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Um homem chamado Caetano

Neste aniversário de 70 anos de Caetano Veloso, relembre nossa primeira matéria de capa com o artista

MARCUS PRETO Publicado em 07/08/2012, às 07h00

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Caetano Veloso em 2007 - Daniel Klajmic
Caetano Veloso em 2007 - Daniel Klajmic

Texto publicado originalmente na edição 11 da Rolling Stone Brasil, agosto/2007.

A plateia parece estar no cio. Lotação esgotada. São três mil pessoas em pé, mais ou menos uniformemente divididas entre homens e mulheres. A maior parte parece ainda não ter chegado aos 25 anos, mas há também senhores com mais de 60. E adolescentes de 15, 16. É quinta-feira, 5 de julho, estou no Ginásio do Sesc de Santos (SP). Cada vez que o artista lá no palco, passeando pelos versos de suas novas e antigas canções, atravessa uma palavra carregada de alguma carga sexual, o público reage com gritinhos lascivos. Todos ao mesmo tempo, em uníssono, como se também tivessem ensaiado.

Estamos em plena turnê de Cê, o álbum “roqueiro” de Caetano Veloso. Álbum “roqueiro”? Se esse rótulo não é abrangente em medida suficiente para definir a sonoridade de Cê, muito ele pode dizer a respeito do conteúdo poético do disco (e desse show que dele se originou), tomado principalmente por sexo e ódio (ou seu par perfeito, o amor). Pode também explicar muito sobre esse reflorescimento sexual à volta de Caetano – o artista, o homem – que, neste mês de agosto, completou 65 anos. “O Caetano está em uma fase meio Beatles. Tem rolado um assédio, uma loucurinha”, comenta o guitarrista Pedro Sá, o mais velho dos três jovens músicos que dividem o palco com o cantor. “Nas outras turnês que fiz com ele sempre teve fã, gente que assediava, que chegava, que queria falar. Mas agora, além disso, tem um frisson, um faniquitozinho. Mulher que agarra, que pega, que quer tirar a roupa, que quer comer. Que perde a linha mesmo”, conta.

Não é à toa. Cê é o trabalho no qual Caetano mais se expõe sexualmente em toda sua carreira. Se não isso, desde pelo menos o começo da década de 1980. “Desde o [disco] que tem ‘Vera Gata’, eu acho”, tenta pontuar o próprio artista. Composta para Vera Zimmerman, a canção a que ele se refere está no álbum Outras Palavras (1981) e descreve a história, imagina-se que real, de sua “rápida transação” (como o próprio diz na letra) com a atriz. Sim, estamos falando de sexo. Em Cê, com Caetano na casa dos 60, a transação não precisa ser tão rápida. Em alguns momentos chega a ser delicada, minuciosa, muito mais poética – mas nem por isso menos erótica. Irmã caçula de “Vera Gata”, “Um Sonho” foi composta para Luana Piovani e descreve a história, não necessariamente real (principalmente se levarmos em conta o significado onírico de seu título), de seu “malho” (como o próprio diz na letra) com a atriz. Enquanto mostra a canção no palco, Caetano desenha com o gestual do corpo uma relação sexual inteira. “Sexo é um assunto central, um absoluto – não um tema entre outros. Para mim, para a minha vida, essa é a importância que o sexo sempre teve. Não tem nada a ver com ser atleta sexual, nem obcecado por sexo. Pelo contrário: reconhecendo que é um absoluto, o sexo basta que se dê. É muito simples. Porque é o que é. Não precisa muita coisa. Tendo aquele negócio, pronto. Rolando, chegando lá, já é importante”, avalia.

O artista diz não saber detectar diferenças entre o ato de criação de um disco “sexual” quando ainda se está na casa dos 30 anos e fazê-lo agora, aos mais de 60. E explica suas razões para recorrer ao tema com tanta sede neste momento. “Queria criar uma banda de rock que tivesse um som próprio, que desse um toque relevante para o panorama de criação de rock no Brasil do ponto de vista sonoro e estilístico. Timbrístico, também. E isso se deu. Nesse ponto, acho que fomos 100% bem-sucedidos”, afirma. “E precisava fazer um repertório que se adequasse a isso. O rock tem, desde o princípio, esse componente sexual quase como tema central – mesmo quando não é explicitado. Então, tendi a explicitá-lo em algumas letras. Gostava de estar fazendo canções em que esse tema aparecesse de uma maneira direta e intensa, com poucas informações, poucas imagens, poucas palavras. Gostava de fazer assim para este disco. Acho que a razão é mais essa”, reconhece.

Uma peça importante do mosaico sexual de Cê acabou não entrando no repertório do disco porque não estava terminada na época das gravações, mas entrou no roteiro do show. “Amor Mais que Discreto” foi composta a partir de “Ilusão à Toa”, clássico de Johnny Alf (que Caetano, aliás, também canta no show como introdução à sua), e aprofunda o contexto homoerótico esboçado em “Odeio”. “É linda! Essa daí é mesmo gay. Porque ela fala de ‘o amante do amante’. Eu adorei chegar nessa expressão porque não fica duvidoso, está explícito: é um cara que é, ou pode ser, ou desejaria ser, amante de outro cara. Eu tinha falado com os meninos, até brincando, que o Cê tem muita mulher”, ri.

As duas faixas, “Odeio” e “Amor Mais que Discreto”, abordam o amor (ou o sexo, simplesmente – ou a iminência de uma dessas duas coisas, ou das duas) entre dois homens: um velho e um menino. “Sou velho, então já dá para pensar nessa perspectiva”, diz o compositor. “Aquele modelo grego do homem com o adolescente é um arquétipo na cabeça da gente. E eu, no texto, gosto muito desse momento que diz ‘eu sou um velho, mas somos dois meninos’, que é diferente da nossa moral convencional cristã burguesa. E é diferente também do modelo grego, em que [o sexo entre um homem adulto e um adolescente] era quase que um tipo especial de heterossexualidade. [Em ‘Amor Mais que Discreto’] são dois caras brincando, dois caras curtindo o sexo deles, um com o outro.” Caetano rejeita inteiramente a leitura comum de que a temática gay, uma constante em sua obra desde o início – seja na poética, no discurso ou no comportamento – tenha entrado em cena simplesmente para provocar. “É um tema meu. Não entro em ambiente nenhum sem meus temas principais. Não iria deixar isso de fora”, afirma. “Independentemente de ser ou não relevante para todas as pessoas, a mim esse tema sempre interessou.”


