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Sonhos de Samba

Sem deixar de lado sua visão de mundo sensível - e por vezes incompreendida -, Criolo troca as picapes pelo cavaquinho em um trabalho dedicado ao mais brasileiro dos gêneros musicais

Lucas Brêda Publicado em 19/04/2017, às 18h17 - Atualizado em 25/04/2017, às 16h29

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Por dentro da mente do rapper mais sensível do Brasil (e os detalhes do novo disco, dedicado apenas ao samba) - Gil Inoue
Por dentro da mente do rapper mais sensível do Brasil (e os detalhes do novo disco, dedicado apenas ao samba) - Gil Inoue

‘‘Acho que eu prefiro ao contrário”, opina Daniel Ganjaman, sentado com um computador aberto à sua frente, explicando um arranjo para um time de percussionistas no estúdio paulistano El Rocha. O amplo cômodo carrega o mesmo clima harmonioso da pacata esquina onde fica o local, no bairro de Pinheiros. Ganjaman trabalha em mais um disco coproduzido por ele e pelo renomado baixista Marcelo Cabral. Juntos, os dois forjaram a identidade sonora que, contemplando uma série de composições inspiradas de Criolo, resultou em Nó na Orelha (2011), disco divisor de águas na carreira do rapper. Desde então, a parceria Criolo-Ganjaman-Cabral tem sido uma constante. Mas a situação no último mês de março era um tanto diferente: em vez de picapes, havia uma série de instrumentos de percussão; no lugar de guitarra e teclado, cavaquinho e violão de sete cordas, além de dois músicos em instrumentos de sopro. Ali, eles levantavam o repertório da próxima empreitada de Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo: um álbum composto apenas de sambas.

Posicionado exatamente entre os dois produtores, e de frente para os outros instrumentistas, ele tem o semblante sereno. Veste uma camiseta vermelha folgada, estampada por uma ilustração de Notorious B.I.G., sobreposta por um moletom da LAB, marca de Emicida e Fióti. Criolo contempla uma pasta com letras e anotações. “O tempo fechou na favela, tem fera engolindo fera”, versa melodicamente o rapper/cantor, erguendo os braços, depois de uma introdução afiada de flauta e trombone. A música, única não inédita no projeto, é uma cocomposição de Ricardo Rabello, companheiro de Criolo na roda Pagode da 27 e principal parceiro dele na composição de sambas. Rabello está presente na sessão de estúdio, comandando o cavaquinho. O rapper fala pouco, mas exerce liderança definitiva quando se inclina ao microfone para cantar, injetando o sentimento que determina por onde cada canção vai caminhar.

É geralmente assim, sem imposições verbais e completamente apoiado na espontaneidade, que Criolo funciona. “Sempre tem um samba nos meus discos”, justifica, em conversa posterior ao ensaio, no estúdio já vazio e silencioso. “Eu nunca penso: ‘Vou gravar um disco’, tá ligado? Não é porque eu tenho uma ideia na cabeça que eu vou parar todo mundo e forçar a fazer um álbum. Eu espero que esse sentimento inunde as pessoas que estão do meu lado. Desde quando a gente se conheceu [há mais de sete anos] eu venho mostrando sambas para eles. Uns dois anos atrás comecei a fazer mais ainda e, recentemente, veio muito forte isso, de querer escrever outras coisas. Tenho minhas vontades, mas é naturalmente que aquilo vai tomando todo mundo, até chegar o momento: ‘Vamos juntar tudo, ver o que tem’.”

