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A Dança Solitária de Anderson Silva

Atacado por todos os lados, o lutador desliza intensamente pela vida pública e permanece como o último homem a ser batido nas arenas do planeta. Mas a meta é chegar ainda mais longe

Pablo Miyazawa Publicado em 13/06/2012, às 10h24 - Atualizado em 06/07/2012, às 23h03

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Anderson Silva em uma das capas da <i>Rolling Stone Brasil</i> de junho
Anderson Silva em uma das capas da <i>Rolling Stone Brasil</i> de junho

Anderson Silva está encurralado. O ataque vem de todos os lados, sem trégua ou piedade, por cima, por baixo, pelas costas. O detentor do cinturão dos pesos-médios da liga Ultimate Fighting Championship (UFC), invencível e mais famoso lutador de artes marciais mistas (MMA) da atualidade, está acuado, de joelhos, sentindo os golpes passarem a centímetros da cabeça calva. O ruído é repetitivo, seco. Em questão de segundos, o jogo vira. Anderson se levanta agilmente. Analisa os adversários tão rápido quanto contra-ataca. Utilizando os recursos que tem às mãos, dá cabo dos inimigos com precisão cirúrgica, mas também contando com os inexplicáveis golpes de sorte que tradicionalmente privilegiam os campeões natos. Sozinho, exultante, Anderson deixa a arena como o único soldado em pé. O uniforme está encharcado de suor. O sorriso de dentes brancos reflete a luz do sol incandescente do meio-dia. Espalhados pelo corpo, resíduos que poderiam ser confundidos com cicatrizes de batalha: tímidos respingos de tinta cor de violeta. Anderson Silva saiu vitorioso de mais um combate de sua vida – nesse caso, uma animada partida de paintball.

Assista ao making of da sessão de fotos com Anderson Silva.

Na arena escondida em uma área remota da zona sul de São Paulo, Anderson Silva lidera uma equipe formada por amigos e agregados em disputa contra a equipe do Globo Esporte, comandada pelo jornalista Tiago Leifert. A brincadeira resultará em uma reportagem a ser exibida no programa esportivo, mas também serve como desculpa para o sobrecarregado lutador desviar-se da rota extenuante de treinamentos, entrevistas e obrigações contratuais.

Naquele dia sem nuvens em abril, o peso do mundo aparentemente ainda não descansava sobre os ombros de Anderson Silva. A próxima aparição na arena octogonal do UFC ainda não tinha data definida (já tem – será em 7 de julho); e o local permanecia pendente (cogitava-se São Paulo ou Rio; será em Las Vegas). Apenas o adversário já era conhecido: o norte-americano Chael Sonnen, derrotado por Anderson de maneira espetacular em agosto de 2010.

Nação de lutadores: o jeitinho brasileiro foi essencial no processo de transição do Vale-Tudo para o MMA.

As águas passaram. Sonnen foi pego no exame antidoping, levou suspensão das arenas e retornou, mais corrosivo do que nunca e energizado pela revanche. O brasileiro, por sua vez, subiu mais degraus rumo ao olimpo destinado a raros esportistas. Manteve o cinturão em duas ocasiões (em uma delas, enfrentou o japonês Yushin Okami diante de uma multidão no Rio de Janeiro. Em outra, venceu o rival Vítor Belfort com um cinematográfico pontapé no rosto). Foi contratado pela agência 9ine, controlada pelo empresário Marcus Buaiz e pelo ex-jogador Ronaldo Nazário e, em seguida, tornou-se atleta patrocinado do Sport Club Corinthians Paulista. Desde então, acumulou mais contratos do que qualquer personalidade nacional, emprestando o rosto bem desenhado e a atuação convincente para marcas multinacionais – lanchonete, fabricantes de eletrônicos, preservativo, material esportivo, cerveja, aparelho de barbear e motocicleta. Houve ainda tempo para lançar uma autobiografia (Anderson Spider Silva) e estrelar um documentário de longa-metragem (Como Água). Mais do que o atleta-personalidade, a marca-sorriso Anderson Silva é propriedade das mais valiosas no mercado. E ele mesmo tem consciência disso. Afinal, tem se esforçado para tanto.