S abe-se lá se por conta de sua sexualidade aflorada ou pela sonoridade incomum aos discos anteriores lançados por Caetano, Cê não agradou a todo mundo na família do cantor. “Meu irmão imediatamente mais velho que eu não gostou do disco e não gosta do show. Os outros gostaram. Minha mãe não foi ver o show em Salvador, mas não gostou muito do disco. Também não ouviu muito, mas não gostou. Meu irmão que mora em São Paulo, Bob, detestou. E quando foi ver o show, detestou também”, conta Caetano, entre quase gargalhadas. E vai apontando os possíveis motivos para o desinteresse familiar por sua nova música: “Eles não gostam de rock, eu acho. E aí, como tem som de rock... Mas Bob não gosta mais ou menos: diz que não gosta rindo um pouco. Mais gostando de dizer que não gosta do que não gostando propriamente”, Caetano imagina. “Isso é na família. Agora, nas pessoas que conheço é diferente: em geral, elas gostaram à beça. Eu gostei. Ficou um som mais claro e puro, posso cantar normal dentro daquele ambiente de banda de rock’n’roll e não ficar inadequado.”

A crítica se dividiu entre os muito entusiasmados com a virada de mesa do cantor e os que acham que o disco soa como mera “apropriação” da estética indie gringa do novo rock. Caetano não chega a se sentir agredido com esse segundo grupo e reflete sobre a impressão: “Na teoria, o Cê parece estar namorando as tendências da atualidade, do rock pretensioso, da juventude independente. Dizendo assim, friamente, sem ter a materialidade do disco ou do show na sua frente, parece uma coisa de adaptação às últimas novidades para estar antenado, atualizado, para estar ‘in’, estar ‘agora’. Mas existe o disco real, existe o show real, e o fato é que, neles, isso não se deu. Meu disco não é isso. Não é porque não é. Não é porque não é isso que eu quero. Basta ouvir”, desafia.

Pedro Sá, que codirigiu Cê com Moreno Veloso, o filho mais velho do cantor, tem 35 anos (a mesma idade de Moreno) e acompanha Caetano desde o disco Noites do Norte, de 2000. “Caetano estava a fim de fazer uma parada comigo, já vinha falando disso desde 2001. Ele tinha algumas ideias. Primeiro, queria fazer dois discos simultâneos, um de samba e outro de rock. Depois, imaginou um trabalho tipo Gorillaz, uma coisa meio anônima, como se fosse produzida, a voz dele distorcida”, conta Pedro.

Mas nada esteticamente muito próximo a isso aconteceu – não naquele momento. Antes que Cê se concretizasse, Caetano ainda lançaria outros três discos. Primeiro, um registro ao vivo com a íntegra do espetáculo gerado pelo CD Noites do Norte. Depois, Eu Não Peço Desculpa (2002), estimulante álbum dividido com Jorge Mautner – esse, sim, um precursor legítimo de Cê. Por fim, um projeto que o cantor vinha fomentando há bastante tempo e reunia canções que considerava relevantes dentro do repertório da música americana: A Foreign Sound (2004). Apesar de seu conceito sólido (equacionando as importâncias de Elvis Presley, Cole Porter, Bob Dylan, Duke Ellington, Steve Wonder, Irving Berlin, Nirvana e até de “Feelings”, do brasileiro-falso-gringo Morris Albert), o álbum soava burocrático, longo, arrastado, distante de qualquer peça que se pudesse esperar de Caetano Veloso. O pior trabalho do artista, talvez. “Eu não discordo nem muito disso quanto à apreciação. Ele é bonito e interessante, mas é frio de um ponto de vista de como eu estava. Eu não tinha muito interesse em fazer aquilo quando fiz”, assume o cantor. Ainda que esbarrasse no assunto rock’n’roll quando relia Elvis ou Nirvana, A Foreign Sound era, na prática e no ouvido, a contradição dos projetos que Caetano pretendia desenvolver com Pedro Sá. Frígido. Certamente por isso, por conta desse contraste, o impacto de Cê se deu com tanta eficiência.

Foi Pedro o responsável pela vinda dos outros dois integrantes da banda de Cê, Ricardo Dias Gomes (baixo, teclados) e Marcelo Callado (bateria). “Depois que acabou a turnê de A Foreign Sound, eu e Caetano começamos a estipular um cronograma, realizar mesmo o que já vínhamos conversando. Pensamos em fazer um disco ‘de banda’. Mas, ao mesmo tempo, que fossem poucas pessoas. Ele queria uma coisa com teclado e eu pensei imediatamente no Ricardo”, relembra o guitarrista. “Eu me lembro que, quando recebi o e-mail do Pedro, pensei: ‘Caralho! Porra! Vou tocar com o Caetano! O vocalista da minha banda agora vai ser o Caetano Veloso!’”, conta Ricardo Dias Gomes, rindo com a lembrança de seu deslumbramento inicial. “Mas, quando chegou o primeiro ensaio, já estava mais tranquilo. E acabou que o sujeito se desfez. Hoje em dia, não penso mais nisso, de jeito nenhum. Já passou, passou longe”, admite. Marcelo Callado foi o último a ser chamado. “Acho que o encontro espiritual foi instantâneo, mesmo”, diz o baterista. “A gente até já conhecia o Caetano de encontrar em festa, no BB Lanches, já tinha conversado meio rápido, mas não tinha a menor intimidade com ele. E rolou uma amizade, um encontro também de referências não só musicais, mas de outras coisas da vida. O papo rolou.”

