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Um ano da morte de George Floyd: como os protestos após o assassinato impactaram a cultura?

Um ano após a morte de George Floyd, diversos elementos na cultura mudaram (e outros nem tanto). A Rolling Stone Brasil conversou com Caio Ventura, da página Pretitudes, para refletir sobre as discussões culturais após o assassinato de Floyd

Camilla Millan Publicado em 25/05/2021, às 10h00

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Memorial de George Floyd no Brooklyn (Foto: Stephanie Keith/Getty Images)
Memorial de George Floyd no Brooklyn (Foto: Stephanie Keith/Getty Images)

Há exatamente um ano, o mundo se deparou com um trágico e violento vídeo no qual um policial branco se ajoelha sob o pescoço de um homem negro em Minnesota, nos Estados Unidos. George Floyd, o homem que morreu asfixiado depois de 9 minutos e 29 segundos nessa situação, foi eternizado por manifestações globais do movimento Black Lives Matter (Vidas Pretas Importam, em português) e importantes debates sobre cultura e sociedade. 

Desde então, houve muitas transformações mundo afora. Ruas trocaram de nome, estátuas foram retiradas e ocorreu uma mobilização internacional em busca de justiça para as populações negras. Filmes e séries de TV falaram sobre o movimento Black Lives Matters e músicas entoaram hinos em busca de justiça por Floyd e por todos os outros negros que sofrem com racismo nos Estados Unidos e ao redor do mundo.

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George Floyd se tornou símbolo de luta e resistência, assim como de um racismo sistemático responsável por milhares de mortes por ano em vários países, inclusive no Brasil. Dias antes do assassinado de Floyd em 25 de maio de 2020, os brasileiros também se mobilizaram pela morte de João Pedro. O jovem foi assassinado por policiais na casa dos tios, durante operação policial em uma favela em São Gonçalo, Rio de Janeiro.

De lá para cá, os assassinatos não pararam. Seja no Brasil ou em outros países, o racismo e a violência policial ocorrem há séculos. Por isso, Floyd não significou o início de uma luta antirracista, e também não representou o final dela.

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Mesmo assim, a mobilização internacional após a morte de George Floyd evidenciou importantes debates sobre racismo estatal. Além disso, os protestos tiveram grandes impactos nas discussões sobre cultura.

Manifestação em Nova York contra a violência policial e racismo (Foto: Spencer Platt/Getty Images)

O racismo na cultura 

A necessidade de uma reforma na polícia, a importância da representatividade e de justiça para as populações negras e a luta contra a normalização de violência policial ocuparam relevantes espaços culturais. Seja em premiações, séries, filmes, novelas ou músicas, entendeu-se, pelo menos momentaneamente, a relevância de questionar o papel da cultura enquanto propagadora de preconceitos e ideologias.

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Após os protestos, alguns produtos da cultura pop perceberam a necessidade de abordar o assassinato de George Floyd e repensar a maneira de falar sobre racismo e violência policial. A série Brooklyn Nine-Nine retrata o cotidiano de detetives de polícia em Nova York, e descartou quatro episódios da 8ª (e última) temporada para desenvolver uma nova narrativa centrada na morte de Floyd.

Além disso, uma cena da famosa série The Office foi excluída pelo criador Greg Daniels, pois tinha Blackface - prática racista na qual um ator branco pinta o rosto ou usa adereços para representar personagens afro-americanos de forma estereotipada.

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Estátuas e monumentos relacionados ao racismo e escravidão também foram retirados por manifestantes em protestos ao redor do mundo. Outros foram removidos pelo governo local após manifestações. Um exemplo notório é a estátua de Edward Colston, um dos maiores traficantes de escravizados do Reino Unido, derrubada por manifestantes em Bristol, na Inglaterra.

Nomes de ruas, mascotes de escolas, embalagens de produtos e esportes também sofreram mudanças ou entraram em processo de transformação. Um dos exemplos mais emblemáticos foi o time de futebol americano Washington Redskins. O nome “redskins” (peles-vermelhas, em português) é visto como ofensivo para as populações indígenas norte-americanas, e foi modificado para a título provisório de Washington Football Team - mas a mudança não ocorreu após uma revisão interna.

