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Entrevista Rolling Stone: Julian Assange

Em prisão domiciliar na Inglaterra, o fundador do WikiLeaks abre o jogo sobre sua batalha com o NY Times, seu período na solitária e o futuro do jornalismo

Michael Hastings Publicado em 13/02/2012, às 12h24 - Atualizado em 05/03/2012, às 16h00

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PROCURADO </n> “Não tenho um ego gigante”, diz Assange na propriedade secreta onde mora, na Inglaterra. “Só sou firme ao dizer não” - Max Vadukul
PROCURADO </n> “Não tenho um ego gigante”, diz Assange na propriedade secreta onde mora, na Inglaterra. “Só sou firme ao dizer não” - Max Vadukul

É pouco antes do natal e Julian Assange acabou de se mudar para um novo esconderijo no interior da Inglaterra. A casa de dois quartos, emprestada por um parceiro-apoiador do WikiLeaks, é suficientemente confortável, com uma grande lareira de pedra e uma varanda, mas não tão grandiosa quanto a casa de campo na qual ele passou 363 dias em prisão domiciliar, esperando que um tribunal britânico decidisse se ele seria extraditado para a Suécia para enfrentar alegações de que teria molestado sexualmente duas mulheres com as quais se envolveu por um curto período, em agosto de 2010.

Assange está sentado em um sofá esfarrapado, usando suéter de lã, calça escura e um dispositivo eletrônico em volta do tornozelo direito, visível apenas quando cruza as pernas. Aos 40 anos, o fundador do WikiLeaks se parece mais com um rebelde preparado para combater do que com um hacker ou jornalista. Ele melhorou no tratamento com a mídia – está mais disposto a responder a perguntas do que antes, com menos chance de abandonar entrevistas – mas a longa batalha legal o deixou isolado, falido e vulnerável. Recentemente, Assange falou com alguém que chama de uma “fonte de inteligência” ocidental e perguntou ao oficial sobre seu destino. Será um homem livre novamente, com permissão para voltar à sua Austrália natal, ir e vir quando quiser? “Ele me respondeu que eu estava ferrado.”

“Você está ferrado?”, pergunto.

Assange faz uma pausa e olha pela janela. A casa está cercada por morros e matas tranquilas, mas isso pouco lhe oferece em termos de fuga. A Suprema Corte britânica ouviria seu apelo à extradição em 1º de fevereiro – mas, seja lá o que acontecer, provavelmente ele continuará sendo um homem procurado. A Interpol emitiu um “aviso vermelho” para sua prisão, em nome das autoridades suecas, para questionamento com “relação a diversas ofensas sexuais” – Kaddafi e acusados de crimes de guerra mereceram apenas um “aviso laranja” e o governo dos Estados Unidos o rotulou de “terrorista de alta tecnologia”, lançando uma investigação gigantesca e inédita, voltada para mostrar o jornalismo de Assange como uma forma de espionagem internacional. Desde novembro de 2010, quando o WikiLeaks envergonhou e enfureceu governos no mundo inteiro com a divulgação do que se tornou conhecido como Cablegate – cerca de 250 mil documentos diplomáticos confidenciais de mais de 150 países –, os apoiadores do grupo se viram detidos em aeroportos, intimados a testemunhar perante um júri e ordenados a entregar suas contas no Twitter e e-mails às autoridades.