‘‘É assim”, Criolo anuncia, antes de levantar da cadeira e buscar um tamborim, para então começar a batucar e caminhar lentamente enquanto fala. “Não sei tocar nenhum instrumento, mas penso todos eles na minha cabeça. Aí o Rabello puxa algum acorde e eu [cantando]: ‘É o boca fofa’. Um ‘boca fofa’ é uma figura mentirosa. Aí veio o [gancho] ‘língua felina, menina, amor’. Mas homem também é fofoqueiro, então: ‘Língua felina, menino ou menina, amor ou desamor’. Só que aí você pensa: se você tá falando do linguarudo, você também tá sendo linguarudo. Como eu vou contar isso ficando de fora? Aí, o Rabello chamou, e eu: ‘Logo percebi pelo tamanho do caixão, que o velório do linguarudo chegou/ E foi ficar no benzimento, na oração, família sofre independente do irmão/ Quando eu me vi, estava nessa situação: um linguarudo abraçado em outro no caixão’. Eu falando da vida do defunto. Mas isso é em fração de segundo, é o que te puxa, e vai indo. São muitos anos escrevendo rap, convivendo com a palavra.” Criolo explica sua música com pureza, ainda que nem sempre o ouvinte consiga captar suas mensagens de cara. (Talvez por isso ele tenha se tornado meme com a fala “Alguém nos ajude a entender”, em entrevista ao ator Lázaro Ramos no programa Espelho, do Canal Brasil. Quando se presta atenção ao discurso na entrevista, percebe-se que a fala de Criolo não é vazia – muito pelo contrário, tem todo sentido.)

As 11 faixas do álbum – previsto para o fim de abril e sem título definido até o fechamento desta edição – vêm para expandir os sambas que Criolo gravou no passado: “Linha de Frente” (Nó na Orelha), “Fermento pra Massa” (Convoque Seu Buda, 2014) e “Até Amanhã” (single da coletânea de 2016 Se Assoprar Posso Acender de Novo, com artistas contemporâneos interpretando músicas inéditas de Adoniran Barbosa). São canções sentimentais e urbanas, confissões ou causos que funcionam como interseção entre o imediatismo do hip-hop e as alegorias do samba, carregados do espírito cronista de “Freguês da Meia-Noite” ou “Não Existe Amor em SP”.

“O rap me ensinou a lidar com meus sentimentos, então a rima vem daquele jeito, mas [desta vez] mistura com o que vem do meu pai, que ama Martinho da Vila, tem vinil do Moreira da Silva em casa”, explica o rapper, que inclusive participou de duas músicas do mais recente disco de Martinho, De Bem com a Vida (2016), e promoveu o encontro do pai com o ídolo. “Meu pai foi metalúrgico, jogava futebol na várzea e sempre gostou de samba. Não sabe tocar nem cantar, mas, no possível, quando sobrava um dinheirinho, comprava um vinil. Já foi surreal o convite, mas meu pai ficou feliz demais, conheceu o ídolo da vida.”

Além da influência paterna, Criolo frequenta o Pagode da 27, do qual integra a ala de compositores, um incremento à sua agenda de rinhas e eventos de hip-hop desde o fim da década passada. “Não posso falar por todos, mas fazer rap sempre foi algo meio solitário para mim. Era algo muito novo e ninguém queria ouvir a gente. Você com 12 anos de idade, aquele sofrimento, aquela fome, ver gente morrendo enquanto ia para a escola. Eu ficava: ‘Pai, por quê?’ Então, era eu comigo mesmo, só mostrando aos poucos e para pessoas do bairro. E também não tinha dinheiro para comprar equipamento”, ele relembra. “No samba tem muita gente. É o cara do rebolo, o cara do cavaco, do violão. E o samba é universal, é o Big Ben da música brasileira, até quem não gosta sente alguma coisa.”

Durante o ensaio no El Rocha, Marcelo Cabral interrompe a performance de uma das canções mais melancólicas do repertório. “Não era esse o mapa da música”, diz, indicando que Criolo se excedeu em uma estrofe. Quando o violão puxa novamente a lamuriosa introdução, o rapper volta a soltar a voz, tomando cuidado para manter a dedicação e ao mesmo tempo não desvirtuar o tal “mapa”. A concentração é refletida no desempenho: uma harmonia vocal típica de samba-canção, sem a imposição de intérpretes clássicos como Jamelão ou Roberto da Silva, mas com uma pegada singela pouco explorada por Criolo anteriormente.