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A transformação ocorreu apenas após pressão de patrocinadores, que ameaçaram retirar investimentos do time. Inclusive, ao lembrar a história do clube, há diversos elementos a serem pensados: ele foi o último dos Estados Unidos a permitir jogadores negros, e só o fez depois do governo ameaçar revogar o contrato de arrendamento no estádio, em 1962.

Por isso, também é importante se questionar de onde surgiram as mudanças ocorridas após a morte de George Floyd. Elas resultaram de uma revisão interna, ou apenas foram o produto de uma pressão momentânea cujo significado se perde em meio à relevância financeira?

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Mudanças após George Floyd: verdadeiras ou apenas ‘hype’?

A Rolling Stone Brasil conversou com Caio Ventura, um dos responsáveis pela página Pretitudes no Instagram. Pesquisador e estudante de ciências sociais, Ventura falou sobre as mudanças na cultura após o assassinato de George Floyd - mas alertou para diferença entre as transformações genuínas e as momentâneas, apenas por pressão externa. 

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Caio Ventura (Foto: Ronald Santos Cruz)

“Tivemos um Grammy, de certa forma, mais diverso. Ele tentou ter diversidade tanto no campo do gênero quanto da raça. Tivemos um BBB que surpreendeu a população toda com nove negros. Foi uma mudança significativa. Teve o avanço no campo da publicidade, teve uma novela como Amor de Mãe - também com muitas problemáticas - mas com uma mensagem importante (...) Personalidades públicas começaram a ter lugar de fala para se posicionar, mas sempre ficamos na atenção se tudo é verdade de fato,” comentou.

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Apesar dos pontos positivos, algumas celebridades se posicionaram apenas pela pressão externa. De acordo com Ventura, a pauta antirracista é de “pensamento emergente”, mas de “necessidade contínua”, importante de ser abordada diariamente. Algumas pessoas famosas, contudo, trataram de forma emergente e momentânea: 

Ventura explicou: “Muita gente teve bom coração, mas tratou isso como emergente. Apenas, ‘Aí, precisa falar disso agora’. Mas, só agora é preciso falar? Não. Sempre houve espaço para essa pauta, assim como o debate de gênero, capacitismo, sexualidade... Não adianta pegar só um mês para falar. (...) Pensaram que era para falar nesse momento e acabou. ‘Agora pronto, resolveu. Agora a polícia vai parar de matar a gente’. Não vai, mano. Isso acontece todo dia.”

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Segundo o responsável pela página Pretitudes, também houve diferentes abordagens culturais nos movimentos negros. Um deles inviabilizou os protestos: a tela preta. Em junho de 2020, a “BlackOutTuesday” (terça-feira do apagão, em português) foi organizada por diversos perfis em solidariedade aos protestos do movimento Black Lives Matters. A iniciativa propôs a publicação de quadrados pretos nas redes sociais 

“A tela preta foi uma abordagem imputada de fora para dentro. As celebridades trouxeram para a população preta, achando que aquilo ia gerar uma pauta. Ao mesmo tempo,  invisibilizou o que estava realmente acontecendo: as manifestações. (...) O surgimento de algumas mudanças já não somou tão bem para muita gente no movimento. Eu torci o nariz a esse tipo de abordagem (...) Naquele momento, o mais necessário era evidenciar as manifestações, movimentos e denúncias.”

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Cultura é política: importância do protagonismo financeiro preto

Com os protestos após a morte de George Floyd, diversos produtos culturais foram postos em discussão. A mudança em séries, streamings, músicas e premiações evidenciou o aspecto político da cultura, que transmite valores e, de forma alguma, pode ser considerada neutra.

Caio Ventura, em entrevista à Rolling Stone Brasil, falou sobre a cultura ser uma ótica para interpretar o mundo e romper com o "isentismo": “Na escola, família, igreja e em todas as instituições nas quais a gente é formado, é passado essa narrativa de coisas neutras, como religião, futebol e cultura, indiscutíveis. Se discute sim, mas a partir de uma interpretação que garanta a manutenção e preservação daquilo compreendido enquanto humanidade,” comentou.