Mas, naquele exato momento de êxtase pós-tiroteio, nenhum problema passa pela cabeça reluzente de Anderson Silva.

Horas antes de chegar à quadra de paintball, no carro lotado de amigos, ninguém parece mais ansioso para brincar de tiroteio do que ele. “Vocês não estão entendendo o que vai acontecer hoje”, fala, se gabando do brinquedo que comprou para a ocasião, uma intimidante réplica de uma metralhadora automática. “Não é arma. É marcador”, ele corrige, didático. Em ação na arena empoeirada, o soldado Silva se comporta com a seriedade de um combatente autêntico e com requintes de um jogador de Call of Duty, arremessando sinalizadores de fumaça e granadas de tinta, economizando munição, exibindo capacete, colete, máscara, cinto de acessórios e camiseta com as iniciais S.W.A.T. (o equipamento todo é dele próprio). Algumas horas ao lado de Anderson confirmam que ele leva tão a sério os hobbies de inspiração adolescente quanto a rotina dolorida dentro dos ringues.


Paralelamente à ascensão de Anderson Silva, um fenômeno notável se deu de 2010 para cá: a mudança do caráter do MMA aos olhos da opinião pública verde-amarela. Não que a unanimidade tenha sido alcançada (ainda longe disso, os atletas admitem), mas se era difícil chamá-lo de “esporte de massa” naquele ano, hoje é tarefa ainda mais árdua se desvencilhar do contato com socos, pontapés e supercílios ensanguentados na grande mídia. A Rede Globo detém os direitos de transmissão dos eventos da liga Ultimate Fighting Championship, o que significa que a luta eventualmente faz parte da programação de sábado da maior emissora aberta do país. O mesmo canal se dedica atualmente ao The Ultimate Fighter Brasil (TUF), reality show que explora a intimidade de atletas aspirantes a um lugar ao sol. Nomes como José Aldo, Rodrigo Minotauro e Lyoto Machida fazem parte do vocabulário dos mesmos aficionados esportivos que antigamente colecionavam fichas técnicas de pilotos de Fórmula 1 ou de tenistas. É inegável portanto que, por mérito ou insistência das partes envolvidas, o MMA tenha se estabelecido como o esporte número 2 do Brasil – pelo menos em um contexto pré-Olimpíadas de 2012. E é neste cenário, inimaginável em outras eras, que Anderson Silva reina, sem ameaças para seu trono de patrono do esporte para as multidões.

“Eu nunca treinei para ser este campeão que sou hoje, mas para ser tão bom quanto os meus professores“, ele costuma repetir, com a humildade que lhe tem sido de praxe desde que caiu nas graças do povo.

“O embaixador da situação que o Brasil está vivendo é o Anderson Silva”, concorda Junior “Cigano” dos Santos, 27, atual campeão dos pesos-pesados do UFC. “Tudo o que ele fez – ser recordista de manter o cinturão, as lutas excelentes, as polêmicas: foi o crescimento que ele teve no MMA que atraiu a atenção para o Brasil também.”

Na primeira vez em que nos encontramos, há quase 20 meses, dias após a famosa luta com Sonnen, Anderson Silva apenas aspirava à tal condição de ícone absoluto. Com mais timidez e fraseado menos afiado, reclamava do início de certo assédio que o fazia ser reconhecido ocasionalmente em locais públicos, e ainda tinha na ponta da língua o discurso pela humanização e aceitação das artes marciais mistas no contexto popular. Hoje, na superfície, pouco mudou. A fala aguda, recheada de frases de efeito e em tom juvenil, colabora para aumentar a divertida sensação de contraste entre o onipresente “Anderson Silva pessoa pública” e o agora raro “Anderson Silva lutador de arena”. Estar quase dois anos mais velho e experiente (tem 37 anos), em teoria, não fez diferença alguma ao lutador profissional – a celebridade, porém, sofre as consequências. A fama agregada aos êxitos nos ringues e fora deles pode mais atrapalhar do que ajudar – hoje, ele entende que não pode mais dar um passo fora da zona de conforto sem ser abordado, reconhecido ou solicitado. Aos pedidos de retratos e autógrafos, responde com um sorriso branco, um sonoro “claro!” e uma pose fabricada para fotografias.