Assange sempre se envolveu profundamente com o mundo – e sempre se meteu em encrenca. Nascido em uma pequena cidade em Queensland, passou boa parte da juventude viajando pela Austrália com a mãe e o padrasto, que dirigia uma companhia de teatro. Na adolescência, descobriu os computadores – seu primeiro foi um Commodore 64 – e se tornou um dos primeiros hackers do mundo, usando o nome Mendax, que em latim significa “nobremente inverídico”. Depois de invadir sistemas da NASA e do Pentágono quando tinha 16 anos, foi preso por 25 acusações de invasão, o que o incentivou a andar na linha. No entanto, enquanto viajava pelo mundo, trabalhando como consultor de tecnologia na década de 90, continuou usando suas habilidades no computador para garantir a liberdade de informação – uma condição necessária, ele acredita, para a autorregulamentação democrática. “Desde os dias gloriosos do radicalismo norte-americano, que foi a Revolução Americana, acho que a visão de [James] Madison [quarto presidente dos Estados Unidos] sobre o governo ainda não foi equiparada”, ele afirma, durante os três dias que passo com ele enquanto se organiza na nova casa na Inglaterra. “De que as pessoas determinadas a estar em uma democracia, a ser seus próprios governos, devem ter o poder que o conhecimento trará – porque o conhecimento sempre dominará sobre a ignorância. É possível ser informado e ser seu próprio governante ou ser ignorante e ter outra pessoa, que não é ignorante, para mandar em você. A questão é: onde os Estados Unidos traíram Madison e [Thomas] Jefferson, traíram esses valores básicos sobre como manter uma democracia? Acho que o complexo industrial-militar dos Estados Unidos e a maioria dos políticos no Congresso traíram esses valores.”


Em 2006, Assange fundou o WikiLeaks, um grupo de hackers e ativistas que foi chamado de a primeira “organização de notícias sem Estado”. O objetivo, desde o começo, era operar além do alcance da lei, colocar as mãos em documentos vitais censurados por governos e corporações e disponibilizá-los ao público. Depois de uma série de sucessos iniciais – publicando vazamentos sobre Islândia, Quênia e até um documento do Pentágono advertindo sobre o WikiLeaks –, Assange abalou os militares dos Estados Unidos, em abril de 2010, com a divulgação de “Assassinato Colateral”, um vídeo que revelou um helicóptero americano no Iraque abrindo fogo contra civis desarmados, matando dois jornalistas e várias outras pessoas. Logo em seguida, abriu centenas de milhares de arquivos confidenciais relativos às guerras no Iraque e no Afeganistão, criando uma comoção internacional. No entanto, pouco depois de revelar os documentos diplomáticos, amplamente creditados por terem ajudado a iniciar a Primavera Árabe, Assange foi detido e preso depois de passar uma semana com duas apoiadoras em Estocolmo, o que o envolveu em uma batalha jurídica de um ano para ganhar a liberdade.

Assange concordou em dar uma longa entrevista em sua nova casa, sob a condição de que a localização, bem como a identidade dos principais funcionários do WikiLeaks, que ficaram a seu lado desde que começaram os problemas na Suécia, continuariam secretas. Embora continue comandando o grupo do cativeiro, trabalhando no que chama de uma nova série de furos relativos à indústria de vigilância particular, o furor da mídia em torno de sua vida pessoal o transformou em um pária para muitos ex-apoiadores, dificultando para o WikiLeaks levantar dinheiro. Ele foi chamado de estuprador, combatente inimigo e agente da Mossad e da CIA. Seus dois colaboradores mais proeminentes – os jornais The New York Times e The Guardian – repetidamente o tacharam de pervertido sexual com má higiene, ao mesmo tempo em que continuaram alegremente vendendo livros e direitos para filmes sobre suas empreitadas. Sua própria personalidade também mostrou ser controversa: é charmoso, brilhante e inflexível, mas inspirou ódio intenso entre ex-colegas, que o retratam como um megalomaníaco cujo ego minou a causa.

Chego 45 minutos adiantado para meu último dia com Assange. A maior parte de sua equipe foi para casa passar as festas de final de ano e ele está sozinho, só com o assistente pessoal lhe fazendo companhia. Assange está grudado no laptop na sala de jantar que transformou em seu escritório, monitorando o que se tornou seu único foco nos últimos dias: o julgamento de Bradley Manning, soldado do Exército de 24 anos acusado de fornecer os documentos diplomáticos ao WikiLeaks. Assange tem dois advogados o representando no tribunal em Maryland e seu nome foi mencionado praticamente todos os dias durante a audiência inicial. A estratégia do governo, ficou claro, é pressionar Manning a envolver Assange em espionagem – apresentar seu trabalho no WikiLeaks como o ato de um espião, não como o de um jornalista. Quando Assange entra na sala de estar e se senta no sofá, um Jack Russell Terrier pula em seu colo e fica ali na maior parte das próximas cinco horas. “Você usa dois gravadores”, diz Assange, olhando para os gravadores digitais que coloquei sobre a pequena mesa de centro. “Normalmente, uso três.” No entanto, assim que iniciamos a entrevista, o telefone toca. É Daniel Ellsberg, o homem que vazou os Papéis do Pentágono e foi ao julgamento de Manning com os advogados de Assange. Está em um carro dirigindo de volta a Washington. “Estou te ouvindo”, grita Assange, indo para a sala de jantar. “Você consegue me ouvir?”

