fantástico ao cinema de horror trash, dos desenhos animados dos anos 1990 até teorias de conspirações alienígenas.

Mas se você pensou "nossa, mas tudo isso? Vai fica muito jogado né", é porque nunca leu Moletonfantasma e ainda está no estágio inicial e compreensivo de subestimar a capacidade narrativa dele.

"No núcleo desse enredo, acredito que a temática principal será a nostalgia. Quero escrever sobre juventude, memórias, amizades, diversão e viagens sinistras para o meio do nada."                      

Além das HQs mencionadas acima, ele também já publicou três volumes do Gibi Insone (2013), Loco (2018) e BizarroDramaShow (2020), todos de forma independente.


P&R Janaína de Luna - Editora Mino: inquietude propulsora

Janaína de Luna não é apenas a fundadora da Editora Mino, mas é também a personificação de todo um espírito essencial para o mundo das HQs independentes, que, não por coincidência, é também a força motriz por trás de uma das principais editoras desse nicho dos quadrinhos.

Apesar de mega ocupada, Janaína conseguiu encaixar na agenda digna de celebridade um tempinho para me contar em detalhes e com uma paixão evidente, sobre a história da Mino, os melhores e piores momentos da carreira como editora e sobre o envolvimento pessoal dela com gibis.

Leia abaixo a conversa.

Como surgiu a Editora Mino? O que gerou o estalo que te fez querer abrir uma editora de HQs?

Lauro, meu ex-marido e co-fundador da Mino, além de apaixonado por quadrinhos sempre teve o sonho de montar uma editora. Um dia estávamos numa pizzaria junto com o Daniel Lopes (do Pipoca e Nanquim) e ficamos sabendo que o Luciano Salles tinha um quadrinho para lançar, ainda sem editora.

Eu, cansada de ouvir do Lauro que ele queria abrir uma editora um dia, falei: "por que a gente não abre uma editora agora?”. No outro dia já estávamos tendo uma reunião com o contador da minha antiga empresa.

Antes da Mino, como era sua relação com os quadrinhos? E de que forma ela mudou após o nascimento da editora?

Sempre fui apaixonado por quadrinhos, mas nunca fui colecionista. Nunca estive envolvida no meio dos quadrinhos. Nunca tinha ido para convenções, não participava da cena nacional.

Quando casei com o Lauro, ele começou a me mostrar essa parte. Eu era uma leitora voraz. Meu pai comprava quadrinhos, muitos e variados, e eu lia tudo desde criança. Coisas das mais diversas, como Little Nemo a Chiclete com Banana, ou Corto Maltese, por exemplo.

Hoje em dia tenho bem menos tempo de ler quadrinhos quanto a algum tempo atrás. Isso parece ser uma grande ironia. Acabo lendo só coisas que ainda tem os direitos em aberto pro Brasil, ou novos projetos que ainda não nasceram. Às vezes sinto falta de pegar uma pilha de quadrinhos, deitar numa rede e só ler, ler, ler...

Cais (2016) e Lila (2019), de Janaína de Luna e Pedro Cobiaco

Estruturalmente, como a editora funciona nos dias de hoje?

A gente tem um time bem enxuto. Eu cuido da parte editorial, junto com o Pedro Cobiaco. A Marina de Campos é responsável por todo o design e temos sempre alguém no financeiro/administrativo.

Temos outros colaboradores, mas eles prestam serviço esporadicamente. Como revisores, tradutores, ou até mesmo outros artistas que vêm ajudar quando a coisa aperta.

Qual foi a maior dificuldade que você e a equipe se depararam ao longo dos anos?

São duas, sempre. Calotes das grandes redes de livraria, como Saraiva, Cultura, que entraram em recuperação judicial e a variação absurda do dólar. Pagamos muito direitos em dólar, papel, insumos de gráfica são em dólar e não temos quase nenhum apoio governamental, institucional... Isso sempre atrapalha muito nossa vida.

Qual é a maior diferença entre a Mino de 2014 e a Mino de 2020?

Acho que a maior diferença é a experiência. Quando comecei em 2014, apesar de entender de negócios, eu não entendia nada de editora. Corri atrás de verdade. Fiz curso, estudei, preparei plano de negócios. Hoje sinto que tenho um bom conhecimento na área, e lógico que isso reflete na Mino.