“Gosto de sair com meus amigos, de fazer as coisas de antigamente.” Ele agora está no restaurante escurecido do hotel Emiliano, diante do prato de almoço servido quase na hora do jantar. “Não gosto dessa coisa de famoso. Sou normal. Óbvio que tudo mudou, mas não me sinto assim. Se você entrar nessa, acaba perdendo a noção. É uma fase que tenho de aproveitar, que uma hora vai acabar, mas tenho que ter a consciência de que sou como qualquer outra pessoa.”

Anderson atribui tal visão “pé no chão” à educação – tanto a familiar, de alguém que foi criado por tios em Curitiba, como a do atleta-aprendiz, que desde cedo vivenciou o código de conduta rígido das academias de artes marciais (ele revelou detalhes dessa fase na biografia). Já a relativa pouca ambição material vem da infância pouco privilegiada– o projeto, como ele afirma, é “garantir a educação dos cinco filhos e envelhecer da mesma maneira que estou agora, tendo uma casa, dinheiro para ir a um restaurante, um carro pra ir aos lugares... Estabilizar a vida.”


“Eu faço uma autoanálise de tudo que já passei, de onde estou e aonde quero chegar”, Anderson prega, em voz baixa. “Hoje, eu luto porque gosto. Não preciso de mais do que isso. Eu não tinha nada. Não posso mudar minha essência porque estou famoso. Porque você perde o sentido. Entendeu?”

A fama nem sempre facilita as idas e vindas. Diante da sede do Corinthians, o porteiro reluta em liberar a entrada do carro, mesmo após enxergar a silhueta do atleta ilustre atrás do vidro. Ironicamente, uma enorme imagem de Anderson Silva, impressa na entrada da academia que leva seu nome, observa a cena de longe.

“Estamos sem moral nenhum”, ironiza Anderson, esboçando leve impaciência. Ao volante está Hebert Mota, 34 anos, desde 2010 agente e fiel escudeiro da figura pública do lutador. “Ele é minha Marlene Mattos”, Anderson costuma brincar, referindo-se à notória ex-empresária linha-dura de Xuxa Meneghel. Mais tarde, Mota relativiza: “Não sou empresário dele. Eu cuido da imagem do cara. Sou um amigo. Conselheiro em alguns momentos. O Anderson é muito humilde. Tão mente aberta que se qualquer pessoa próxima disser algo, concordando ou discordando, ele irá ouvir. Mas é ele que sempre toma a decisão”.

O cachê por uma nova vitória contra Sonnen permanece em segredo, mas estima-se que seja mais polpudo do que os US$ 750 mil que garantiu ao vencer Okami em agosto de 2011 (mais os US$ 300 mil pelo “nocaute da noite”). Os prêmios e royalties de publicidade são investidos em aplicações, não em carros de luxo e imóveis, como é praxe entre esportistas. “Ele não brinca de loucura”, dispara Mota, o discurso veloz combinando com o porte esguio e o sorriso fácil. “O Anderson de 37 anos precisa de dinheiro para se divertir, sair com amigos, brincar de ser feliz. Por que não ostenta? Porque nem é tanto dinheiro assim. E tudo o que ganha é um investimento para o nível de vida que ele quer oferecer aos filhos. Porque o Anderson pensa em quando tiver 55 anos de idade.”