Cinco minutos depois, Assange retorna energizado por sua conversa com o denunciante mais famoso dos Estados Unidos. “Onde estávamos?”, pergunta. Seu assistente traz duas xícaras de café e a entrevista começa.

A mentalidade de publicação do WikiLeaks é radicalmente diferente da grande imprensa. Enquanto um jornal que recebeu 500 mil documentos divulga, talvez, 20 deles, você divulga todos.

O Cablegate é formado por três mil volumes de material. É o maior tesouro intelectual que entrou em domínio público nos últimos tempos. O NY Times só divulgou pouco mais de 100 documentos. Há mais de 251 mil no Cablegate. Então, nossa abordagem é bastante diferente da usada pelo Times, que, em seus acordos de segurança, só estava preocupado em evitar que o The Washington Post descobrisse o que ele estava fazendo. Só que comunicou ao governo norte-americano cada documento que queria publicar.


E, em troca, o Times retratou você como um pária, apesar de ser responsável por conseguir para o jornal todo esse material incrível e também montar uma organização inovadora para coletar e processar todos os dados vazados.

Absolutamente nenhuma honra ou gratidão. Não quero diminuir as dificuldades que o Times enfrenta ao operar nos Estados Unidos, mas acho que ele poderia tê-las gerenciado de forma mais honrável. Depois que os diários da Guerra do Afeganistão saíram, o Times publicou um perfil hostil de Bradley Manning que o tachou de uma pessoa triste e louca e só pode ser descrito como matéria de tabloide. Depois, quando publicamos os registros da Guerra do Iraque, descobrimos detalhes sobre a morte de mais de 100 mil civis e detalhes da tortura de mais de mil pessoas. Praticamente todos os outros jornais publicaram a história. A ONU e vários países investigaram as alegações e até os próprios documentos internos do exército norte-americano se referiam aos abusos como tortura. Mas o Times se recusou a usar a palavra “tortura”. Em vez disso, publicou uma nota sórdida contra mim na primeira página que era factualmente imprecisa. Dizia, por exemplo, que eu havia sido acusado de abuso sexual, o que não era verdade, e que 12 pessoas saíram de nossa organização, quando havíamos suspendido uma. Não me importo de levar pancada, mas ela deve ser factualmente precisa. Não foi algo comensurado o Times se rebaixar a uma nota negativa de tabloide na primeira página quando tínhamos acabado de expor a morte de mais de 100 mil civis.

“Assassinato Colateral” – o vídeo que você divulgou em abril de 2010 mostrando um helicóptero disparando contra um grupo de civis iraquianos, incluindo dois jornalistas e duas crianças – foi a primeira história que lhe rendeu grande atenção da mídia. Você ficou sabendo que o The Washington Post na verdade tinha o vídeo e o estava guardando.

Um repórter do Post chamado David Finkel tinha o vídeo. Tínhamos fontes que explicaram que ele até lhes havia mostrado o vídeo em casa, mas o escondeu.

Foram esses tipos de falhas da grande mídia que o inspiraram a começar o WikiLeaks?

As coisas que mais me influenciaram foram minhas experiências na luta pela liberdade de imprensa, de comunicar o conhecimento – o que, no final, é se libertar da ignorância. Segundo, minhas experiências em entender como o complexo de inteligência militar funciona no nível prático. Percebi que publicações no mundo inteiro eram profundamente restritas pela autocensura, pela censura econômica e política, enquanto o complexo industrial militar crescia a uma taxa assombrosa, e a quantidade de informações que ele coletava sobre todos nós excedia, e muito, a imaginação pública.