Tudo isso, segundo os próprios músicos, fez com que o processo fosse muito mais rápido. “A gente marcou três semanas de ensaio e acabou ensaiando duas semanas e pouquinho. É uma coisa de banda, é quase amador, então rola mais fácil porque não tem um compromisso com o profissionalismo”, explica Pedro. E Ricardo completa: “Tinha ensaio em que a gente fazia três arranjos. Saía mandando mesmo, qualquer coisa, e ia moldando na hora. Nenhum de nós três nunca teve uma vida de músico mesmo, então nossa linguagem acaba fazendo com que esse

processo todo seja mais rápido”.


Há de se considerar em uma hora dessas a inacreditável capacidade de se adaptar (rejuvenescer?) de Caetano. O cantor vinha de uma longa e confortável parceria com o maestro Jacques Morelenbaum, que rendeu um total de 11 discos em 13 anos e formatou a sonoridade de sua música durante todo esse período. “Jacques é um supermúsico, é um maestro e pode dar toda a segurança que qualquer cantor precisa. De repente, [Caetano] corta para uma outra história, essa coisa meio descontrolada que uma banda é”, avalia Pedro. Mas a parceria com Jacques – que rendeu suculentos frutos, como o espetáculo de Circuladô (de 1991, que gerou o álbum Circuladô Vivo em 1992) ou o disco Livro (1997) – já andava desgastada. E o resultado de A Foreign Sound só reafirmava isso. Mas Caetano é muito grato ao maestro e dedica a ele uma das músicas do show de Cê. “Jacquinho é um artista extraordinário. Perdi muito o medo da música convivendo com ele, um músico muito superior a 90% dos músicos que conheço, e eu conheço muitos músicos. Uma das coisas mais frequentes no mundo da música é a força que a musicalidade de uma pessoa tem de intimidar aquelas que a têm menos. Pois ele nunca me intimidou com sua capacidade musical”, elogia. “Tenho saudade, ele também. Mas é muito bom para mim e é muito bom para ele. Não tenha dúvida, todo mundo sabe disso. Ele esperava isso [a separação] um pouco mais cedo, já me tinha falado. Não que tivesse vontade de se afastar, mas achava que, naturalmente, eu iria fazer uma coisa que não tivesse o negócio dele.”

O show de Santos foi quente, já podia figurar entre os melhores de toda a turnê de Cê. “Percebeu a diferença?”, foram as primeiras palavras que o próprio Caetano lançou, com um sorriso satisfeito no rosto, assim que me viu entrando em seu camarim depois da apresentação. A pergunta incitava uma comparação com o show imediatamente anterior, realizado um fim de semana antes, em Cuiabá, e que eu também tinha acompanhado. Não havia como negar: em Santos, todo o vulcão sexual de Cê tinha sido explorado por ele. E assimilado, digerido e devolvido pela plateia ao artista no palco. Rápida e intensamente. Era isso que Caetano queria. E era isso que queria também cada um dos pagantes. Tudo estava mais claro agora.

C aetano canta “como 2 e 2” em cima do palco metálico montado no Centro de Eventos do Pantanal, em Cuiabá (MT). É sábado, 30 de junho, e a cidade não está tão quente quanto sempre ouvi dizer que era. Mas também não faz frio. Na mesa ao lado, um grupo de quatro meninas de seus 20 e poucos anos passa o tempo tirando fotos delas próprias enquanto rola o show. Aproveitam os intervalos entre uma música e outra para gritar: “‘Leãozinho’! ‘Leãozinho’!”. Quando percebem que o cantor lá no palco não atendeu ao pedido, voltam aos próprios flashes. Sinto que essas garotas não destoam tanto assim do resto do público sentado ao meu redor. Minha vontade maior é ir para o fundo do ginásio, onde não há cadeiras, o ingresso é mais barato e o público mais atento ao show. Mas, dada a distância, a visão dali para o palco é quase nenhuma. Acabo desistindo de levantar da cadeira.

Cheguei àquela cidade no comecinho da noite anterior. A ideia era chegar bem mais cedo e passar o dia todo com Caetano, fazendo a primeira etapa de perguntas que gerariam esta matéria. Por conta de mais de cinco horas de atraso no vôo, nada disso aconteceu. E ainda perdi o passeio combinado à Chapada dos Guimarães que toda a trupe – tendo o próprio Caetano como guia turístico – fez à tarde. Quando pisei no hotel, eles ainda não haviam voltado. O remédio era esperar – não sem uma considerável dose de ansiedade – que o telefone do quarto tocasse. Coisa que só foi acontecer duas horas depois.

Do outro lado da linha, quem me chamava para subir ao quarto de Caetano era Giovana Chanley, assistente direta do cantor, a pessoa que o acompanha em todas as viagens das turnês. Ela parece entender bastante bem como lidar com a delicada função que exerce. “Durante as viagens, tento fazer com que ele se sinta um pouco em casa, que mantenha o máximo da rotina, porque pular de cidade para cidade – e chega e é outro quarto, é outra cama – é difícil”, ela me contaria depois. “Sei que ele gosta de Nescau, então eu trago a lata e ponho no hotel para ele. Principalmente quando a gente vai para o exterior e só existe Quick – que já não é igual ao Nescau de que ele gosta. Tiro toda a roupa da mala, mesmo que a gente vá ficar só um dia, peço para passar, coloco tudo no guarda-roupa, bonitinho, arrumado na gaveta. Porque eu acho que dá aquela sensação de não estar viajando. Nem sei se ele nota isso, mas faço questão de fazer.”