A valorização da imagem de Anderson Silva é uma estratégia trabalhada por Mota junto à 9ine, focada no aproveitamento de oportunidades e na propagação de uma ideia de autenticidade genuína bem ao gosto do público brasileiro. “Um ponto é a ausência de ídolos. Tivemos Pelé, Ayrton Senna, Ronaldo. Agora, temos Anderson e Neymar”, compara Mota. “Outro ponto é a verdade dele sendo amplificada. Ele é o que é. Nada é inventado. Você pega ele e vê que é de carne e osso.”

“Ele vai continuar sendo um ídolo se continuar a ser humano”, define o agente. “O meu trabalho: fazer com que ele sempre se mantenha humano.”

No corredor da academia, porém, as expressões nos olhos dos presentes dão a impressão de que uma figura sobrenatural surgiu para treinar. De jeito discreto e com a expressão serena, Anderson invade a área espelhada reservada ao octógono, decorada por painéis com imagens dele desferindo alguns de seus golpes mais famosos. O programa em questão é uma aula de jiu-jítsu capitaneada por Ramon Lemos, 33, um dos fundadores da equipe de jiu-jítsu Atos Team e há anos chefe de treinamento de Anderson. O campeão cumprimenta os alunos e procura se comportar como um estudante normal, atento às explicações de Ramon, a quem só chama de “mestre”. Os colegas se esforçam para não tratar o parceiro célebre com diferenciação. Deitado de costas na lona, Anderson pinga de suor, tentando se livrar de uma posição de submissão. De longe, um frequentador da academia tira fotos. Com um sinal, Hebert solicita que ele pare.


Praticar com lutadores menos experientes é uma das técnicas utilizadas por Anderson para “manter os pés no chão”, outra das expressões que gosta de repetir. Aliás, treino intenso é a atividade que conserva o foco no objetivo mais próximo – no caso, a batalha de nervos com Sonnen – e o distancia dos resíduos que interferem na concentração absoluta. Em abril, 80 dias antes do aguardado encontro (será a primeira luta oficial do brasileiro em quase 11 meses), o ritmo de treinamento era lento – os eventos sociais e os compromissos publicitários ganhavam tanto espaço na agenda quanto as práticas de boxe e muay thai.

Já em maio, mesmo isolado do ambiente competitivo do UFC, Anderson se viu novamente encurralado e sob pressão de todos os lados. Fatores que pesaram: a mudança do local da revanche com Sonnen, do Brasil para os Estados Unidos, que até fez Anderson pensar em desistir de lutar; as provocações públicas do rival (estimuladas pelos organizadores do evento, já que atraem mídia); de sua parte, declarações públicas questionáveis resultaram no amargo gosto da reprovação em massa via Twitter; o longo período sem lutar também pode ter abalado a confiança de Anderson, que chegou a se sentir não tão bem preparado fisicamente. Os treinos viraram prioridade absoluta, com apenas um dia de folga por semana e nenhum espaço para distrações – compromissos já marcados foram cancelados ou colocados em modo de espera.

O projeto atual da Equipe Anderson Silva é blindar o campeão com um regime de treinamentos em três blocos diários, com ligeiras interrupções para o lazer (como o paintball e passeios de minimoto pelo condomínio onde vive, no Rio). “Nossa meta é defender o título mais uma vez”, explica Ramon, no tom firme e professoral típico de um sensei. “Eu filtro para que nada saia desse assunto. O trabalho é no octógono. Mas ele tem compromissos de mídia e a vida pessoal. A programação é para colocar cada coisa no seu lugar, para que ele não estresse nem saia do foco.”

“Hoje, o Anderson está com 65, 70%”, ele avalia. “Os 30 % que faltam é o que mostra a luta. Você se prepara para as três últimas semanas de treino.”

Alardeada pela imprensa especializada em MMA, a tortura verbal vomitada por Sonnen não se perde no vento. “O cara usa isso para se fazer. A única forma que teve para aparecer foi falar ‘Vou ligar o que se dane’”, rebate o técnico. “Mesmo essa parte negativa eu uso como um doping de motivação para o Anderson.”