Você registrou o domínio leaks.org em 1999, quando trabalhava em tecnologia de criptografia para dissidentes e trabalhadores de direitos humanos. Isso foi antes de os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono permitirem ao governo expandir drasticamente seu poder de manter informações secretas e espionar os próprios cidadãos.

Sim. Em 11 de setembro, eu estava ao telefone com um amigo discutindo algoritmos de criptografia. Muito rapidamente, vi qual seria a contrarreação e que todas as propostas que o complexo industrial militar tinha para espiar todos, para remover a causa provável, para aumentar seu financiamento, seriam priorizadas novamente. Foi exatamente o que aconteceu.

Então, dois anos depois, os Estados Unidos invadiram o Iraque.

A criação do WikiLeaks foi, parcialmente, uma reação ao Iraque. Houve diversos denunciantes que se manifestaram com relação ao Iraque e ficou claro para mim que o que faltava no mundo, nos dias de propaganda do Iraque, era uma maneira de fontes internas que sabiam o que realmente estava acontecendo comunicarem essas informações ao público. Algumas que o fizeram acabaram em circunstâncias muito calamitosas, como David Kelly, o cientista britânico que cometeu suicídio ou foi assassinado por suas revelações sobre armas de destruição em massa. A Guerra do Iraque foi a maior questão para pessoas da minha geração no Ocidente. Também foi o caso mais claro, pelo que me lembre, de manipulação da mídia e de criação de uma guerra através da ignorância.

Antes dos furos direcionados ao governo norte-americano – os registros e os documentos referentes ao Afeganistão e ao Iraque –, seu foco estava voltado para outros países.

Inicialmente, pensávamos que nosso maior papel seria na China e em alguns antigos países da antiga URSS e na África. Tivemos os primeiros sucessos nesse continente. Morei no Quênia em 2007 e conseguimos um documento que expunha bilhões de dólares de corrupção pelo ex-presidente Daniel arap Moi e seus comparsas. As evidências acabaram mudando os votos em 10% e alterando a eleição queniana, mas a corrupção de Moi não existia só ali. O dinheiro roubado do Quênia foi depositado em bancos, propriedades e empresas de Londres, em propriedades em Nova York. Não há corrupção de larga escala no mundo em desenvolvimento sem corrupção ocidental. Essa foi uma lição importante para mim. Outra lição importante foi que, muito rapidamente, começamos a receber informações – do que presumíamos ser funcionários descontentes do governo norte-americano – sobre as ações do exército norte-americano. Os Estados Unidos têm sido historicamente uma sociedade aberta, mas, dentro do país, há um Estado-Sombra, e esse é o exército nacional, que, em setembro, tinha 4,3 milhões de certificados de segurança. Isso equivale à população da Nova Zelândia. É uma sociedade fechada e totalitária que coleta e armazena mais informações do que qualquer outra no mundo.


O WikiLeaks foi creditado, até por seus críticos, como tendo incentivado a Primavera Árabe e até o Occupy Wall Street. Era seu plano? Você imaginou que poderia ter esse impacto?

Planejamos a maior parte do que ocorreu nos últimos 12 meses. É justo dizer que estamos inesperadamente encantados por esses planos terem dado frutos. Com relação à Primavera Árabe, a maneira como a vi em outubro de 2010 é que as estruturas de poder no Oriente Médio são interdependentes, uma apoia a outra. Se pudéssemos liberar informações suficientes na velocidade suficiente sobre muitos desses indivíduos e organizações poderosos, sua capacidade de apoio mútuo diminuiria. Eles teriam de enfrentar suas próprias batalhas locais – teriam de se voltar para dentro para lidar com a crise política doméstica resultante das informações – e, portanto, não teriam os recursos para preparar os países vizinhos.

Você acha que os governos devem poder guardar alguns segredos?

É uma pergunta muito mais interessante do que a resposta. Em alguns casos – rastrear o crime organizado, digamos – os oficiais do governo têm a obrigação de manter as investigações secretas no momento em que as estão realizando. Da mesma forma, um médico precisa manter informações sobre seus históricos médicos confidenciais na maioria dos casos.