Chego ao quarto de Caetano, três andares acima do meu, e Giovana já me espera na porta. É a suíte presidencial, enorme como são sempre as suítes presidenciais. Ele está sentado à mesa da sala de jantar, com seu notebook aberto, “respondendo uns e-mails”, me diz sorrindo. Seus olhos estão vermelhos. Vai me explicando sem desviar a atenção da tela do computador: “Preferi falar com você agora, não dormi direito por causa da viagem, pretendo ir para a cama mais cedo hoje”. São mais ou menos 8 e meia da noite e, no caso de Caetano, ir para a cama mais cedo não é exatamente o que se imagina. Sabe-se que, antes das 6 da manhã, é impossível que ele já tenha dormido. “Ele fica trabalhando muito no computador, assiste filmes, faz as coisas à noite. E, durante o dia, descansa. Acordo-o no meio da tarde e vamos para a passagem de som”, conta Giovana. “Os horários dele são diferentes dos meus. Estou sempre disposta, porque durmo superbem. Isso é uma coisa que ele sempre brinca: eu entro no avião e, antes de decolar, já estou dormindo. E acordo só no lugar. Ele morre de inveja porque não consegue dormir. Mas isso é bom, porque estou sempre bem para quando ele precisa de mim, que é no final do dia e à noite, quando a gente começa realmente a trabalhar.”


O próprio Caetano sugere que peçamos o jantar e jantemos enquanto rola a entrevista. Ele escolhe um peixe ao leite de coco com legumes e uma salada. E Coca-Cola. Aceito a sugestão. Para começar a conversa, decidi ler uma frase que ele próprio escreveu em 1970, do meio do exílio londrino, para o jornal O Pasquim. Era um recado para Gal Costa, que acabava de lançar seu segundo disco solo: “Seu disco é muito bacana. Você deve ter brigado muito por ele. Com você mesma, com alguém, com alguma coisa”. Será que essas conclusões serviriam também para definir o processo de criação de Cê? “Não, não tive que brigar pelo disco”, ele responde. “Se tanto, comigo mesmo. Mas creio que nem comigo.”

Essa impressão, a de “você deve ter brigado muito por esse disco”, não vem apenas por suas quebras estéticas em relação ao que ele, Caetano, vinha fazendo imediatamente antes. Ela vem também, e com força de mesmo ou maior porte, do tom autobiográfico (e bastante agressivo) das letras. “Queria fazer um trabalho com a banda de rock com as coisas concentradas, peças concisas, com uma linguagem direta e certa violência. Tinha a intuição estética do que queria e ia procurando”, ele explica. “Os temas de separação, de brigas, estavam presentes na minha cabeça porque eu estava me separando. Mas, enquanto fazia, não considerava a maior parte daquelas coisas como diretamente ligada aos episódios da minha vida, embora alguns temas viessem com facilidade porque estavam no repertório da minha cabeça .”

A quela era, para Caetano, Uma fase conturbada. Seu longo

casamento com Paula Lavigne estava oficialmente terminado. Se o romance já havia rendido odes carinhosas como “Branquinha” (em Estrangeiro, de 1989) ou “Você É Minha” (em Livro,

de 1997), seu término inspirava agora temas de ódio – ou de amor ao avesso – como “Eu Não Me Arrependo de Você” ou mesmo “Odeio”. “Se você sofre uma perda amorosa e o mar está violentamente azul, e o sol, e as pessoas que passam são bonitas, isso dói muito mais. O único jeito de você lembrar daquela pessoa que você ama, e a intensidade de amor real, é poder sentir que odeia aquela pessoa na exuberância das outras coisas”, ele diz. “As imagens que me vinham eram as de Fernando de Noronha onde tinha estado dois anos antes de me separar. E me lembro de lá como um dos lugares mais deslumbrantes da minha vida. Eu não estava lá [quando fez a música], mas meus dois filhos menores e minha ex-mulher estavam. E eu fiquei pensando nisso. Na verdade, me coloquei no lugar deles, porque eu é que não estava com eles. Não era eu odiando alguém. Entendeu como é o processo? É muito indireto, jamais faria um negócio agressivo diretamente para uma pessoa, tornando público, como se fosse uma briga. Nesse ponto, a Paulinha sabe, ela é muito esperta para saber a distância entre uma canção e a vida.”

Ainda sobre esse assunto, Caetano conta que, quando mostrou, ao violão, a canção “Odeio” a Jorge Mautner, este teve uma crise de choro. “Depois, quando mostrei já gravada, ele chorava mais ainda. Mautner acha bonito que, na hora que entra no refrão dizendo ‘odeio você’, a canção, em vez de subir, desça e fique mais próxima, mais terna”, explica. “Então ele dizia: ‘A gente sabe que dizer ‘odeio você’ é a maneira mais próxima de dizer ‘amo você’. Parece um carinho’. Ele chorava lágrimas. E, na verdade, Jorge tem razão. Quando fiz a música, pensava justamente em como esses sentimentos de amor se convertem em ódio com muita facilidade. É o avesso da mesma fazenda. E a gente sabe disso, todo mundo sabe, mas nesse período eu pensava muito nisso, e sentia. Ou melhor, eu próprio não sentia isso, estava imaginando o que se sente, porque quando você tem briga de amor, tem muitas raivas. Mas não era o caso no período dessa música, não era isso. Estava pensando em como acontece isso com as pessoas, e não estava sentindo tanto assim em mim. Achava que o fato de haver tanto amor e estar desfazendo, que aquilo criava uma maneira de dizer o amor como ‘odeio’.”

A essa altura, já estamos jantando. Ao contrário do habitual, Caetano come primeiro o prato quente para depois partir para a salada. Por alguma força de sua influência, segui essa mesma ordem “invertida”. No dia seguinte, Giovana fez um comentário que me lembraria esse momento. “Trabalhar com o Caetano tem uma parte muito legal que é a de poder assistir as pessoas se aproximarem dele”, ela conta. “Tanto em relação aos fãs quanto aos amigos, eu vejo sempre muito esforço nas pessoas. Um esforço para não dar fora, para não falar alguma coisa errada. Todo mundo se posiciona primeiro para falar com ele.”

