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Entre a Fama e o Anonimato

Dez anos após entrar no jet set com Cidade de Deus, Fernando Meirelles repensa a carreira de cineasta e se diz “insignificante” e “descartável”

André Rodrigues Publicado em 10/08/2012, às 12h06 - Atualizado às 15h29

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<b>REQUISITADO</b> “Tento evitar virar um síndico da minha própria vida, mas às vezes isso acaba acontecendo” - Cacá Meirelles
<b>REQUISITADO</b> “Tento evitar virar um síndico da minha própria vida, mas às vezes isso acaba acontecendo” - Cacá Meirelles

Fernando Meirelles sabe que será esquecido. E este exemplar da Rolling Stone, nosso encontro, o sucesso dele – tudo irá virar pó. Pode durar uns anos, algumas décadas até. Mas um dia ninguém (se é que existirá alguém) saberá que ele foi indicado ao Oscar em 2004 ou que ele foi sócio de uma das maiores produtoras do país, a O2. É compreendendo a finitude e a insignificância que ele se protege. Porque agora, queira ou não, Fernando Ferreira Meirelles, 56 anos, está no centro do universo artístico mundial. E será cobrado por essa fama – mesmo que ela seja efêmera. Em 17 de agosto, o filme mais recente dele, 360, chega aos cinemas. É uma obra rodada em cinco países, com elenco estelar – Jude Law, Anthony Hopkins, Rachel Weisz. E no dia 31 do mesmo mês, ele comemora os dez anos da estreia de Cidade de Deus, aquele da galinha correndo, do “Dadinho é o caralho”, das quatro indicações ao Oscar. Além disso, o diretor já trabalha com afinco em mais um projeto internacional: filma ainda este ano Nemesis, que conta a vida do magnata grego Aristóteles Onassis – outra produção com cenas em diversos locais do planeta, cast de estrelas de Hollywood e US$ 30 milhões no orçamento. Como se tudo isso não fosse o suficiente para provar a importância – e notoriedade – de Meirelles, ele ainda fica de olho em 25 novos projetos da O2, empresa que fundou com amigos há mais de 20 anos. Mesmo assim, ele se agarra no vazio para seguir em frente.

“Quando vejo esses caras que acham que construindo um memorial serão lembrados ‘eternamente’, não consigo deixar de achar graça”, Meirelles opina, em um e-mail escrito e enviado de um quarto de hotel em Londres. Era o meio de julho, e ele já cuidava da pré-produção de Nemesis. “É óbvio que um dia o Sarney será esquecido, apesar do enorme memorial que tem em São Luís bancado pelo Estado. Até o Machado de Assis, que é mais imortal que ele, será esquecido. Jesus Cristo será esquecido, e não haverá mais nenhum registro de que houve uma humanidade um dia”, ele continua. Por iniciativa do próprio Fernando, a entrevista em forma de conversa começou quando ele ainda se encontrava na Europa. “Vistos sob essa perspectiva, o Napoleão, o Michel Teló ou o seu Antonio, que trabalha na guarita da minha rua, não são em nada diferentes. Viver com essa perspectiva me ajuda a manter os pés no chão, ou mesmo que não me ajude, é como encaro meus dias na Terra.”

Meirelles tem isso (dom?), a sedutora capacidade de juntar um imperador francês, o divulgador do hit “Ai se Eu te Pego” e um anônimo trabalhador, todos em uma mesma frase. Esse espírito agregador parece ser a chave de seu trabalho. Excelente diretor de atores – Rachel Weisz ganhou o Oscar pela atuação em O Jardineiro Fiel (2005) – e com a expressão serena, ele exala tranquilidade em um meio conhecido por brindar a imprensa com fofocas sobre ataques de estrelismo. “Conto na mão esquerda do Lula as vezes em que saí do sério na vida. Se fico irritado, o sentimento me consome, a vítima sou eu mesmo, então prefiro perdoar ou deixar pra lá”, diz. A mesma atitude ele tem em relação aos críticos e a algumas pauladas que recebe deles. Ensaio sobre a Cegueira (2008), adaptado do livro de José Saramago, recebeu uma saraivada de opiniões negativas. “Sou meu pior crítico”, confessa. “Por isso não assisto mais aos filmes que fiz e nem leio sobre eles, com medo de que alguém possa me achar pior do que eu já me acho.”