Quando as pessoas falam de sua infância, as duas palavras mais usadas para o descrever são “nômade” e “hacker”. Você enfrentou problemas pela primeira vez aos 17 anos, por ter invadido as redes do Pentágono e diversos sites australianos. Parece, de certa forma, que durante toda a vida você esteve engajado em uma campanha contra a autoridade.

Não estou em uma campanha contra a autoridade. A autoridade legítima é importante. Todos os sistemas humanos exigem autoridade, mas ela deve ser concedida como resultado de consentimento informado de quem é governado. Atualmente, esse consentimento, quando há, não é informado e, portanto, não é legítimo. Para comunicar conhecimento, devemos proteger a privacidade das pessoas – então, há 20 anos, desenvolvo sistemas e políticas e ideais para proteger o direito de as pessoas se comunicarem de maneira privada sem interferência do governo, sem vigilância. O direito de se comunicar sem vigilância do governo é importante, porque ela é outra forma de censura. Quando as pessoas têm medo de dizer algo que possa ser ouvido por um poder que tem a capacidade de prendê-las, elas ajustam o que estão dizendo. Começam a se autocensurar.

Crescendo na Austrália, quais foram as experiências que fizeram de você quem é? Entrar em encrencas como hacker?

Tive uma infância como a do personagem Tom Sawyer, o que acho uma coisa boa. Muito aventureira fisicamente em diferentes ilhas, no deserto e em regiões tropicais, tendo pequenas gangues com outros garotos, cavalgando, entrando em cavernas de morcegos, explorando sistemas de drenagem e florestas, caçando peixes tropicais. Acho que os momentos diferenciadores que você tem na infância, além dos físicos, são os morais, então uma vez projetei e construí uma balsa complexa. Meu plano aos 12 anos era passar a noite na balsa no rio Richmond, conhecido por ter cações-baleeiros. Todos os meus amigos disseram que era uma ótima ideia, então começamos a construí-la, mas só um deles aceitou realmente passar a noite na escuridão no rio. Uma semana depois, a balsa foi roubada e consegui descobrir quem tinha feito aquilo. Eram garotos um pouco mais velhos. Preparamos uma missão à noite para roubá-la de volta, soltá-la e deixar que seguisse rio abaixo. A balsa navegou no meio do rio. Caminhamos acompanhando pela margem e o rio ficou cada vez mais largo, então percebi que teria de mergulhar para pegá-la, ali no meio da noite, sem mais ninguém. Comecei a pensar nos cações-baleeiros. Instruí meu corpo a pular, mas ele se recusou diante daquelas condições. Então, até eu tive aquele momento de ser um covarde, mas acho que a situação pedia isso.

Você gostou do ensino médio?

Frequentei muitas escolas porque viajava com a companhia de teatro dos meus pais. Gostei de algumas, de outras não. Conheci uma grande variedade de tipos de pessoas e sistemas educacionais e foi difícil manter algumas amizades duradouras da infância, embora tenha feito outros amigos. Isso me deu uma noção de perspectiva, o que acredito ter se tornado importante.

Você teve uma fase de usar drogas na faculdade? Maconha ou algo assim?

Eu era um pouco o estereótipo do intelectual, apesar de ter sido fisicamente aventureiro na adolescência. Fazia experimentos em todos os meus amigos e escrevia os resultados, mas nunca tomava nada.


Então você nunca experimentou...

Quanto ao que aconteceu depois, acho que, devido às circunstâncias, farei silêncio sobre minha vida particular adulta. Existe algo, na verdade. Embora não seja calvinista, se você está lutando para mudar o mundo de uma maneira importante, tem o compromisso de, caso se oponha a ações de empresas como a Philip Morris, não comprar seus produtos.

Vamos falar sobre alguns ataques pessoais. Mesmo muitos dos mais próximos dizem que é difícil trabalhar com você. Verdade?

Acho a pergunta muito interessante.

Falou como alguém difícil.