Numa conversa posterior, coloquei essa questão ao próprio Caetano. “Vejo isso menos do que uma pessoa que esteja observando de fora, porque só vejo as pessoas quando elas já estão comigo. Algumas são nitidamente mais inautênticas e demonstram esse tipo de coisa com muitas outras pessoas, não só comigo. Mas acredito que a maioria das pessoas que têm contatos reais comigo falam o que acham mesmo e reagem espontaneamente.” Em seguida, ele reverte o tema para seu lado e diz que também age de forma raciocinada com algumas outras pessoas. Cita o artista plástico Rogério Duarte e o escritor José Agrippino de Paula, autor do livro PanAmérica, dois artistas importantes para o mosaico de influências tropicalistas. E Chico Buarque. “Na presença do Chico fico excitado demais, falando muito. Ele é muito diferente de mim, gosto muito dele e não tenho vontade nenhuma de dizer alguma coisa que o desagrade. Sou muito tiete. As pessoas por quem tenho admiração, sinto essa mesma coisa que você está descrevendo. A pessoa vê que fico diferente. O próprio cara talvez não veja, porque só me vê quando estou com ele, mas os meus amigos, minhas mulheres, meus parentes vêem, sabem. E eu próprio sei muito. Então, é normal isso.”


Nosso jantar é sem pressa, vê-se que Caetano gosta de conversar. Ele arruma o peixe no garfo, leva o talher até a boca e desiste, prefere continuar seu raciocínio a engolir a comida, que, a essa altura, já está fria. “Adoro dar entrevistas, só não gosto de ler o que elas viram depois de impressas”, disse num sorriso de quem está dando um recado. Escolhe bem cada palavra. Começa a responder a uma pergunta e, se percebe que precisa entrar em outro assunto para que sua resposta fique completa, abre parênteses imaginários e o desenvolve por longos minutos. Vai longe, mas volta exatamente ao ponto de partida. Fecha os parênteses imaginários e termina de responder a pergunta original. Não se perdeu nenhuma vez durante mais de seis horas de conversa. Não quer saber do molho da salada. “Como folha pura. Em casa, faço um buquê de alface, rúculas e agriões e como, feito um bicho. Adoro azeite. Mas se for para molhar no azeite não vai dar para pegar na mão, e na mão é que é bacana.”

Falamos por quase quatro horas nessa primeira sentada – e só paramos porque esse era o tempo máximo que cabia no meu gravador digital. Ainda assim, só pouco mais de metade das perguntas anotadas estavam respondidas. Um novo encontro ficou marcado para o outro dia, depois do show. “Antes não é bom por causa da voz”, ele explicou. No dia seguinte, ele próprio decidiu que a conversa poderia ser antes de sua entrada no palco. Fomos no seu carro ao Centro de Eventos do Pantanal: ele na frente com o motorista, eu no banco traseiro com Giovana. “Você perdeu o passeio à Chapada dos Guimarães”, ele me disse sem olhar para trás. “É um lugar deslumbrante.” Conta que é lá que fica o Centro Geodésico da América do Sul, “um ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico” onde, segundo a letra de uma de suas músicas, “descerá o índio impávido que nem Mohamed Ali”. “[O guitarrista] Pedro Sá, que Moreno chama de Índio, ficou em pé em cima desse ponto

equidistante. Queria ter tirado uma foto disso para mandar a Moreno”, ele diz.

Moreno é, junto com Pedro Sá, o diretor do álbum Cê. E parece ter conseguido lidar muito bem com o fato de ser “o filho de Caetano Veloso” – o que, se considerarmos o tamanho do artista em questão, poderia ser uma experiência sofrida, cheia de expectativas frustradas. Mais ainda por Moreno também ter enveredado para o meio musical. “Nunca me preocupei com isso. Não esperava mesmo que nada disso fosse acontecer porque ele é ótimo e a gente se deu sempre muito bem. Eu adoro ele”, rebate o pai. Sua relação com o filho mais velho é interessante. Sabe-se que, muitas vezes, Caetano gosta de trocar de papéis com Moreno: ouve suas broncas, precisa de sua força. “O Moreno tem um espírito de mestre. Ele me situa com muita objetividade, é um conselheiro. Tem mais sabedoria do que eu”, elogia. Sabedoria prática? “Inclusive. Ele é muito objetivo. Moreno é uma personalidade peculiar: é sonhador e objetivo. Tem um senso de perspectiva do real muito desenvolvido. Aparentemente, é uma pessoa do mundo da fantasia, mas, quando nos falamos, ele me põe a perspectiva de uma maneira sábia.”

O camarim não é muito grande, nem chega a ser aconchegante. Mas é ali que retomaremos nossa conversa, interrompida na noite anterior. Giovana abre duas latinhas de Coca-Cola sem que ninguém peça (nessa hora me dei conta de que ela fez isso várias vezes, sempre sem que ninguém percebesse), uma para mim, outra para ele, e nos deixa a sós. Caetano se recosta em um enorme pufe preto e branco. Fico sentado no tapete. Ligo o gravador (desta vez, daqueles de fita). “Usei muito o gravador ao longo da vida para não esquecer das coisas das composições, mas frequentemente, mesmo tendo gravador, uso pouco, eu decoro”, ele diz. “Vou te dizer que perdi coisas e depois recuperei. Por exemplo, a Dedé salvou ‘Atrás do Trio Elétrico’. Não gravei e no outro dia não lembrava nada. Mas Dedé lembrava”, ele conta.

“Atrás do Trio Elétrico” foi feita no final dos anos 60 e é um clássico indiscutível para além dos carnavais. Tento trazer esse sentimento para nossa conversa: o do compositor clássico, o do mito, o do mestre da música popular brasileira. Ele parece não se afetar com essas palavras de cargas tão fortes. “Tenho pena de não ter trabalhado tão bem para as canções serem melhores”, dispara. “Acho que, em todas as minhas músicas, eu me dou por satisfeito antes de elas merecerem. Fica meio sujo, termino antes de estar pronto. É tudo meio assim. Raras vezes isso não aconteceu.” O melhor é reformular minha questão. Como será para Caetano Veloso assistir a um show dos Rolling Stones, por exemplo? Ele se vê ali, naquele palco, com um tamanho proporcional àquilo? “Penso no páreo, sim”, ele responde. “Do que é que a gente faz, do que é que essas pessoas fazem. E vejo muita coisa. Eu me lembro quando estava em Londres [entre 69 e 72], a primeira vez que vi esses espetáculos de grandes nomes. Vi todo mundo e fiquei chocado como era menos [do que imaginava].”