Às pessoas próximas que encontrava durante a feitura do disco, Criolo repetia: “Ouviu as músicas? Tá ficando p-e-s-a-d-o”. A empolgação, apesar de sutil, evidencia o caráter do projeto, muito mais a realização de um desejo de longa data do que uma empreitada comercial ou artisticamente ambiciosa. “Ele é nego veio, né? É difícil tirar um sorriso do homem”, comenta Criolo, falando da reação do pai ao ouvir os sambas. “Mas ele está acompanhando tudo, e está vibrando junto. É como se fosse um sonho dele também.”

Quando não está em turnê, Criolo se divide entre um apartamento no centro e a casa dos pais no Grajaú, o distrito mais populoso de São Paulo (quase meio milhão de habitantes), no extremo sul da cidade. “Minha rotina é simples: acordar, pensar em música, resolver alguma coisa relacionada a música, comer. Aí, se está com o pai, dá atenção a ele, se está com a mãe, ajuda em alguma coisa, se tiver um sobrinho... Então, volta para algum bagulho de música. Depois é comer um negocinho e quando vai ver está lembrando daquela outra música antes de dormir”, narra. Criolo costuma ir para a cama antes das 21h e acordar entre 5h30 e 7h todos os dias. Diz nunca ter usado nenhum tipo de droga ilícita. Também não bebe.

“É que dá a impressão que sim, né?”, ele ri. “Muitas pessoas chegam para mim e para o Dandan [que também não usa drogas], veem uma pessoa calma, e quando eu subo no palco é bum! Ninguém acredita que é o seu natural. Não vou falar que não gosto porque eu nunca experimentei. O que vou dizer? Vou mentir criar um personagem, uma cena? Isso é zoado, mano. Eu tive um problema de droga: ver meus amigos morrerem ou sofrerem por causa de droga.”

Criolo é centrado desde que se entende por gente. Era aluno “nota C” na escola, mas nunca seguiu um caminho diferente daquele aprovado pelos pais, que se mudaram para o Grajaú quando ele tinha menos de 5 anos. “O que era sair da favela ali? Ir para uma casinha de bloco. Sair da casa de pau e ir para a de bloco”, afirma. “Como um barraco era geminado no outro, eu ouvia música do Brasil inteiro.”

Os pais do artista, dona Vilani e seu Cleon, saíram de Fortaleza para tentar a vida em São Paulo no começo dos anos 1970. “Sempre tivemos muito gosto por arte, mas não tínhamos oportunidade. Existiam duas classes: uma que podia frequentar o teatro e outra que varria o teatro. Moramos em um barraco de madeira, entre dois córregos, mas na nossa casa nunca faltou música nem leitura”, conta Vilani, que escreve poemas e é professora de filosofia. Os livros e a veia intelectual e artística da mãe, que fez os três anos de ensino médio na mesma classe do filho, estão essencialmente presentes na persona musical de Criolo. “Era uma criação simples, talvez o diferencial é que não cobrávamos nota na escola e demos abertura para conversa. Lembro-me uma vez de ele contar que foi a uma quermesse e uma pessoa foi assassinada. Ele era muito novinho e chegou contando, sentindo a dor, narrando aquilo com compaixão”, ela relembra. O músico demonstra sentimentos semelhantes ao resgatar a infância: “Tinha dois mundos: um com todo mundo sorrindo e se ajudando, mas você não entendia por que, no caminho da escola, tinha dois defuntos. Como você vai explicar o cheiro de sangue que entra no cérebro de uma criança de 5 ou 6 anos?”

Sabotage lançou o clipe de “Um Bom Lugar” na virada do século, reunindo nomes como Helião, do RZO, e, curiosamente, Criolo, convidado que aparece de maneira discreta sentado no entorno de uma mesa com algumas cervejas. Àquela altura, o nome Criolo Doido, usado por ele na primeira fase da carreira, já era comum entre os interessados por hip-hop. Por anos, ele foi colecionando bases instrumentais feitas por amigos DJs. Integrou também o grupo Pacto Latino nos anos 1990 antes de gravar o debute Ainda Há Tempo (2006), pérola lo-fi em que ele rima rispidamente por mais de uma hora. O disco saiu com míseras 500 cópias e sequer ganhou show de divulgação – as masters foram deletadas por acidente meses depois.

