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Star Trek completa 50 anos de existência em sintonia com a revolução dos costumes

Ao abordar de maneira alegórica questões como o racismo, Star Trek foi capaz de lidar com temas em que ninguém mais tocava na televisão

Hamilton Rosa Jr. Publicado em 08/09/2016, às 18h34 - Atualizado às 19h02

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<i>Stark Trek</i>: O elenco original - Reprodução
<i>Stark Trek</i>: O elenco original - Reprodução

Às 20h30 do dia 8 de setembro de 1966, o público norte-americano se deparou com “O Sal da Terra”, episódio inaugural de uma nova série da rede NBC, chamada Star Trek. Durante os três anos seguintes, a atração navegou pela programação da emissora com mornos índices de audiência. Foi cancelada em 1969, para só voltar na década seguinte, por meio de reprises. Porém, a força de Star Trek não poderia ser medida em meros números de telespectadores, como mais tarde seria comprovado.

O público podia não ser massivo, mas era dedicado e influente: jovens universitários, acadêmicos e aspirantes a uma carreira no mundo da ciência. Star Trek mudou o conceito da ficção científica, até então um subgênero direcionado a crianças e cujo propósito era basicamente vender armas de brinquedo e bonecos de marcianos.

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Como os jovens da época, os protagonistas do programa eram influenciados pelas ideias de liberdade, só que em vez de pegar a estrada eles rumavam em uma viagem exploratória pela galáxia na nave interplanetária USS Enterprise. No futuro imaginado pelo criador e produtor, Gene Roddenberry, os preconceitos tinham de ser superados para que humanos de diferentes etnias trabalhassem para um bem comum ao lado de seres de outros planetas.

Apaixonado pelo espaço, Roddenberry tinha formação liberal. Foi piloto de avião da Força Aérea norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial; depois, trabalhou como policial. Com base nas experiências que teve, começou a escrever roteiros e passou a ter suas ideias aplicadas em vários programas nos anos 1950.

A atualidade inescapável de Star Trek se deve à agenda humanista de seu criador. A série refletia as inquietações dos Estados Unidos dos anos 1960 e fazia do Universo o palco para explanar diversos debates sobre aceitação. Não se tratava apenas de criar aventuras espaciais: os episódios teciam comentários sobre racismo, igualdade entre gêneros, eugenia, preconceito contra o “diferente”, direitos humanos, militarismo e dificuldades tanto de lutar contra um regime totalitário quanto de viver em democracia. E, é claro, havia o crescente papel da tecnologia na vida do ser humano.

Roddenberry talvez não imaginasse, mas todos esses conceitos permanecem hoje tão latentes e carentes de representação quanto nos anos 1960.

A fórmula de Star Trek tem a ideia de aventura como algo elástico. Os tripulantes da USS Enterprise levitam infinitamente por novos mundos se deparando com civilizações e costumes que nunca viram antes. Portanto, para sobreviver, precisam estar abertos à tolerância.

A formação da primeira tripulação da nave foi calculada para sutilmente explorar a diversidade. A ousadia, em plenos dias de intensa luta pelos direitos civis, era ter brancos, negros, asiáticos e alienígenas dividindo a ponte de comando. Spock (Leonard Nimoy) vinha do planeta Vulcano, cuja civilização era ainda mais avançada que a da Terra. Sulu (George Takei) fugia totalmente dos estereótipos que Hollywood aplicava aos orientais. Mais provocador, contudo, foi incluir a figura de Chekov (Walter Koenig), um copiloto russo que a partir da segunda temporada conduzia a nave em novas missões. Nos tempos da Guerra Fria, era uma ironia e tanto um programa de TV mostrar semanalmente um russo guiando como parceiro o destino de heróis.

Para completar, havia ainda uma personagem feminina formando uma intrigante combinação. A tenente afro-americana Nyota Uhura (sobrenome derivado de uma palavra que significa “liberdade” em um dialeto africano), interpretada por Nichelle Nichols, era a filha de um nobre da África Oriental, fluente em dezenas de línguas. O fato de assumir a função de oficial de comunicações e, em termos de patente, ser a quarta posição na linha de comando da Enterprise, acenava aos embates raciais que aconteciam pelos Estados Unidos.

Nem tudo era progressão, no entanto: apesar do cuidado dos produtores em nunca retratar Nyota como um objeto decorativo na Enterprise, o dia a dia de Nichelle não era tão confortável nos bastidores como parecia na tela. Diversas vezes a participação da personagem interpretada por ela foi suavizada para evitar protestos, principalmente vindos de localidades sulistas dos Estados Unidos. No episódio “Os Herdeiros de Platão”, no qual acontece um dos primeiros beijos interraciais da história da TV, envolvendo o capitão Kirk e a tenente, houve reuniões tensas dos criadores com a diretoria da NBC.

Cada gesto foi discutido antes de o beijo ser filmado. A cena não poderia insinuar que havia um caso entre os dois. Nyota Uhura só beijava o capitão para despertá-lo do domínio mental de alienígenas. A politizada Nichelle ficou tão revoltada com o excesso de zelo da NBC que pensou em abandonar a série. Quem a demoveu da ideia foi o amigo Martin Luther King. O líder pacifista disse à atriz que nenhum processo de transformação ocorria sem um processo de conscientização. E a tenente Nyota Uhura era uma ponta de lança, fundamental para amadurecer a mentalidade social e quebrar preconceitos.

Ao abordar de maneira alegórica questões como o racismo, Star Trek foi capaz de lidar com temas em que ninguém mais tocava na televisão. Em “A Última Batalha” (1969), episódio da terceira temporada, o confronto racial era travado dentro de um único corpo. Um alienígena cuja metade direita do rosto é branca e a metade esquerda é negra interioriza dentro de si a intolerância racial. Ele recebe a visita de outro habitante de seu planeta cujo rosto tem as cores invertidas. Ambos duelam dentro da Enterprise. A tripulação assiste ao confronto de ódio irracional e depois descobre, perplexa, que há um planeta inteiro em guerra, se digladiando apenas por causa do detalhe de habitantes com as cores do rosto em lados diferentes.

Tal engenhosidade na trama não teria sido possível sem uma equipe de roteiristas talentosa. Roddenberry soube se cercar de um grupo seleto de escritores, alguns que sequer tinham trabalhado para a televisão e que assim trouxeram novas abordagens. Nomes como Robert Bloch, Theodore Sturgeon, Norman Spinrad e Harlan Ellison revitalizaram a narrativa, experimentando conceitos como viagens em fendas temporais e em realidades que se bifurcam; ou, então, a ideia de uma pessoa poder estar em dois lugares ao mesmo tempo (algo que já havia sido explorado pelo argentino Jorge Luis Borges na literatura, por exemplo) e haver um embate corpo a corpo entre os dois “eus”, como é sugerido em “O Espelho” (1967), um dos melhores episódios da segunda temporada.

Mais do que tudo, Star Trek sempre foi sobre a essência do espírito humano, sobre buscarmos algo que esteja além do cotidiano. William Shatner, o mais icônico Capitão James T. Kirk, exemplificou isso em um monólogo eloquente no episódio “Volta ao Amanhã”. Na cena em questão, ele conjectura sobre as conquistas espaciais do homem e como elas sempre levaram ao perigo. “Risco”, ele diz, “o risco é o nosso negócio. É a razão de ser desta nave e de todos nós. É por isso que a tripulamos”. As viagens pelo admirável mundo novo vislumbrado por Roddenberry eram calcadas em princípios simples assim. E é por isso que a jornada segue em frente.