Agora, seus olhos não têm mais a cor avermelhada da noite anterior, sua voz tem mais brilho e seu sorriso é mais frequente. “Você me parece mais feliz hoje do que ontem”, arrisquei. Outro sorriso dele: “É porque dormi bem. Ontem, estava sem dormir e isso é uma coisa importantíssima para a felicidade de qualquer pessoa. Não acho fácil dormir. Estou mesmo melhor hoje por isso.” A falta de boas noites de sono se deve, em grande parte, ao ritmo intenso da turnê e ele próprio reclama de tanto trabalho. “Tenho show demais para fazer, estou um pouco preocupado. Fiquei mais velho e, em vez de ficar mais econômico das minhas forças, exagerei. Mas não quero deixar de fazer”, desabafa. “O mundo ficou muito maior para mim hoje, tenho muitos lugares para ir. Quando era jovem, tinha poucos lugares para fazer show, fazia um disco por ano”, compara. “Não dá, não tem mais condição. Depois daqui [de Cuiabá], emendo shows em Goiânia, Juazeiro, Feira de Santana. Depois tem América Espanhola, Europa, Estados Unidos. Até o final de novembro, dia sim, dia não. Em algumas cidades são duas noites, dois shows emendados. Fico muito acabado, ainda estou me recuperando da excursão no interior de São Paulo. Está meio barra.” No palco, Caetano realmente não se poupa. “Teve um show agora, acho que em Presidente Prudente [SP], em que Caetano desceu pelo palco. Era muito alto, então ele se pendurou na estrutura de ferro e ficou dando tchau”, conta Marcelo Callado. “Em seguida, desceu, foi lá embaixo, junto da galera. E a gente não o viu mais. Um bom tempo depois ele veio subindo pelo outro lado. Eu disse: ‘Porra, caralho, Caetano! Foi demais! Tu desceu!’. Ele falou: ‘É, nos anos 70 eu fazia muito mais. Eu olhava as estruturas para ver onde podia trepar. Hoje me deu vontade’.” Mas a situação é mais delicada fora do palco, principalmente quando se equaciona o número de envolvidos na realização de cada show. São 28 pessoas fixas viajando com ele (vale lembrar que a banda é pequena, de apenas três músicos). Segundo os cálculos fornecidos pelo contratante de Cuiabá, além dessas 28 pessoas, existem mais ou menos 100 outros, envolvidos em algum grau da produção: motoristas, divulgadores, seguranças, bilheteiros, garçons, etc. Tudo para que esse único show aconteça. Se esse cálculo estiver exato, são 128 pessoas que, em maior ou menor intensidade, precisam dele, precisam que ele faça shows, precisam que ele exista.


“Uma das coisas piores de envelhecer é a memória da gente. Isso atrapalha muito escrever prosa. Sinto uma diferença muito grande do tempo em que escrevi Verdade Tropical. Minha cabeça era de uma velocidade que, se precisasse de uma palavra, bastava convidar que ela vinha. Hoje, acho que preciso de um dicionário analógico e umas anotações. Acho minha cabeça devagar, nunca mais vou escrever com aquele ritmo bonito.” O passar dos anos foi um tema recorrente em nossa conversa. Muito por eu mesmo tê-lo estimulado, é verdade – e Caetano dava broncas, dizendo que é cedo demais para eu me deixar levar por esse tipo de obsessão. Mas muito por uma motivação própria do cantor, exposto também nos versos de Cê. O show, que começaria em menos de uma hora, traria de volta a pequena obra-prima “O Homem Velho”, canção feita por Caetano em meados dos anos 80 que já tratava do assunto com lucidez e lirismo. A gravação original era dedicada a Mick Jagger, Chico Buarque e a seu pai, José Telles Velloso, recém-falecido. Hoje, tem-se a impressão de que Caetano dedica a canção a ele próprio. “Eu me acho hoje parecidíssimo com meu pai. O clima, o jeito. Vejo às vezes na fotografia ou no vídeo. Aliás, minha família, minha mãe, meus irmãos, todo mundo lá em casa acha isso”, completa. O show de Cuiabá foi realmente confuso, desconcentrado. Caetano não gostou nem um pouco da reação do público, que falou durante as músicas e andou de lá para cá o tempo todo. “O pior show de toda a temporada do Cê, sem dúvida nenhuma”, afirmam os músicos assim que entro no camarim. Segundos depois, chegam ali quatro meninas, que identifico de imediato: são as mesmas que ficaram fazendo autorretratos durante toda a apresentação e, apesar dos incansáveis pedidos, não ouviram “O Leãozinho”. Sorridentes (eu me arriscaria a dizer que estão felizes de fato), contam ter adorado o show. Beijam Caetano, tiram mais fotos. Quase tímidas, vêm em direção aos músicos – eu sentado entre eles. Cumprimentam, um a um, nós quatro. Uma diz, olhando nos meus olhos, que toquei muito bem. Começo a entender que, nas mais de duas horas de show, elas não tiveram tempo de notar que, além de Caetano, só havia mais três pessoas no palco. Por fim, pedem, é claro, para tirar uma foto com a banda. Os meninos se voltam para mim com um olhar quase sádico, que logo entendo e obedeço: levanto, abraço os três músicos e três das meninas. A quarta, atrás da câmera, aperta o botão e logo diz, animada: “A foto ficou ótima!”.