Acho que sua pergunta é muito interessante, e de onde ela vem? Bom, quando o The Guardian rompeu seu contrato do Cablegate conosco, quando dissemos ao The New York Times para cair fora porque estava baixando a cabeça para a Casa Branca, esses dois grupos tentaram dizer que o motivo para termos mandado caírem fora é simplesmente devido à minha personalidade em vez de uma incompatibilidade institucional fundamental. Dizemos que o Guardian rompeu o contrato, o Times entrou para um jornalismo de tabloide, temeroso e sem coragem, então, para se defenderem contra isso, eles dizem: “Ah, não, é porque as meias do senhor Assange estavam sujas”. Ou: “Ele é uma pessoa extremamente difícil de trabalhar”.

Mas algumas pessoas que trabalharam com você ao longo dos anos também fazem uma imagem negativa sua. Que você não seria a única pessoa na mídia a ter um ego imenso.

Não acho que tenha um ego imenso. Só sou firme para dizer “não”. Não, não vamos destruir tudo que já publicamos. Não, continuaremos publicando o que prometemos publicar. Não, não vamos parar de lidar com vazamentos militares dos Estados Unidos. Para alguns, isso parece um grande ego, mas é apenas uma questão de manter os ideais.

Há uma espécie de mini-indústria em expansão atacando o WikiLeaks e Julian Assange.

Na verdade, existem cerca de 100 livros até o momento, mas uns 80 deles são oportunistas que não têm absolutamente nenhum texto real – apenas colagens de coisas. Se você está falando de livros de verdade, nos quais alguém realmente escreveu cada palavra desde o começo, há mais de uma dezena. Um dos mais engraçados é um livro russo que nos acusa de ser uma liga para difamar [o presidente russo Vladmir] Putin.

Houve perseguidores em seu esconderijo anterior. Isso deve ter sido assustador.

Foi, apesar de ser um lugar bem remoto – a três horas de Londres via trem rápido, mais 40 minutos de carro por estradas do interior e, depois, atravessando uma longa estrada particular até a casa. Muitas pessoas tentaram aparecer à porta ou fazer uma emboscada na delegacia. Coincidiu com muitos políticos norte-americanos, como Sarah Palin e Newt Gingrich, pedindo meu assassinato ou sequestro. Felizmente, quase todos os que tentaram chegar perto me apoiavam de um jeito ou de outro. A maioria era de mulheres que se achavam minhas noivas.

Mulheres querendo casar com você? Quantas no último ano?

Centenas.


Centenas de mulheres apareciam?

Às vezes homens também. Houve um, capitão Morgan, que alegava trabalhar para a Intel e era capitão do mar. Ele vendeu seu barco para aparecer à minha porta, dizendo que éramos a única organização na Terra pela qual valia a pena trabalhar. Uma mulher da Catalunha pegou um táxi em Londres e chegou à nossa casa, no limite da propriedade, com uma corrida de 450 libras, depois de convencer o taxista que eu pagaria assim que nossa briga romântica fosse resolvida. Ela e o taxista convenceram um dos vizinhos a deixá-los passar a noite – o taxista se recusou a ir embora sem receber o dinheiro. Tem havido tietes. Não, não vou chamá-las de tietes. Jovens que vieram da Noruega e da Suécia e apareceram à minha porta. Quando eu estava na prisão, absurdamente, as únicas que conseguiam fazer correspondências chegar em até mim na primeira semana foram seis mulheres que queriam me dar bolos e cobertores, o que recusei. Só que, aparentemente, existem mulheres que tentam visitar qualquer prisioneiro famoso de uma certa idade e sabem como navegar pelo sistema. E nenhum jornalista no mundo conseguiu isso.

Você teve algum relacionamento sério ou significativo no último ano?

Por motivos de segurança, não posso falar sobre minha vida íntima. Quero deixar isso claro. Meus filhos receberam ameaças de morte e estão escondidos. Tenho de ser extremamente cauteloso quanto a expor muitas pessoas de quem sou próximo em um nível familiar.

O que aconteceu na Suécia com as duas mulheres que o acusam?