Paralelamente, Criolo tentou terminar a faculdade de artes e de pedagogia, plano que recorrentemente deixava de lado pela falta de dinheiro. Atuou como professor e educador social de crianças e adolescentes por mais de dez anos, depois de ter exercido diversas funções, de caixa a vendedor de porta em porta. Em 2006, ele e o DJ Dandan fundaram a Rinha dos MCs, que acontece até hoje (organizada apenas por Dandan) e marcou um momento de ebulição do rap na cidade, junto à Batalha do Santa Cruz, fomentando nomes que apareceriam nacionalmente alguns anos mais tarde. “Ali em 2008, você tinha Emicida, Flora Matos, Projota, todo mundo ganhando atenção”, explica Dandan, citando alguns dos que passaram pelos encontros de rimas. “E, na minha perspectiva, senti que o Kleber via aquela galera toda virando e ele, que estava há ‘milianos’, não acontecendo, sabe? Ele falou: ‘Acho que já contribuí o suficiente, vou parar’.

Espécie de braço direito de Criolo, Dandan o acompanha até hoje em todos os shows. A força da amizade entre eles é facilmente detectável: Dandan é o único a chamar o amigo pelo nome de batismo. “A poética e o jeito de conversar com as ruas de uma maneira mais intelectual do Kleber são únicos. Nós só precisávamos de alguém para nos ajudar”, acrescenta. “Fazíamos absolutamente tudo: produção, marcar show, montar palco, tudo. E normalmente era aquilo: o máximo de um showzinho da hora era mil contos. Aqueles mil contos sofridos – e isso quando ia bem.” Criolo chegou a participar do programa Manos e Minas, da TV Cultura e, logo depois, subiu em um palco disposto a encerrar a carreira no hip-hop, gerando uma calorosa apresentação de despedida registrada em vídeo e que pode ser vista no YouTube.

Criolo estava conversando com amigos entre os camarins da versão paulistana do Lollapalooza, em março, quando avistou uma criança, tão jovem que não parecia saber falar. Ele imediatamente se agachou para emendar uma série de mungangas e conquistar a atenção receosa da menina. A cena por si só poderia justificar o apelido de “Doido” que o rapper levava no nome, mas serviu mais para escancarar a dimensão da personalidade dele. Criolo pode parecer um menino expansivo, cheio de energia e curiosidade, ou um ancião recluso, que acumula e divide conhecimento – e às vezes as duas coisas ao mesmo tempo.

“Como todo bom artista, todo artista completo, ele é um cara bem maluco, sacou?”, opina Daniel Ganjaman, minutos depois de a interação com a menina acontecer. “Ele tem um olhar para o mundo que é muito diferente. É o cara que está sempre flutuando. Eu e o Cabral, quando trabalhamos juntos, somos as pessoas que o puxamos, tentamos entender e configurar aquilo num disco, num show.”

A união de Ganjaman e Criolo aconteceu em 2010, quando Ricardo Costa, do centro artístico Matilha Cultural, decidiu financiar um álbum do Criolo, a ser produzido por Marcelo Cabral, que convocou Ganjaman para ajudá-lo. “Me deu uma certa ‘tela azul’ quando ele mostrou aquelas músicas”, confessa o produtor. “Eu fui

para fazer um disco de rap e ele veio cheio de canções – e canções incríveis. ‘Subirusdoistiozin’ era um rap, mas meio canção; ‘Linha de Frente’ era um samba; ‘Samba Sambei’ era um reggae. Também tinha ‘Freguês da Meia-Noite’ e ‘Bogotá’.”

