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Além da Disco

Em 1978, Donna Summer se encontrava no auge, mas tentava cortar as amarras da música dançante

Mikal Gilmore | Tradução: Ana Ban Publicado em 06/07/2012, às 12h04 - Atualizado às 12h05

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Reportagem publicada originalmente na edição 261 da RS EUA (março de 1978)
Reportagem publicada originalmente na edição 261 da RS EUA (março de 1978)

Até assistir Donna Summer no programa de TV Midnight Special, eu considerava a sua música simplesmente como sexo auditivo empacotado de maneira brilhante, nada com muita consistência ou apelo pessoal. Mas quando se juntou a Lou Rawls no palco, vestida como uma Cleópatra da Bloomingdale’s, ela cantou a versão mais emocionante de “Swing Low, Sweet Chariot” que eu já ouvi. Não era aquela voz murmurada dos discos. A segunda vez que a vi, foi no set de Até que Enfim É Sexta-Feira. Donna fazia o papel de uma cantora novata que tentava fazer com que um DJ a deixasse cantar uma música. Depois de várias recusas, ela se esgueira para dentro da cabine e tranca a porta atrás de si, de modo que os dois ficam lá sozinhos. Então ela abre o botão de cima da blusa e o encara com um olhar de canto de olho. Eu me lembro de que aquela foi uma das expressões mais curiosas que eu já vi, de olhos arregalados, contida e de um erotismo frio.

Mas agora, na época do Natal, quando Donna chega às instalações da Casablanca Records e entra na sala da executiva Susan Munao com um vestido de veludo verde esvoaçante e botas pretas de salto fino, ela não parece exótica nem erótica, apenas exausta. Ela tem aperto de mão firme e sorriso simpático, mas seus olhos arregalados estão vermelhos. Sua silhueta alta é musculosa, o cabelo preto ondulado enquadra seu rosto, marcado pelo nariz um pouquinho batatudo e menos anguloso do que nas fotos dos álbuns. Quando Susan sai para pegar refrigerantes, Donna se afunda em uma poltrona giratória e solta um suspiro exagerado.

Em um discurso que parece ensaiado, falado com um ocasional sotaque de Boston, Donna atribui seu cansaço ao regime de entrevistas e ensaios dos últimos dois dias. Começa a explicar detalhadamente sobre seus planos de levar Once Upon a Time (seu álbum mais recente) ao palco. Susan anuncia que Michael, o namorado da cantora, gostaria de falar com ela. “Ele está com os cartões de Natal que você queria”, diz. Michael, um loiro alto vestido com jaqueta acolchoada de cetim vermelha e branca, entra saltitando na sala e coloca um cartão na frente de Donna.

“Não”, ela diz e o arranca da mão dele. “Isto não vai servir. Não dá para saber quem é quem. Isso aqui é uma caricatura de Neil Bogart [presidente da Casablanca] ou de Jeff Wald [o outro empresário de Donna, ao lado de Joyce Bogart, na época]?”

“Bom, acho que esse é Neil”, ele responde. “Dá para ver porque ele é meio gordo.” Antes de sair, Michael comenta que tinha conhecido um curandeiro vidente naquele dia e pediu a ele que marcasse um horário para Donna.

Depois que o namorado se retira, eu digo à cantora que parece que ela está passando por um momento difícil. “Ah meu Deus”, ela diz e solta o ar demoradamente. “Nem tenho como começar a contar. Tanta coisa aconteceu. Voltei de uma turnê pela Itália que foi tão mal organizada e mal planejada que eu achei que ia me partir ao meio. No aeroporto, eu estava passando tão mal que precisaram me dar oxigênio e me levar de cadeira de rodas para o avião. E eu só conseguia pensar que tinha de fazer um show naquela noite. Em certo ponto, a máquina quebra. Eu tenho vontade de chorar e me livrar de tudo, mas às vezes eu me sinto tão reprimida que não consigo. E é aí que fico com medo.”

Mais do que qualquer outra personalidade, Donna Summer passou a simbolizar a disco. Nos padrões rígidos do estilo, o papel do artista é reduzido ao de um objeto ao qual o termo “artista” mal chega a se aplicar. Poucos astros de disco imprimem seu estilo próprio ao gênero ou conseguem fugir dos estereótipos. Donna, além de ser o exemplo mais flagrante de transformação em objeto no gênero, também é quem rompe barreiras desta ideia da maneira mais bem-sucedida – e acaba transcendendo a própria disco.