S egundo a produção do João Rock – festival de música que acontece anualmente em Ribeirão Preto (SP) –, cerca de 30 mil pessoas haviam rodado as catracas do Estádio do Comercial para acompanhar as oito atrações desta sexta edição do evento. É sábado, 16 de junho. A maratona incluía bandas e artistas dos anos 90 e 2000, mas o show mais esperado da noite trazia de volta o som de um longínquo 1968. Com Zélia Duncan ocupando o posto que um dia foi de Rita Lee, Os Mutantes demoravam muito mais do que o normal para entrar no palco e de nada adiantava a gritaria vinda do mar de gente que aguentava firme desde as 5 da tarde até aquele momento, mais de duas da manhã. Fui chamado nos bastidores e recebi a notícia: Caetano Veloso estava a caminho do estádio e – momento histórico – participaria do show da lendária banda tropicalista. Era essa a razão do atraso.

Em 2007, a invasão tropicalista completa quatro décadas. Foi em 1967 que Caetano, acompanhado pelo grupo de iê-iê-iê argentino Beat Boys, apresentou “Alegria, Alegria” no Festival da Record. Que Gilberto Gil e Os Mutantes, também armados de guitarras elétricas, conquistaram o 3º lugar com “Domingo no Parque”. De lá para cá, muitas outras manifestações estéticas foram armadas no país, experiências musicais bastante renovadoras se deram. Mas a Tropicália continua reinando como o último grande movimento da música popular brasileira. Em entrevista que fiz recentemente com Lobão, ele reclamava justamente disso. E dizia que, no começo de sua carreira, tinha como plano “matar” a geração tropicalista para poder ser reconhecido como músico brasileiro. “Falava isso para o Cazuza em 1982, queria que nossa geração promovesse a ruptura com tudo isso. Mas não conseguimos”, disse Lobão na conversa.

Caetano reconhece que, na arquitetura do tropicalismo, ele já tinha vontade de que aquele fosse “um movimento para acabar com todos os movimentos”. Mas não concorda com o modus operandi imaginado por Lobão. “Não sei se isso é necessário [destronar quem veio antes]”, continua o baiano. “Talvez isso seja contraproducente, porque você entra na coisa parecendo que já não está acreditando tanto no seu taco. Penso como Jorge Luis Borges: ‘Um grande autor inventa seus precursores’. Ele fala que muita coisa anterior a [o escritor Franz] Kafka passou a ser mais interessante depois dele. Que o passado foi muito mais influenciado por Kafka que o futuro – ou pelo menos tão influenciado quanto.” Essa teoria parece ser confirmada com o depoimento que Lulu Santos deu recentemente aqui mesmo na Rolling Stone Brasil. Artista surgido na segunda metade dos anos 70 na mesma banda de Lobão, o Vímana, Lulu afirma que só conseguiu se interessar por samba (estética anterior ao tropicalismo) depois de o gênero ser processado – e clareado conceitualmente – pelos próprios tropicalistas.

Um capítulo sobre a geração do rock dos anos 80 seria incluído em Verdade Tropical, livro de memórias e ensaios que Caetano lançou em 1997. Mas o texto acabou ficando de fora da edição. “Ali eu falava sobre a questão dessa primeira grande geração de músicos de rock que funcionou no Brasil em todos os níveis: comercialmente, culturalmente, de personalidade”, diz. “Foi quando o rock dominou pela primeira vez o panorama da coisa brasileira. Mas os precursores disso pareciam para eles não existir. Nem Roberto, nem Erasmo, nem Celly Campelo. Não tinha nada. Nem Raul Seixas, nem Rita Lee, nada. Só Paula Toller deu atenção à Rita: é a exceção que confirma a regra”, continua. E começa a investigar os motivos: “É uma falta de vontade de admitir esse desenvolvimento orgânico da criatividade brasileira, do que acontece de fato aqui. E como isso vai encorpando. Cada um tem um desejo de se desvencilhar de tudo isso e se vincular automaticamente a um modelo de língua inglesa. ‘Não tenho nada a ver com Raul Seixas, nem com Roberto e Erasmo, nem com os tropicalistas, nem com a música brasileira. Mas tenho tudo a ver com Joy Divison ou The Smiths’. Parece que tem que ser uma adesão imediata a alguma coisa que é forte no mundo da cultura de massa dominante”.

Quando a van que trazia a trupe de Cê chegou ao João Rock, um bando de fãs dos Mutantes (já bêbados ou malucos) fechava a entrada do camarim, tentando uma palavra de paz e amor com os irmãos Baptista. Caetano desceu meio sem saber o que fazer. Como não viu nenhum rosto mais conhecido que o meu nas redondezas, veio diretamente na minha direção. Aproveitei a deixa para contar que estava louco atrás dele desde março, pois pretendia fazer uma matéria comemorando os 40 anos do tropicalismo, mas que achava agora que o melhor seria fazer sobre sua fase atual, sobre o hoje, sobre o Cê. Ele topou na hora. “Gosto de falar, falo sobre qualquer assunto, é só me perguntar que saio respondendo”, brincou.


Essa é quase a mesma frase que ele repete nos shows, quando cita suas constantes opiniões dadas sobre política (além de muitas outras) nos jornais e nas revistas. Eu mesmo, em uma das entrevistas que fiz para esta matéria, pedi um resumo atualizado dessas opiniões. “Toda essa comédia romântica da política brasileira pós-ditadura é até um luxo”, disse. “Porque depois do governo Sarney – um governo com altos e baixos – a gente teve o ‘meteoro Collor’. Este passou como um raio, foi horrível com aquela cafonada e aquela corrupção espalhafatosa, mas abriu o mercado. Tivemos o Itamar, que botou FHC pra fazer o Plano Real. Dois mandatos de FHC e agora dois mandatos de Lula. Se em pleno governo Sarney alguém dissesse, projetando para o futuro, que teríamos um governo de FHC e, depois dele, um governo Lula, iam dizer que era uma utopia, que era sonho dos sonhos. Pois bem, o que está acontecendo é o sonho dos sonhos, então é de assustar que isso tenha feito o sucesso que fez e vem fazendo.” E continua: “Lula tem muita sorte. Isso é bom. Eu considero isso como valor político. Porque, durante todo o tempo em que ele está, todas as configurações da economia internacional foram benéficas aos planos da política econômica brasileira. Ele consegue um ritmo. Sorte não, não é pura sorte. Ele tem um jeito dele. Aprendeu a fazer política, a sair ganhando de todas, se desvencilhando dos companheiros que se tornam problemáticos. Ele viaja na hora e, quando

volta, está certo de que se safa de todas. E ele se coloca bem para manter o sucesso que é ele ter chegado à presidência. O Lula é a Madonna. Ele é assim: ‘Vai fazer sucesso ou não? Quero provar que vou fazer mais sucesso do que todos’. A sensação que a gente tem até hoje é que ainda estamos na festa da posse do Lula”.