“Quando juntou todo mundo, eu falei: ‘Mano, vocês deram a oportunidade da minha vida’. Eu cheguei cantando tudo para eles”, Criolo relembra. O processo no estúdio gerou “Mariô”, parceria com o guitarrista Kiko Dinucci, que na época trabalhava no primeiro álbum do Metá Metá. Os outros dois integrantes do trio, a vocalista, Juçara Marçal, e o saxofonista, Thiago França, também contribuíram para as gravações de Criolo, e, com a participação de Rodrigo Campos, Nó na Orelha acabou aglutinando alguns dos principais nomes de uma cena devota à música brasileira, então emergente em São Paulo.

“Era um disco que apontava para vários lados, mas que tinha Criolo como fio condutor. Era ele quem tinha a pluralidade artística que possibilitava circular por todos esses territórios, toda essa diversidade que a gente aplicou no Nó na Orelha. E, olha, te confesso: foi do meio para o fim que eu percebi que estava ficando bacana”, remonta Ganjaman. “Lembro que, na mixagem, eu pensava assim: ou o público do Criolo, do rap, vai renegar isso ou eles vão abraçar – e aí vão ser angariados outros públicos, isso vai ficar ainda maior. E foi o que aconteceu. Mesmo assim, eu não imaginava que ia tomar as proporções que tomou.” Além de Ricardo Costa, a empresária do rapper, Beatriz Berjeaut, acreditou na obra a ponto de editá-la e lançá-la sob o selo Oloko Records, que continua abarcando os trabalhos do artista.

A princípio, Nó na Orelha não tinha pretensões comerciais, mas as coisas mudaram quase de imediato. “Não Existe Amor em SP” foi hit instantâneo na internet, enquanto a MTV colocava em alta rotação o clipe de “Subirusdoistiozin” e incluía entrevistas e performances de Criolo na programação. No VMB de 2011, ele recebeu o maior número de indicações (cinco), levando os prêmios de Revelação, Melhor Disco e Melhor Música, e se apresentando ao lado (e a pedido) de Caetano Veloso. O trabalho foi também o melhor do ano na lista da Rolling Stone Brasil – segundo as contas de Ganjaman, ganhou um total de 46 prêmios naquele ano.

“Freguês da Meia-Noite” foi regravada por Ney Matogrosso; Criolo foi parar em uma turnê na Europa. Mais que um clássico contemporâneo, Nó na Orelha – ao lado das primeiras mixtapes de Emicida – injetou a diversidade e o discurso renovado de que o hip-hop nacional necessitava naquele momento. Criolo e Emicida ainda se uniram em um DVD ao vivo em 2013, solidificando um legado de expansão no rap que hoje é ainda mais evidente, seja com o sucesso fashion de Emicida, “ocupando” a São Paulo Fashion Week com a LAB, seja com um disco de sambas de Criolo.

A exposição veio acompanhada de alguns percalços, como a acusação de plágio em “Linha de Frente” por Armando Fernandes Aguiar, o Mamão, compositor de “Tristeza Pé no Chão”, de Clara Nunes. Foi só depois de uma ligação pessoal de Criolo que Mamão recuou na questão. “Fiquei meio assim, chateado, né, mano?”, confessa o rapper. “Uma vida toda aí e agora eu estou roubando alguém? Isso não existe na minha cabeça, na minha vida. Só disse que, se ele achava aquilo mesmo, tudo bem, e falei: ‘Você não me conhece, não sabe da minha caminhada’. Mas foi uma grande surpresa. O que eu ganho plagiando alguém?”

A dinâmica com Cabral e Ganjaman gerou outra empreitada bem-sucedida de Criolo, o álbum Convoque Seu Buda (2014), substancialmente mais afiado e político em termos de letra, além de trazer a hilária “Cartão de Visita” (com refrão na voz de Tulipa Ruiz), cujo verso citando o episódio da conversa com Lázaro Ramos exibiu um jogo de cintura até então desconhecido na personalidade do músico.