Em seus primeiros hits, principalmente “Love to Love You Baby”, Donna e seus produtores – Giorgio Moroder e Pete Bellotte – fortaleceram o estilo e deram a ele personalidade: ela se transformou em uma megera servil com voz sussurrada, entoando e gemendo por cima de uma batida de metrônomo que tinha toda a intensidade de um ato sexual consensual entre androides. O pessoal da revista Time marcou prodigiosos 22 orgasmos durante e performance da canção. Mesmo que sua personalidade fosse duvidosa e de valor limitado, ainda assim surtiu os resultados desejados: Donna se transformou na artista mais conhecida da cena disco – uma das poucas que duraram – sempre com vendas consistentes.

Mas os dois álbuns lançados por ela em 1977, I Remember Yesterday e Once upon a Time, representaram um afastamento ambicioso da imagem de marionete sensual e de seus maneirismos, como os vocais sussurrados, e às vezes fogem da disco. I Remember Yesterday foi uma amostra aleatória de estilos de vocal pop do século 20. A faixa-título remetia à era do jazz de Hollywood. Já “I Feel Love”, o maior single do álbum, era um idílio eletrônico. Once upon a Time, de acordo com Donna, “é o primeiro disco que eu realmente posso dizer que faz parte de mim”. Ela e o letrista Pete Bellotte retrabalham o conto de fadas de Cinderela, transplantando-a do castelo e da paisagem de seda de antigamente para um pesadelo urbano com toques de Fritz Lang em que a claustrofobia é ao mesmo tempo a maior doença e o grande ímpeto da gata borralheira.

A própria infância de Donna em Boston como Donna Gaines, filha de um eletricista e de uma professora primária, segundo ela, não se distanciava muito do cenário de Once upon a Time. “Fui criada em uma família com cinco meninas e um menino, e nós morávamos em uma casa de três famílias. Por isso precisava competir. Para ser ouvida, era necessário falar alto. Ou então tentava encontrar um canto vazio onde desse para sentar e fantasiar sobre estar em algum outro lugar. E a escola também não era nada fácil. Eu estudei com pessoas violentas e ficava de fora porque não conseguia viver com aquela premissa separatista entre negros e brancos. Racismo? Só fui saber o que isso significava quando fiquei mais velha.”

Cantar se transformou em uma maneira para Donna afirmar o seu valor. Apesar do diretor do coral da igreja em que ela participava sempre recusar seu pedido para fazer um solo, ela sabia que tinha voz. “Porque quando eu gritava, eu gritava alto”, Summer conta. “Eu só não estava fazendo do jeito certo. Então, era aí que eu ia para o quarto dos meus pais fazer exercícios de respiração e escutar álbuns de Mahalia Jackson.” Em vez da igreja, sua estreia profissional aconteceu no Psychdelic Supermarket de Boston, em 1967, com uma banda chamada Crow.

Donna deixou Boston em 1967. Aos 18 anos, aceitou um papel em uma montagem de Hair, na Alemanha. Em Munique, ela se casou com um ator austríaco da trupe, Helmut Sommer (hoje eles estão divorciados, mas ela ficou com o sobrenome e anglicizou sua grafia); teve uma filha, Mimi (que fica com a família dela, em Boston); cantou nas produções da Ópera Folclórica de Viena de Porgy and Bess e de Barco das Ilusões e passava as tardes fazendo backing vocal no estúdio Musicland de Munique. Foi lá que ela conheceu os produtores Giorgio Moroder e Pete Bellotte e, juntos, emplacaram hits pop na Europa.