Na sede da O2, na zona oeste paulistana, Meirelles me recebe durante um veranico do fim de julho. Veste uma “camisa nova” (que tem mais de seis anos, pois compra poucas coisas), jeans e sapatos. Ele não tem mais sala (“para não juntar papel”), então carrega a mochila, o computador e sugere que nos instalemos em uma redoma. É possível ver a movimentação da produtora enquanto o sol invade os galpões que ocupam 9 mil m². Apesar de ter 116 funcionários fixos e 250 freelancers, há sossego naquela tarde – um contraste com os caminhões que lá fora sufocam a região próxima ao Ceasa.

Não longe dali, no Alto de Pinheiros, está a casa onde Fernando passou a infância. Quando nasceu, em 11 de setembro de 1955, o bairro tinha ruas de terra e um curral onde se podia comprar leite tirado na hora. Filho de um gastroenterologista e de uma paisagista, teve uma infância que poderia ser resumida pelo poema “Meus Oito Anos”, de Casimiro de Abreu (aquele do “Oh! Que saudades que tenho/ da aurora da minha vida”). “Sim, porque tive uma boa infância ligada a fazendas, bananeiras e laranjais; mas não, porque não tenho saudade daquela vida”, ele corrige. “Acho que mencionei esses versos, pois minha avó paterna gostava de recitá-los. Casimiro de Abreu não é muito ‘my cup of tea’, como diriam meus amigos ingleses.”


Logo descobriremos que o que move Meirelles é outro clássico da literatura. Por enquanto, basta saber que esses verdes anos em contato com a natureza moldaram uma das paixões do diretor: as árvores e florestas. Toda a família dele vem do campo, o que o faz dizer que tem raiz funda no Brasil. “Se juntar os sobrenomes dos meus avós, não tem nenhum que não estivesse por aqui há menos do que uns 300 anos: Meirelles, Junqueira, Andrade, Siqueira, e por aí vai. Gente que capinou muito nosso chão. Acho que esse padrão está grudado em algum lugar em mim, adoro terra e acredito em herança psicogenética.”

Hoje, Fernando mora em um condomínio em Cotia (SP) e usa uma picape movida a álcool como meio de transporte. Na fazenda que tem em Rifaina (SP), planta árvores nativas, café e cana. Com todas essas ramificações, ele naturalmente produziu Xingu, dirigido por Cao Hamburger, que mostra a trajetória de vida dos irmãos Villas-Bôas. O filme deve fechar o circuito com 400 mil espectadores – abaixo das expectativas. “A turma gosta tanto de super-heróis no cinema, como muitos não perceberam que os irmãos Villas-Bôas foram super-heróis de verdade?”, lamenta. Em breve o longa deverá virar minissérie da Globo para, aí sim, encontrar o povo brasileiro.

Também quase se dedicou à fauna, pois pensou em cursar biologia na França. Mas, em 1975, acabou mesmo na “escola conhecida por formar quase todo tipo de profissionais”, a FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). “Eu me envolvi com urbanismo. Acho que se não fosse cineasta, seria um planejador urbano”, diz. A experiência anterior de Meirelles com cinema tinha sido com o pai, que fazia algumas paródias em 8 mm e depois exibia para a família. O próprio Fernando começou a se arriscar em filminhos domésticos quando tinha 13 anos. Como não trabalhava quando entrou na faculdade, usava todo o tempo para se dedicar ao aprendizado – de vários tipos. Jogava no time de polo aquático da USP (“muito fraco”), se reunia para trocar ideias e fumar maconha, e começou a produzir animações na produtora que montou com colegas – a Aruanã Filmes.

Mas, um dia, ele bateu a moto. Quando estava no 4º ano universitário, fraturou a tíbia e a fíbula ao se chocar com uma Kombi. Ficou seis meses imobilizado. Aproveitou para buscar o tempo que não poderia ser perdido. Começou a ler clássicos e organizar leituras. Entre Marcel Proust e John Updike, veio Grande Sertão: Veredas – este sim o seu “cup of tea”. Mergulhado nas palavras de Guimarães Rosa, Meirelles pela primeira vez teve vontade de fazer um filme de verdade. E aquilo que talvez tenha acendido uma chama hoje é apenas uma brasa escondida em algum canto – ele engavetou o sonho de adaptar a obra. “[O projeto] está abandonado por ora. O número de gente interessada na história não justifica a produção”, encerra.