Outra diferença também é que conseguimos criar uma marca que acho que está atrelada a bons autores e autoras. Esse sempre foi nosso foco, que a Mino fosse a casa de autores(as) relevantes e de alto nível.

Bar (2017), do Miolo Frito / Roly Poly (2018), de Daniel Semanas / Hermínia (2015), de Diego Sanchez

Tem algum momento específico que você se lembra, de olhar para tudo isso que construiu e sentir um orgulho imensurável?

Acho que o maior orgulho que eu tive desde que abri a Mino foi quando comecei a fazer o Narrativas Periféricas. O projeto só se tornou viável por todo o conhecimento que eu tinha adquirido nesses anos e pelo tamanho e importância que a Mino tem no mercado.

As pessoas confiam na Mino, e isso dá muito orgulho, porque é o sinal de um trabalho bem feito. Eu senti que estava pronta, e que eu realmente sabia o que eu precisava fazer.

E por outro lado, teve alguma situação que te fez considerar desistir?

Várias. O mercado editorial do Brasil é muito complicado e existe pouquíssima clareza nas transações. Fazer quadrinhos também é um trabalho muito ingrato, porque é um trabalho árduo, difícil, especializado e muito pouco remunerado. Trabalho com pessoas muito, muito qualificadas, e do jeito que as coisas são postas fica difícil remunerar os autores, por exemplo, o tanto que eles mereciam.

Fora isso, tem todas as crises econômicas, o desamparo governamental... Se ter uma pequena empresa no Brasil é difícil, trabalhar com livros é ainda mais complicado. Temos um país continental, mas poucas pessoas lêem. Temos poucos pontos de venda, muitos deles não têm práticas saudáveis e isso não parece estar melhorando. Então sim, isso é o que mais faz com que você tenha vontade de parar.

Muito mais do que quando chegam duas mil cópias de um livro erradas da gráfica, por exemplo. Isso é contornável. As questões estruturais pesam muito mais.

Quadrinhos lançados pelo projeto Narrativas Periféricas em 2019: Pomo de Eryk Souza / Crianças Selvagens de Gabú / Para Todos Os Vermes de Kione Ayo

Como funciona o processo de publicação de uma HQ? Como vocês avaliam o que é interessante ou não, e por quais etapas o material passa até de fato se tornar o produto editorial que chega aos leitores?

Nós sempre escolhemos trabalhar com o autor ou autora, mais do que com a HQ em específico. Gostamos de participar do processo desde o começo, então com aquela ideia começamos a trabalhar a criação do quadrinho junto do autor, também cuidando muito da parte de balonamento, letreiramento, pós produção, arquivos.

Pensamos muito no formato do livro, porque acreditamos que cada história tem um jeito de ser contada: uma forma, um papel, um acabamento. Quando eu escolho trabalhar com um autor, é porque acho que ele tem coisas interessantes a dizer, principalmente sobre linguagem – ou porque ele é muito bom no gênero que faz ou porque propõe coisas interessantes com a narrativa.

Mesmo nos internacionais, procuro trazer coisas que acho que estão passando por debaixo do radar e que sejam importantes de serem publicadas no Brasil. Tanto para os leitores, quanto para a formação do nosso próprio mercado. Quando publicamos o Lemire, ninguém publicava o Lemire.

Quando procuramos o Deodato, queríamos a parte do trabalho dele que as pessoas não associam a ele – a parte emocional, por exemplo. Sempre procuramos coisas que nos instiguem e principalmente nos desafiem como editores.

O futuro é um aglomerado de incertezas e imprevisibilidades, mas como você vê a Mino daqui 10 anos?

Espero que a semente que a gente já tá plantando faz cinco anos floresça cada vez mais forte. Que tenhamos um cenário mais consolidado no quadrinho autoral nacional e que possamos ter mais estabilidade na economia, e mais apoio governamental.

Mas, principalmente, espero não me acomodar. Quando eu proponho projetos como o TABU ou o Narrativas Periféricas, é porque não sei muito fazer a mesma coisa que eu sempre faço. Então quando a coisa fica muito confortável, eu sempre procuro outros desafios, outras propostas.

Lógico, sem abandonar o cuidado com as coisas que já consolidamos. Espero que daqui a 10 anos, estejamos fazendo coisas bem diferentes e que essa inquietação não tenha passado ainda.

Quadrinhos publicados na coleção Tabu em 2019: Juízo, de Amanda Miranda / Cina, de Lalo / Piracema, de Jéssica Groke