“Faz parte da estratégia ser polêmico, falar umas besteiras para deixar o cara nervoso”, aponta o colega Cigano. “Mas com o Anderson a gente já viu que não funciona. Na hora da luta ele responde à altura, o que eu acho que é uma estratégia também.”

A hipótese da vitória de Anderson é a favorita dentro do universo do MMA, mas o pensamento estratégico do time do brasileiro evita a ideia de que uma eventual derrota seja o fim do mundo (ou como afirmam especialistas, um catalizador de uma aposentadoria). Nas internas, o discurso motivacional envolve a filosofia do “já somos vitoriosos”.

“Ele pode perder? Pode”, avalia Mota. “Mas não quero que tenha cobrança: ‘Preciso ganhar’. Ele nunca foi assim, e não será agora. Falei: ‘Você vai se divertir, fazer o que faz há dez anos, com alegria e paz. Esta luta não é do UFC, do Sonnen, do Brasil. É sua’.”


A 45 dias da “luta do século”, Anderson Silva agora desliza pelo quintal da casa espaçosa onde mora quando está no Brasil, em um condomínio no Recreio dos Bandeirantes, no Rio. O dia começou com exercícios na praia às 7h, emendado com um treino de muay thai. Voltou, desapareceu de carro por uma hora, retornou e almoçou. Já trajado como o ídolo Michael Jackson, disparando manobras de corpo estilizadas ao som de “Billie Jean”, ele só não se anima a discorrer sobre qualquer tema que envolva a missão de 7 de julho. Falando pouco como não lhe é de costume, parece não querer desperdiçar um segundo do período de folga entre um treino e outro. Mesmo dedicado em cumprir o papel e entrar no personagem, o olhar perdido do lutador focado é um sinal óbvio e impossível de esconder.

“Eu paro pra pensar e entendo o que Deus quis fazer comigo”, Anderson divagou, semanas antes. “Porque se tudo tivesse acontecido há cinco, seis anos, talvez minha cabeça não fosse boa pra lidar.”

Como atleta, ele é diferenciado. A capacidade física, as habilidades sobre-humanas e a criatividade de movimentos colaboram para incrementar um cartel de recordes no UFC impossível de ser imitado (14 vitórias seguidas desde 2006, nove defesas de título, campeão há mais de dois mil dias). “Tem gente que é forte ou rápido como o Anderson. Consigo achar cada característica dele em um atleta”, diz Ramon. “Agora, encontrar todas em uma pessoa só…”

É quando não interpreta o papel de lutador mais temido e invejado das artes marciais mistas que Anderson exibe hábitos e características que o reaproximam do garoto que um dia ele foi. Não gosta de ficar sozinho, chora por causa de injustiças (“e por erros que a gente comete com as pessoas que mais amam a gente”), é apaixonado por hip-hop, brinquedos, games e histórias em quadrinhos, particularmente as de super-heróis com poderes especiais. Como modo de vida, jura seguir um mantra à risca: “Não sou perfeito, tenho meus erros. Mas tento ser melhor do que fui no dia passado. Assim conquisto meu caminho e encontro o meu centro, minha base”.

E, acima de crenças e filosofias, Anderson se diz “muito temente a Deus”. “Antes de chegar nessa fama toda, eu me questionava muito”, diz. “Se ainda não consegui conquistar alguma coisa, é porque Deus está me preparando. Tudo que me aconteceu até hoje serviu para eu conduzir a vida de forma correta.”

“Estou sempre conversando com Deus, o tempo todo”, ele continua. “Na luta com o Sonnen, eu olhei pra cima e falei: ‘Seja feita a Sua vontade, e não a minha’. E acabou do jeito que acabou [o brasileiro venceu a disputa quase perdida a 20 segundos do final]. Não é possível, esse cara tem alguma coisa comigo, algo guardado pra mim. Depois, estava no quarto, rezando e pedindo uma resposta: ‘O que Você quer comigo?’ Aí o tempo passou, as coisas foram acontecendo e vi que o que Ele quer é que eu sirva de exemplo. ‘Cara, sua responsabilidade é grande, é mais do que ser campeão de UFC’. As respostas não vêm de imediato, mas, quando vêm, são claras. Se eu falar isso, vão dizer: ‘Esse cara é maluco’, mas é exatamente assim que eu me sinto.”