F oi inevitável, numa hora dessas, querer saber as opiniões de

Caetano sobre o ministério de Gilberto Gil, seu maior parceiro de jornada tropicalista e outras viagens. “Não esperava muito, não queria nem que Gil fosse para lá. Ainda disse: ‘Gil, você vai ser o Lula do Lula. O símbolo de um símbolo’. Mas ele queria ir”, comenta.“A meu ver, está sendo muito mais do que medíocre, muito melhor do que medíocre. Porque a mera presença dele deu uma visibilidade ao Ministério da Cultura que ele nunca teve antes. E essa visibilidade é tanto nacional quanto internacional, porque ele de fato é mesmo o Lula do Lula, para o mal e para o bem. Eu vou viajar para a Itália, França, Alemanha e os artistas, jornalistas ou pessoas inteligentes de lá, todo mundo adora Lula. Eu é que tenho que fazer as críticas. Mas fico orgulhoso. O Gil contribui muito para isso.” Poucos dias antes desse encontro, ouvi uma conversa de uma fonte mais ou menos confiável de que Gil estaria decidido a deixar de fazer música em favor da política. Seria o fim do músico, do cantor. Decidi checar a informação com Caetano. “Parece que ele já esteve mais assim [decidido a parar] do que agora, depois que fez essa excursão tocando violão pelo mundo todo. Eu tinha tanta vontade de que ele fizesse isso, demorou tanto para fazer. As pessoas precisavam ver que grandioso músico que ele é. E viram”, disse.

Mas esse tipo de reação não chega a ser exatamente uma novidade na história de Gilberto Gil. Caetano conta que, no começo dos anos 60, quando saíram os primeiros discos do então Jorge Ben, o agora ministro também decretou aposentadoria. “Gil dizia que nunca mais ia compor nem cantar nenhuma das músicas que havia feito. Só cantaria Jorge Ben. Eu tive que brigar com ele”, lembra. “Naturalmente eu amei Jorge Ben já na primeira vez que o ouvi, mas, àquela altura, jamais o compararia a João Gilberto, Carlos Lyra ou Tom Jobim. Depois, terminei botando Jorge lá na frente, mesmo, junto com João. Mas Gil teve uma intuição. Como se já visse naquilo que estava sendo feito pelo Jorge Ben o futuro já acontecido.”

“Eu me benzo quando o avião vai decolar. Eu faço o sinal-da-cruz.” Essa foi uma das últimas confissões que ouvi de Caetano nos muitos minutos que conversamos. Vi naquele ritual uma lógica, pois me lembrei imediatamente de versos do próprio artista, os que abrem “Milagres do Povo”: “Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar nem cansam de esperar”. “A gente não tem nem o direito de dizer que é ateu. Minha cabeça se fez, como indivíduo, em um mundo muito estruturado, e já tem na sua estruturação o componente religioso, às vezes tomado como determinante. E eu próprio não posso me desvincular disso, individualmente, sozinho. As coisas que faço são de uma certa forma consequência de caminhos que passaram pela questão da religião, e pela fé religiosa dos outros. Então, não é verdadeiro que eu esteja totalmente sem Deus, ou seja, ateu”, ele explica. “Mas, por outro lado, não consigo me identificar com as pessoas que se apoiam na crença religiosa. Porque é um terreno em que a opressão de indivíduos e grupos sobre os outros se exerce de uma maneira indiscutível. Acho isso chato, é um terreno propício para enganação e opressão total. Acho que essa questão religiosa é social e historicamente de grande importância. Não acho que seja um negócio que a pessoa simplesmente se desvencilha e joga fora. Mas olho para esses personagens todos – os bispos, os pastores, os papas, Cristo, São Paulo – e acho tudo igual, todos parecidos. Acho que o bispo [Edir] Macedo se parece com o Vaticano. E ambos achariam isso desabonador, e acho que ambos merecem.”

Além dos versos de Tenda dos Milagres, Caetano tem outra frase que desequilibra com bastante eficiência todas as certezas absolutas do homem inteligente frente ao Divino – e é ainda uma das mais bonitas declarações de amor e amizade a Gilberto Gil: “Eu não acredito em Deus, mas Gil acredita e eu acredito nele”. A frase continua valendo? “É muito mais do que isso. Porque os meus filhos acreditam, todos os três. E isso não veio da educação. Nem eu com a mãe de Moreno, nem eu com a mãe de Zeca e Tom demos isso a eles. Veio deles, mesmo. Veio do mundo e deles. Então, mais importante ainda do que Gil, eu não acredito em Deus, mas Moreno acredita, Zeca acredita e Tom acredita. E eu acredito neles três.”

Por se tratar de um festival de música, o show dos Mutantes no João Rock foi mais enxuto que os que a banda vinha fazendo até então. Se algumas canções fizeram falta para quem já tinha visto uma apresentação completa, a presença de Caetano dividindo os vocais de “Baby” com Zélia Duncan foi inesquecível. Era o reencontro do artista com a cama sonora que o apoiou em momentos históricos, lá nos primórdios tropicalistas, como na vaia ululante do festival de “É Proibido Proibir” ou nas temporadas da boate Sucata, ou nas poucas edições do programa de TV Divino Maravilhoso. Para mim, pessoalmente, a noite tinha valido também porque havia conseguido do próprio Caetano a confirmação que precisava para finalmente viabilizar esta reportagem. Agora, era partir para a parte mais difícil da história: tentar entender um pouco melhor como funciona aquela cabeça.