Isso é perante a corte, então não posso discutir o caso. É muito difícil estar em uma posição na qual você não pode dar sua versão sobre os eventos. Está claro que a questão é absurda e você pode ler tudo o que a procuradoria diz sobre o caso na internet.

Ao chamar de absurda, você não está querendo dizer que essas pessoas estão inventando coisas?

Não foi o que disse. Nunca critiquei as mulheres. Estou dizendo que as alegações são absurdas. As pessoas podem ler as alegações. Não são corretas, mas mesmo da forma declarada são absurdas. O que a procuradoria conseguiu fazer com sucesso é usar a palavra “estupro”. Embora não tenha sido acusado – e tecnicamente o que estão investigando é chamado de “estupro questionável” [quando há dúvidas se houve sexo consensual ou não], um conceito sueco –, isso não impediu que nossos oponentes constantemente se refiram às “acusações de estupro”, o que é falso. Quando fizemos a última pesquisa, em fevereiro de 2011, havia um total de 33 milhões de referências na internet à palavra “estupro” em qualquer contexto, de Helena de Troia ao Congo. Se você buscar “estupro” e meu nome, havia pouco mais de 20 milhões. Em outras palavras, perceptivamente, dois terços de todos os estupros que aconteceram na história do mundo têm algo a ver comigo.

Por que não dizer: “Olha, não fiz nada de errado, mas lamento se essas pessoas ficaram aborrecidas. São coisas muito sérias, estou levando isso a sério e vou para a Suécia enfrentar essas alegações”? As pessoas que o apoiam se perguntam por que você não fez isso.

Não acredito que o sistema judiciário sueco seja justo. A Associação Internacional de Capelães de Prisão afirma que as prisões suecas são as piores da Europa, piores até do que na Romênia, Estônia e assim por diante, porque, em 47% dos casos, os prisioneiros ficam incomunicáveis. Então, devido ao grau em que minha capacidade de agir seria altamente, se não completamente, eliminada ao entrar em uma prisão sueca, fico preocupado com isso. Se você criticar os fatos, como o de os suecos terem o pior sistema carcerário de toda a Europa, será pior, porque o sistema de justiça da Suécia irá se vingar.

Se sabia que os governos estavam procurando uma maneira de fazer truques sujos com você, não sentiu que estava se arriscando na Suécia quando estava com aquelas mulheres? Não estava dando um passo em direção ao abismo?

Tem sido falsamente noticiado que eu disse que as alegações suecas são resultado de uma armadilha da CIA. É mentira. O que falei é que o caso foi imediatamente transformado em algo político por oportunistas – instantaneamente, em questão de horas. Naquele dia, recebemos, de uma fonte de inteligência, uma lista de prioridades que o governo norte-americano tinha em relação a mim. Elas incluíam descobrir que informações tínhamos, o que iríamos publicar, evidências com relação ao processo contra Bradley Manning, além de uma opinião de que os Estados Unidos achariam um caso legal contra mim muito difícil e que, portanto, eu deveria ser muito cauteloso com relação a meios extralegais. Esses meios extralegais não eram assassinato, mas sim plantar drogas, pornografia infantil ou me envolver em conduta escandalosa.


Queria ter feito algo de maneira diferente?

No geral? Claro. Muitas coisas. Não suporto pessoas que dizem que nunca fariam nada diferente. Isso significa simplesmente que não aprenderam nada com suas experiências.

Quero dizer especificamente, em termos de lidar com as duas mulheres.

Nunca tinha enfrentado um escândalo sexual antes. Há certas formas, dependendo da cultura, na qual se deve lidar com um escândalo sexual politizado. No começo, também não levei isso muito a sério. Achei que desapareceria imediatamente.

Por que não contratar um assessor de imprensa?

Tentamos. Contratamos alguém na Inglaterra para lidar com o volume de pedidos da mídia. Ele aceitou a um pagamento substancialmente reduzido porque somos ativistas, uma causa célebre. Seus maiores clientes eram a Virgin e a Sony. Depois de uma semana, ficou claro que eram eles ou nós. Sua diretoria, segundo ele, insistiu para que nos largasse, e foi o que aconteceu. Houve uma dezena de casos semelhantes de pressão sendo aplicada a empresas que trabalhavam conosco. Quando as pessoas dizem: “Por que Julian não fez isso, por que não fez aquilo, por que o WikiLeaks não fez isso”, em muitos casos realmente tentamos. Não é tão fácil quando se está lutando contra uma superpotência.