Moroder tinha acabado de licenciar seu selo Oasis para a Casablanca para a distribuição norte-americana, em 1975, quando ele e Donna gravaram “Love to Love You Baby”, que fracassou em todos os mercados europeus que antes tinham tocado músicas da cantora, menos um: Paris. Quando Neil Bogart recebeu “Love to Love You Baby”, sua sorte tinha apenas começado a mudar. Era o início do enorme sucesso do Kiss e parecia que aquilo ia salvar a Casablanca da falência. Bogart gosta de alardear sua sorte de fracassado que deu a volta por cima. Segundo a lenda, a primeira vez que ele tocou “Love to Love You Baby” foi em uma festa em sua casa, em que os presentes ficaram pedindo para que a música fosse repetida vez após outra, porque queriam dançar. Bogart então apostou em uma versão completa para o álbum dela e ligou para Moroder em Munique para pedir mais uma faixa.


“Sabe o que eu costumava dizer às pessoas?”, Bogart pergunta. “Leve Donna para casa e faça amor com ela – com o álbum dela, quer dizer. Ele vai se tornar parte da sua família.” Nesse raciocínio, a Casablanca promoveu o álbum incentivando as estações de rádio a tocá-lo à meia-noite, patrocinando “17 minutos de amor com Donna Summer”, apesar de ter concentrado seus esforços nas discotecas que estavam começando a brotar por todo o país.

Será que na época Bogart se preocupou com a possibilidade de o hype sexy de Donna limitar sua credibilidade? “Hype. Que palavra tão maravilhosa, tão mal usada. A imagem do sexo não preocupava tanto a mim quanto preocupava outras pessoas – ou Donna. Eu não tinha dúvidas de que ela iria florescer. Ela passou de musa disco a artista que caiu no gosto do público em geral”, fala o empresário.

“Aos poucos, está começando a ficar mais fácil para eu dormir”, Donna exclama, enquanto pega alguns salgadinhos de tortilla em uma tigela à sua frente. “As horríveis dores de cabeça desapareceram. Mas, durante algumas semanas, foi uma tortura”, completa. Estamos acomodados em canto reservado do Carlos & Charlie’s, um local reservado na Sunset Strip, em Hollywood. Donna faz careta depois de comer um salgadinho apimentado e fala sobre seu encontro com o vidente. Ele disse que, antes que pudesse remover a “negatividade” ao redor dela, ela primeiro teria de examinar de perto as pessoas que cuidavam de seus negócios. Por coincidência ou não, desde que nós nos encontramos um mês antes, ela colocou fim a seu relacionamento com os antigos empresários e chamou Susan Munao, da Casablanca, para trabalhar com Joyce Bogart na administração. E Michael, o namorado que a apresentou ao vidente, já era.

Fico imaginando, tendo em vista a imagem derivada da disco de Donna – será que ela também não se sente manipulada? “O tempo todo”, ela diz e deixa a cabeça cair para o lado, em uma pose de menininha contando um segredo. “E é assustador quando você percebe que é uma peça na máquina. Mas é possível mudar. Era como ser um objeto. A imagem e a pessoa eram vendidas como uma coisa só, e eu dizia: ‘Não, espere. Eu sou mais do que os olhos veem – talvez uns dez quilos a mais!’ Na época de ‘Spring Affair’ [1976], cansei. Eu não podia continuar cantando músicas suaves. Passei a vida cantando na igreja e na Broadway. Para isso é necessário ter voz potente. E, como a minha pele é negra, sou categorizada como uma artista de música negra. Eu nunca fui cantora soul. Eu canto pop.”

O garçom traz a salada do chef para Donna. “Ah, não”, ela diz e o chama de volta. “Desculpe, eu...”, ela passa por um momento para o alemão, então se dá conta e fala: “Esqueci de dizer que sou alérgica a queijo. Será que você pode trocar?” Reparei quando ela começou a falar em alemão duas ou três vezes antes, então pergunto como foi voltar para os Estados Unidos. “Foi assustador. Em Boston, foi um choque. As pessoas não me entendiam, uma negra que falava alemão. Eu só fui me acostumar no ano passado, quando terminei com o meu namorado alemão.” E a Califórnia? Ela espia por cima do ombro e olha para a janela com vitral que enquadra as instalações da Casablanca do outro lado da rua. “A Califórnia nunca vai parecer um lar para mim. Eu me entedio quando passo de carro pelas ruas lindas de Los Angeles. Parece loucura, mas a minha vontade é simplesmente ir para Nova York e ver as pessoas sofrerem. Eu sei que existe outro tipo de mundo que eu não tenho como ver, que estou protegida dele, mas eu tenho consciência dele porque foi lá que eu cresci. É como se eu estivesse deslocada do mundo real.”