Para quem convive com Anderson, a explicação também é de cunho divino. “Papai do Céu apontou e falou: ‘Esse vai ser o cara. O Anderson Silva, campeão, que vai chocar o mundo. O que ele faz ninguém vai fazer’”, celebra Ramon. “Ele nasceu com um dom que não tem explicação. Coloque ele com luvas e em uma situação de combate… é quase uma arma humana.”

Na entrada do restaurante de Olivier Anquier, em São Paulo, duas mulheres de meia idade medem Anderson Silva de cima a baixo. “É o cara da luta”, cochicha uma. Já instalado em uma mesa de canto, ele se concentra em preparar o drinque que inventou, guaraná misturado a suco de laranja. “É muito bom, pode provar”, oferece.

O almoço segue tranquilo até a primeira mãe com filho solicitar ao atleta famoso uma foto com o celular. Nos 20 minutos seguintes, pelo menos 15 pessoas abordam a mesa com pedidos e elogios parecidos. Ele jamais reclama: ainda que resignado, Anderson se encanta com a notoriedade positiva, principalmente entre crianças e mulheres – o oposto demográfico do público-alvo do UFC.


Há dois anos, porém, Anderson enfrentava certa má fama nos limites do MMA, uma reputação adquirida devido a entrevistas sinceras demais e atitudes consideradas desrespeitosas nos ringues. “Eu falo o que penso. E isso acaba causando uma imagem de marrento”, ele concorda. “Todo repórter me pergunta no final das lutas: ‘Com quem você quer lutar agora?’ Eu respondo a mesma coisa: ‘Com meu clone’. Isso soa de uma forma que as pessoas não entendem... ‘Ah, o cara acha que não tem ninguém pra lutar com ele!’ Não, é porque eu não quero falar de ninguém!”

Advogando pelo cliente, Hebert Mota diz que Anderson superou os percalços do passado e já cumpriu os projetos estabelecidos há dois anos: “Queria ser conhecido e campeão: ele é. Ter condição de sustentar a família: conseguiu. Ser exemplo: está sendo. Ele nunca esteve tão bem espiritualmente. Está de bem com a vida”.

“Eu e ele falamos uma coisa clara: o céu é o limite”, continua o agente. “Quero fazer esse cara nos Estados Unidos. Pode parecer prepotência. Mas, enquanto não perdermos o senso de espírito, e com humildade, vamos longe.”

Prestes a encarar o momento definitivo de sua trajetória, Anderson Silva é uma máquina de combate e negócios concentrada, com objetivos definidos e consciente de que ainda não atingiu a unanimidade dos heróis do passado. E apesar de entender que tantos – equipe, torcida, patrocinadores – contam com suas vitórias, ninguém carrega mais desejo de ser um campeão do que ele próprio. Porém, disfarçadas em meio a metas, cronogramas e sonhos de grandeza, escondem-se motivações mais inocentes, talvez mais honrosas.

“A minha história do Batman é melhor.” Anderson, distraído durante o almoço, quer contar um segredo.

“Você tem uma história do Batman?”, pergunto.

“É a melhor de todas. É o que vai salvar o Batman. Faz muito tempo que eu escrevi. Veja o que acontece: o Super-Homem tem superpoderes e não envelhece. O Hulk fica nervoso e verde. Mas o Batman, não. Ele fica velho. Aí é que entra a minha história.”

E por dez minutos, com os olhos brilhando, empolgação e riqueza de detalhes, ele relata sua visão. E naquele instante, magicamente, não mais enxergo o lutador famoso, rico e poderoso. Diante de mim materializa-se aquele super-herói humano, com poderes de verdade, que o menino Anderson sempre sonhou em ser.