Ao fim de um encontro no estúdio El Rocha, Criolo aparece com um iPhone em mãos, depois de checar dois nomes de pessoas importantes em sua trajetória e que ele havia deixado de citar durante uma das entrevistas. “Anota aí, eles foram muito importantes”, pede (são eles o MC Rodrigo Nonato, da Oficina da Rima, e o MC Yob). Quando relembra a própria história, o rapper é um poço de gratidão – até por isso não encerra um show sem agradecer a Dandan, Ganjaman e Cabral. “Pela maneira como você fala, eles acreditaram muito no seu trabalho”, sugiro. “Eles acreditaram”, concorda Criolo, antes de fazer uma pausa para um raríssimo momento de reconhecimento próprio. “Mas acho que eu tenho alguma coisa também, né, mano?”

Pouco mais de dez pessoas ocupam a van de Criolo a caminho do Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos. Ele é o artista brasileiro mais bem posicionado no line-up. A repercussão de uma manchete sensacionalista de um portal online, que “acusava” o rapper de “levar a periferia ao Lolla, com ingresso a R$ 920”, incomoda as pessoas próximas a ele, mas sequer parece rondar a figura pacífica e equilibrada do rapper. Enquanto o veículo cruza a pista do Autódromo, Criolo, até então pouco comunicativo, vira-se de costas. “Mano, tá ligado essas arquibancadas?”, aponta, falando de lado e em voz tão baixa que parece não querer ser escutado. “É assim: eu já trampei aqui por uns três anos em época de corrida, para empresa terceirizada. Eram 12 horas, das 7h às 19h, R$ 25 [o cachê]. Nesse dia esqueceram de levar a janta para o nosso setor. Eu vi de longe, e achei uma caixa com dois pedaços de pizza jogada naquela arquibancada. Estava com tanta fome que nem queria saber se alguém tinha cuspido ou feito alguma coisa. Tem uns bagulhos que a gente não esquece. Estou até com os olhos cheios de lágrimas.”

Se há uma característica que precede a presença de Criolo é a humildade. Não há espaço para falar da dimensão do segundo show da carreira no megafestival e ele soa desconfortável com qualquer paparico ou comentário que de alguma forma infle sua figura. Chega a ser paradoxal o cuidado do gerente de turnês para a van não ser “descoberta” no meio do público, aglomerado na entrada do Autódromo. Horas depois, já no camarim, ele contaria uma versão resumida da memória sobre a pizza em uma entrevista ao canal de TV que transmitia o evento, deixando a repórter desconcertada. “Mano, não sei se eu deveria ter falado isso para ela”, confessou, inseguro, minutos depois, notando a desconexão entre a postura evidentemente reflexiva e o ambiente festivo.

Mas não é de agora que Criolo, inegavelmente parte da restrita linha de frente do hip-hop nacional, está muito mais conectado com de onde veio do que com onde está. O rapper já eternizou o bairro paulistano onde cresceu, o Grajaú (“Grajauéx”), transformou em hino a cidade natal (“Não Existe Amor em SP”) e deu dimensão nacional à realidade de sua vizinhança, em rimas dos dois celebrados álbuns desta década e na marginalizada obra como Criolo Doido.

Em frente a dezenas de milhares de pessoas no Lollapalooza – assim como de 10 mil do festival Bananada de 2015 ou de quase 50 mil no João Rock de 2016 –, Criolo fez um show intenso, para enterrar as desconfianças acerca da força da mais recente turnê dele, focada nos raps de Ainda Há Tempo (que foi refeito e relançado em 2016) e conceitualmente reduzida ao formato básico DJ/MC, sem banda.

Na performance de “Sucrilhos”, ele encara Dandan nos olhos, para então cantar: “Saber a hora de parar é para homem sábio”. A frase, que sintetiza o sentimento do Criolo pré-Nó na Orelha, ajuda a explicar por que ele não tira os pés do chão – não dos palcos, mas das ruas do Grajaú –, assim como o verso favorito de dona Vilani (“Não se corromper, para nós, já é vitória”, de “É o Teste”).