Também na época de formação na FAU, Fernando participou ativamente – só largou depois de sete anos – do Pró-Vida, uma escola que patrocina o autoconhecimento. “Teve um período em que eu vivia com essa perspectiva de transcender, achava que havia um depois que justificaria os sacrifícios do agora”, conta. “Não sei se com a idade fui ficando mais cético, mais cínico ou mais prático, mas o fato é que minha busca hoje não é mais conseguir uma redenção no final, mas sim viver esta vida a cada instante. Coisa difícil de se fazer, mas eu tento o quanto posso.” Ele teve um trágico contato com a morte aos 4 anos, quando o irmão mais velho morreu atropelado. “Penso no meu fim diariamente e por causa disso não me iludo por um segundo sobre uma possível relevância da minha vida, que sei que é muito breve e descartável.”

Mas existe pelo menos um trabalho de Meirelles que foi feito contrariando o pensamento socrático, negando o “Só sei que nada sei” do discurso da maturidade. A sua tese de graduação foi feita em vídeo e ele jura que jamais a mostrará a alguém. Tirou 5 e passou. “Aquele trabalho era o suprassumo da arrogância juvenil. Hoje tenho uma noção muito mais precisa da minha insignificância”, fala, reafirmando seus valores atuais. “Parece que a minha ignorância é diretamente proporcional à minha idade. Quanto mais velho, mais burro fico e menos respostas eu tenho.”


A saída da universidade não mudou a rotina de Meirelles. Ele já estava envolvido na nova empresa que lançou com amigos, a Olhar Eletrônico. Além de ser um celeiro de talentos e projetos, a produtora independente também deu sorte no amor. Usando o xaveco de “Passa lá para a gente gravar um vídeo experimental”, Meirelles conheceu Ciça, mulher dele até hoje – o casal tem dois filhos, Francisco, cineasta, e Carolina, autora das fotos desta reportagem.

Naquela remota época sem Youtube, as ideias brotavam e eram colocadas em prática na televisão mesmo. Não dava para experimentar antes na internet. Como fazer cinema – já um dos propósitos de Meirelles – era caro, a TV era o caminho mais curto para os vídeos que produzia. O primeiro trabalho mais “sério” foi Garotos do Subúrbio, documentário sobre o movimento punk. Seguiram programas na TV, como Antenas (1983), que tinha espaço até para a exibição de um aquário por 45 minutos, e 23ª Hora, comandado por Goulart de Andrade, ambos na TV Gazeta. Era como se um canal de vídeos caseiros da internet parasse na grade de uma emissora aberta – e exibisse coisas boas. Também nesse período, surgiu o repórter Ernesto Varela, interpretado por Marcelo Tas, hoje âncora do programa CQC. Considerado o pai dos repórteres abusados, Varela abordava personalidades e sempre era acompanhado do fiel câmera, o Valdeci, na maioria das vezes incorporado por Meirelles.

“O Fernando tem um talento para a diplomacia que faz falta ao nosso Itamaraty”, define Tas. “Ele é capaz de unir gente que nunca se olharia na cara. E também de dar petelecos tão eficientes quanto suaves, sem que a pessoa perceba ou se ofenda. Essa característica rara vem do seu segredo mais bem guardado.”

Segredo? A essa altura, eu chutaria que, mesmo com todo esse oba-oba em torno de seu nome, Fernando é um bom-moço, nada afeito a contravenções, e que gosta de ficar quieto no canto, sem incomodar.

“Curioso você ter pego este meu lado de bom moço infrator”, brinca Meirelles. “Pouca gente percebe, mas acho que tem alguma verdade aí. Já fiz muita besteira na vida, mas sempre tomando o cuidado de não atingir ninguém.” Ele revela que Tracey Seaward, produtora de O Jardineiro Fiel, o chamava de “soft bulldozer”, um trator gentil. “É fato que gosto de andar por onde ninguém andou, de abrir estradas e, quando vou, vou mesmo, mas tento fazer isso de forma a não machucar ninguém. Senão, não faz sentido. Com relação a leis, sou praticamente a velhinha de Taubaté.”

Tas ratifica com uma brincadeira (ou não): “Meirelles é o brasileiro mais mineiro que conheço. Mais que o Tancredo e o Itamar juntos”. O cineasta, por sua vez, também acha que se preocupa mais do que deveria. “Uma analista, que lamento ter deixado, me disse que eu tinha superego santo. Que a mania de querer cuidar de todo mundo não passava de um traço megalomaníaco da minha personalidade. Faz sentido.”