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“Tem um texto do Adilson Moreira, ‘O Que é Racismo Recreativo?’ que mostra como a cultura opera como um dos braços do racismo pra gente ter essa invalidação, marginalização de grupos e a hipervalorização de outros. Então, a cultura não é neutra ou algo visto de forma imparcial. Ela é um mecanismo de transmissão de mensagem, seja direta ou indiretamente,” continuou. 

Dessa forma, é importante entender também as perspectivas sobre o debate de racismo e estereótipos na cultura. Atualmente, a representatividade é um dos focos das novas produções de empresas como a Marvel, com um novo Capitão América negro. Os produtos culturais, entretanto, precisam ir além.

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“No fundo, por mais que a gente tenha um personagem negro e uma produção preta, o principal ganhador daquilo são os já pertencentes àquele meio, não quem está chegando agora. A gente ainda está ganhando representatividade. Eles continuam ganhando o que eles sempre tiveram: dinheiro, domínio, controle… Conseguir manusear a sociedade a partir do desejo deles.”, explicou Ventura.

O estudante de ciências sociais afirma sobre a importância do protagonismo financeiro das populações pretas na indústria cultural: “De nada adianta protagonismo representativo, se no financeiro você continua pobre, irmão. Não adianta você dizer ‘ah, mas a gente tem o super-homem negro’. Não adianta nada se o resto do povo tá pobre (...) Precisamos transformar essa representação em emancipação política, social e financeira do povo.”

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Brasil vs Estados Unidos: diferentes populações e mobilizações

Na época da mobilização internacional por justiça após a morte de George Floyd, as redes sociais brasileiras foram inundadas por debates acerca do colonialismo das pautas e protestos em território nacional. Afinal, o Brasil também tem diversos pretos e pretas mortos por policiais, então "por que não tem uma mobilização tão grande como no caso de Floyd?"

Segundo Caio Ventura, ao pensar nos dois países e nos protestos da população, é importante entender as diferentes formações das nações: "Essa comparação com João Pedro é ardilosa de se discutir porque passa por dois sentidos de discussão de muito negacionismo e desinformação (...). A morte do George Floyd e João Pedro tem a mesma base, que é o racismo. A reação de cada sociedade é diferente porque a estrutura é diferente dos Estados Unidos."

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Segundo Ventura, há uma narrativa no Brasil em que se questiona a população nacional e tenta identificá-la como "apática". A diferente formação entre os dois países, contudo, explica grande parte da diferenciação de mobilizações: "Existe uma formação totalmente diferente da black people americana (povo preto americano enquanto comunidade)," disse.

"Lá eles são minoria, o último dado era 13%. Eles tiveram que se unir e resistir porque eram minoria. Aqui no Brasil temos o movimento reverso de valorização das raças, dizer que todos são um povo só e vivemos em harmonia, de quebrar com a ideia de raça. Então não viram necessidade da gente trazer essas teorias de diferença de raça no Brasil," argumentou Ventura.

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As mudanças entre Estados Unidos e Brasil não excluem a importância de Floyd enquanto um caso emblemático mundialmente. O homem, que também era rapper, ficou conhecido, infelizmente, apenas após um vídeo brutal de seu assassinato viralizar nas redes sociais. 

Atualmente, poucos não sabem quem é George Floyd e como o assassinato do homem por um policial branco mobilizou milhares de pessoas ao redor do mundo. É fato: os protestos após a morte de Floyd levaram a importantes transformações sociais e culturais - mas ainda não é suficiente. O caso, mesmo de muita evidência, não significou o fim do racismo estrutural secular em diversas nações.

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Floyd é mais um capítulo triste de racismo e violência policial, mas impactou a sociedade. Pela primeira vez na história, um policial branco foi condenado pela morte de um afro-americano no estado de Minnesota: o ex-oficial Derek Chauvin pode cumprir até 40 anos de prisão pelo assassinato de George Floyd. É uma pequena mudança, mas faz parte de uma constante (e necessária) luta das populações negras por justiça.


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