Para quem poderia ter abreviado a vida artística prematuramente, uma conquista imensa pode adquirir a mesma importância de uma pequena: manter de pé uma carreira. “A pobreza é consequência de alguém que criou um sistema que oprime. Lidar com isso, a gente se adapta, aprende, busca melhoria. O que dói é saber que isso foi criado por um da sua mesma espécie e é alimentado todo dia, entende? Isso te fere”, reflete Criolo. “Se você passar a vida vendo quatro tipos de cores, para você, só existem aquelas quatro cores. E muitos que conseguem pular esses bloqueios e misturar essas cores são ceifados no decorrer natural da vida, devido às mazelas sociais. A pobreza machuca, ela deixa uma marca na sua alma para a vida toda. E dói saber que isso tudo foi criado por alguém da sua espécie.”

Sons Diversos

Criolo vem do rap, mas sempre buscou conexões com outros gêneros musicais

“Me chamo Criolo e meu berço é o rap, mas não há limites para a minha poesia”, canta o artista em uma versão de “Cálice”, clássico de Chico Buarque – depois o próprio autor respondeu com uma performance, incluindo um rap e o refrão criado por Criolo. Um álbum inteiro sem nenhum rap pode ser novidade para Kleber Cavalcante Gomes, mas ele já se aventurou diversas vezes longe do gênero, não apenas na discografia regular como também em participações em outros projetos. Em 2011, quando começava a ganhar os holofotes, por exemplo, apareceu na MTV ao lado de Tulipa Ruiz, cantando a balada “Só Sei Dançar com Você”. E não parou: fez shows com Milton Nascimento em 2014 e dividiu o palco com Ney Matogrosso, entre outros. Em 2015, entrou em turnê com Ivete Sangalo, recriando a obra de Tim Maia, e soltou a voz em “O Tambor”, uma das mais inspiradas faixas do recente disco de Arthur Verocai, No Voo do Urubu. Mesmo antes de lançar o novo álbum, ele já teve confirmada participação no Rock in Rio 2017, em um show-tributo ao samba, ao lado de nomes como Jorge Aragão, Alcione e Martinho da Vila.

Mundo Visual

O rapper já fez trabalhos como ator – o próximo projeto é um terror dirigido por Andrucha Waddington

Quando lançar o disco de sambas, Criolo terá a mesma quantidade de álbuns que tem de participações em filmes. O primeiro projeto foi antes mesmo de Nó na Orelha (2011). Ele estrelou o filme de baixo orçamento Profissão MC, que saiu em 2009 (e hoje está no YouTube), dirigido por Alessandro Buzo e Toni Nogueira e também com atuação de Dandan. Criolo vive um rapper com problemas financeiros e cuja namorada está grávida. Já em 2012, ele teve uma participação discreta como um dos presidiários de Luz nas Trevas, continuação do clássico O Bandido da Luz Vermelha (1968), com Ney Matogrosso como protagonista. A primeira grande contribuição cinematográfica do rapper, no entanto, aconteceu com Tudo Que Aprendemos Juntos (2015), que narra a história da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, maior favela de São Paulo. Com Lázaro Ramos no papel principal, o longa tem direção de Sérgio Machado e traz Criolo – também na trilha sonora – na pele de um traficante (o elenco ainda conta com Rappin’ Hood interpretando a si mesmo). No mesmo ano, foi lançado Jonas, em que o personagem de Criolo tem um caso com a de Laura Neiva. O filme baseado em disparidades sociais tem participação dos rappers Rincon Sapiência e Karol Conka. A produção, anteriormente chamada Jonas e a Baleia, tem toques de suspense, se passa no Carnaval e, assim como os trabalhos audiovisuais anteriores de Criolo – entre eles os clipes de “Subirusdoistiozin” e “Freguês da Meia-Noite” –, retrata a cidade de São Paulo. A próxima empreitada dele é o terror O Juízo, previsto para outubro, com Fernanda Montenegro e dirigido por Andrucha Waddington.