Ainda na Olhar Eletrônico, surgiram programas como Grig-Rá, TV Mix (que revelou Serginho Groisman e Astrid Fontenelle) e a cereja do bolo, o revolucionário show infantil Rá-Tim-Bum. “Nossa TV não está pior, mas está mais previsível”, Meirelles comenta. “Não se vê mais muita TV experimental no ar. Uma pena.” Com o desmanche da produtora, Meirelles e Paulo Morelli montaram a O2 Filmes em 1990, cujo slogan era “Cópias quentinhas a toda hora”. A publicidade virou o motor criativo do diretor, que calcula que comandou cerca de 800 comerciais, nos quais trabalhou com dezenas de diretores de fotografia e se aprimorou em contar histórias e dirigir atores.


Mas foi a publicidade que patrocinou o maior arrependimento profissional da vida de Meirelles. Durante a rodagem de um comercial de cerveja em Campinas (SP), nos anos 90, ele pensou em desistir. Por uma série de problemas, a produção atrasou o cronograma, derrubou a luz do bairro e deixou os dois mil figurantes no frio, durante a madrugada. “Lembro-me de ter sentado num caixote e decidido que nunca mais faria cinema na vida”, conta. “Como você vê, não cumpro minhas promessas.” Ele acabou rodando o comercial (“ficou ruim”), mas pensou que talvez toda a confusão trazia algum sinal. “Enfim, entrei numas naquela madrugada. Passou.” Como percurso natural, pensou em curtas-metragens, mas acabou aceitando rodar Menino Maluquinho 2, que codirigiu com Fabrizia Pinto. Só depois faria E No Meio Passa Um Trem, curta que faturou prêmios e consolidou o nome de Meirelles como promessa do cinema.

Em 1997, recebeu uma dica de leitura do diretor Heitor Dhalia: Cidade de Deus, de Paulo Lins. Começou a trabalhar na adaptação com o roteirista Bráulio Mantovani, mas antes codirigiu Domésticas, o Filme com Nando Olival. Com o atual sucesso da novela Cheias de Charme, brinco se Meirelles toparia fazer um reboot de Domésticas. “Penso sempre em comédia popular”, diz. “Quem sabe misturando caipira com sertanejo, numa trama em que o tema seja ele tentando preservar o cerrado onde mora, possa sair um filme interessante. Olha aí, você me deu uma ideia.”

Outra ideia para entrar em uma imensa lista: em uma semana de julho, desabam mais oportunidades na mesa de Meirelles (sentido figurado, já que ele não tem mais mesa) do que poderiam surgir na vida inteira de um diretor brasileiro qualquer. São convites para dirigir filmes internacionais, pedidos de palestras e até proposta de posar para uma campanha de uma marca de roupas. “Tento evitar virar um síndico da minha própria vida, mas isso às vezes acaba acontecendo”, ele reclama. “Não tenho celular e trabalho em casa para garantir algum tempo para mim. Mas funciono bem por e-mail.” Afirmando que gosta de ficar só, cita Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas: “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho”.

Ele tira e coloca os óculos, mexe no computador e desarruma o cabelo, mas não é frenético. Controlando a ansiedade, Fernando faz uma contagem pessoal. “Fazer filme leva tempo e eu não tenho 20 anos. Se eu quiser dirigir até os 70, isso me daria o direito de fazer no máximo mais seis ou sete filmes. Assustador, não?” Sim, ainda mais se levada em conta a quantidade de opções que passam pelas mãos dele todos os dias.

“Nunca conto quantos filmes fiz, mas sim quantos ainda posso fazer”, reflete. “Sempre tendo em conta que algum caminhão sem breque, em alguma esquina, pode acabar com a minha contagem de uma hora para outra. Viver é muito perigoso.”

A estreia solo de Fernando Meirelles na direção ocorreu em 2002, no dia 31 de agosto, com a entrada de Cidade de Deus no circuito nacional. Foi um projeto no qual colocou toda a energia e economias (cerca de R$ 2 milhões), e que em troca lhe renderam as inéditas quatro indicações ao Oscar (diretor, roteiro, montagem e fotografia), o tapete vermelho, a fama e 3,2 milhões de ingressos vendidos no Brasil. “É o filme em que me senti mais livre para criar, é o mais pessoal”, afirma. Além de perder o Oscar para Peter Jackson, da trilogia O Senhor dos Anéis, Meirelles teve de ouvir o grito de “Cidade de Deus é o Brasil no Oscar!”, durante as torcidas. “Achei engraçada a reação. Prêmio em cinema também é engraçado: como se pode comparar histórias tão distintas? Não levo estas coisas de ídolo muito a sério”, diz. “Como disse, conheço muito bem o tamanho da minha insignificância para acreditar nisso.”