A batalha legal tem sido muito cara?

Temos muitos casos legais. Este caso pessoal, o de extradição para a Suécia, tenho de pagar do próprio bolso. Não acho isso certo. Na verdade, acho que a organização deveria pagar por ele.

Por quê?

É inquestionável que o caso foi politizado como resultado de meu papel na organização. No entanto, para evitar o ataque de que os fundos seriam gastos neste caso, o que é efetivamente usado por nossos opositores para assassinar meu caráter, é completamente separado. O que significa que, como resultado, agora estou completamente falido.

Completamente falido?

É. Houve todos os tipos de complicações estranhas, como os advogados anteriores conseguiram ficar com todos os meus adiantamentos de livros. Então, não recebi um centavo de nenhuma publicidade que fiz.

Há um boato de que você tem uma conta bancária com 3,3 milhões de libras.

Ah, claro. Nossos opositores gostam de espalhar esses boatos para que se recusem a nos fazer doações.


Então isso não é verdade?

É bobagem. Espalham rumores de que estou morando em uma mansão ou de que virei sem-teto. Há dois anos, documentos fabricados foram espalhados dizendo que viajei de primeira classe e morei em um castelo na África do Sul, e nunca fui para lá. Se você quer atacar uma organização, como faz? Ataca o fluxo de caixa e a liderança. Os assassinatos de caráter são perigosos, mas, tomados como um todo, são absurdamente cômicos. Temos, por um lado, cerca de 700 mil referências sobre meu antissemitismo e, por outro lado, umas 2,5 milhões de referências a eu ser um membro da Mossad. Sou acusado de tudo: torturar gatos, estuprar, ser excessivamente preocupado com o meu cabelo, ser rico demais ou de ser tão pobre que minhas meias são sujas. Os únicos boatos que ainda não circularam são uma combinação de bestialidade com pedofilia.

Qual foi o fundo do poço para você? Houve algum dia em que você acordou se perguntando “No que fui me meter?”

Entendi que a importância do que estávamos fazendo era maior do que o WikiLeaks como uma instituição e maior do que nossa vida pessoal. Em novembro, eu disse a nosso pessoal, talvez para surpresa deles, que o que estávamos fazendo era mais significativo do que a vida de qualquer um de nós. Nesse nível, a gravidade das batalhas que tivemos não é algo que achei difícil de lidar. Sua gravidade é um reflexo da qualidade e da importância do nosso trabalho. Tendo dito isso, as traições são difíceis de aguentar. Esse confronto que estamos tendo com o estado de segurança nacional ocidental – não é certo chamar de estado de segurança nacional norte-americano, porque é um fenómeno transnacional – trouxe à tona o melhor e o pior nas pessoas. Trouxe à tona oportunismo, fraqueza, outras qualidades negativas. Trouxe ganância e covardia, mas também a força e a lealdade das pessoas. Perdemos amigos e colegas, mas também fizemos amigos muito leais e vimos revelada a força de velhas amizades. Há um velho ditado militar: “Não é a duração da guerra, mas a profundidade da trincheira.” No último ano, estivemos em uma trincheira muito profunda, então as amizades se tornaram profundas.

Qual é o futuro do WikiLeaks? Vai sobreviver?

Nesta semana, acho que conseguiremos. Vejamos o que acontece na próxima.

Onde você quer acabar, quando todas as batalhas legais chegarem ao fim?

Não quero acabar em nenhum lugar. Quero fazer o que fazia antes. Morei no Egito quando tínhamos coisas importantes que precisavam ser feitas, ou no Quênia, ou nos Estados Unidos, ou na Suécia, ou na Alemanha. Estou onde temos oportunidades.

Quando acha que recuperará a liberdade de fazer isso?

Com relação aos Estados Unidos, teremos de esperar pela revolução.