A ocasião é a última noite da primeira temporada de Donna Summer como atração principal no High Sierra Room do Sahara Tahoe. Estamos na sala de espera no backstage. Apesar deste cantinho cheio de alegria, o clima entre as pessoas que esperam para ver a estrela é reservado. A primeira apresentação da noite de Donna tinha sido prejudicada pelo sistema de som que flutuava de maneira bizarra e pelo público que tinha ido lá para jantar e estava quase em estado de coma. Joyce Bogart me informou que “este é o público dela. Ela atrai público que, entre 60% a 80%, é formado por brancos com mais de 45 anos de idade, e isso significa lugares como Lake Tahoe e Las Vegas”. Donna diz que é porque consegue encontrar “recrutas” para sua música neste tipo de plateia. Mas hoje à noite não havia nenhum recruta à vista, e, quando Donna saiu do palco, estava quase se desmanchando em lágrimas.


Mas, agora, quando ela sai de seu camarim, que é um cubículo, e entra na sala de espera, o clima de meia hora antes parece ter sido esquecido. Usando um quimono curto azul de seda e com um sorriso adorável, esta é a Donna Summer da capa de seus discos – totalmente reluzente. Uma hora mais tarde, momentos antes de sua última apresentação da temporada, Donna e três de suas irmãs, que fazem backing vocal para ela, abraçam-se em uma roda apertada de oração. “Senhoras e senhores”, anuncia uma voz de locutor de FM. “O High Sierra Room tem orgulho de apresentar a ‘Primeira-Dama do Amor’.” Donna ocupa seu lugar no centro do palco, cantando “Could It Be Magic”, de Barry Manilow, uma de suas preferidas. Com o apoio de uma orquestra completa e um sexteto rítmico afiado, a apresentação de Donna tira a ênfase de suas fontes disco e reforça sua faceta cabaré. Ela vira Sophie Tucker em “One of These Days”, Judy Garland em “I Got It Bad (And That Ain’t Good)” e emula a heroína Josephine Baker em “My Man”.

Quando ela chega a “Love to Love You Baby”, a batida disco toma conta. Ela chega bem perto de copular com o stand do microfone, contorcendo-se para cima e para baixo de sua haste. A julgar pela reação do público, esta continua sendo a Donna Summer que as pessoas conhecem bem. De repente, com apenas um piscar de olhos entre as músicas, a batida se transforma em “I Feel Love”, sobrepondo algo gélido ao erotismo. Donna começa a dançar em movimentos angulosos e espasmódicos, e seu rosto se torna uma máscara atordoada e mecânica.

Então, quase como se a “faixa-pipoca” hipnotizante de Moroder fosse restritiva demais, ela canta “Feel It!” na contrabatida, transformando a música em um gospel fervoroso e contorcendo-se em uma dança infantil. Eu me lembro desse momento no fim do segundo lado de Once upon a Time, quando, depois de 15 minutos de tensão eletrônica brilhante, o sonho de Cinderela se torna realidade, assinalado por um floreio de piano acústico. Donna tinha dito: “No começo fui tratada como um tipo de novidade, mas isso era esperado. Eu não era um hype. Marilyn Monroe deve ter passado por isso, representando uma loira burra enquanto virava algo maior. Ela não conseguiu fazer as pessoas acreditarem nisso e o resultado foi a morte. Eu não quero que isso aconteça comigo.”

Depois do bis, Donna cambaleia para as coxias com cara de quem vai desmaiar e precisa ser ajudada a sentar. Um assistente de palco coloca uma máscara de oxigênio sobre o rosto dela, mantida a mão devido à altitude de Tahoe. Sentada ali, respirando com dificuldade, com os olhos grandes espiando o invólucro de plástico preso a seu rosto, Donna parece levemente assustada, muito cansada – e absolutamente indolente. Mas o olhar dela é gentil, não é duro – o olhar de alguém que acaba de conquistar uma plateia difícil, mas espera deparar com outra ainda pior. É a indolência de alguém que se entrega – não ao seu lugar, mas ao seu tempo.