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A Fúria e a Força do Clash

Como a raiva que alimentou a única banda que fazia a diferença também a destruiu

Mikal Gilmore Publicado em 04/01/2012, às 18h22 - Atualizado em 19/01/2012, às 10h42

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<b>ROQUEIROS URBANOS </b> Paul Simonon, Joe Strummer e Mick Jones (a partir da esquerda) em Boston, em fevereiro de 1979 - BOB GRUEN/WWW.BOBGRUEN.COM
<b>ROQUEIROS URBANOS </b> Paul Simonon, Joe Strummer e Mick Jones (a partir da esquerda) em Boston, em fevereiro de 1979 - BOB GRUEN/WWW.BOBGRUEN.COM

O momento que serviu como o melhor exemplo da essência do Clash não aconteceu na Inglaterra, onde eles racharam a história do rock. Nem nos Estados Unidos, onde lutaram por um reconhecimento que, uma vez conquistado, foi fator de afastamento da banda. Aconteceu em agosto de 1977, em um festival de música em Liège, na Bélgica. A banda tocava para 20 mil pessoas e estava sob fogo cerrado da plateia, que lançava garrafas no palco. Mas não foi isso que incomodou o vocalista Joe Strummer. O que o irritou foi uma cerca de arame farpado de três metros de altura esticada entre estacas de concreto, formando uma barreira entre o grupo e o público – dividindo privilegiados e menos favorecidos. “Por que tem esse espaço aqui?”, o vocalista quis saber. Strummer pulou do palco e atacou a cerca, tentando derrubá-la, enquanto o guitarrista Mick Jones, o baixista Paul Simonon e o baterista Topper Headon tocavam com cautela. Os seguranças de palco do festival arrastaram Strummer de volta enquanto a equipe técnica do Clash se esforçava para afastar os seguranças do músico. Mais tarde, Simonon declarou ao jornalista Chris Salewicz: “Não parecia um show. Era mais como se fosse uma guerra”. O Clash foi a única atração que se apresentou ali que tentou fazer alguma coisa sobre a barreira. O grupo estava mais disposto a correr o risco do ataque da multidão do que a tolerar o arame farpado que tinha o intuito de segurar aquele público. Este era o objetivo da banda: praticar a luta do bem que poucas outras pessoas ousariam.

O Clash teria vida mais longa do que os colegas Sex Pistols e viria a ser o epítome do punk. Depois, iria se distanciar do movimento com sonoridade e ambição próprias. Ao longo do caminho, eles afirmaram a visão política de mundo mais ousada entre todos os artistas populares da história da música, passando das obsessões estreitas da rebelião punk no Reino Unido para a realidade feroz do mundo lá fora. Na primeira vez em que falei com a banda – em Londres, na semana de Natal de 1978 –, Strummer me disse: “Estamos tentando fazer uma coisa nova; queremos ser o melhor grupo do mundo, e isso também significa ser o maior. Ao mesmo tempo, estamos tentando ser radicais – quer dizer, nós nunca vamos querer ser de fato respeitáveis –, e talvez essas duas coisas não possam existir juntas, mas nós vamos tentar”.

Mas a história do Clash não tem a ver só com ideais. Também tem a ver com poder, com quem o detém ou não – no mundo real, e na banda. Depois do fim de sua missão, o Clash tinha sofrido desprezo, corações despedaçados e traição, pelas mãos uns dos outros.

Mick Jones, Joe Strummer e Paul Simonon – os três integrantes duradouros da banda – vinham todos de famílias dilaceradas. Jones, que compôs e arranjou a maior parte das músicas da banda, nasceu em junho de 1955. Quando ele estava com 8 anos, os pais dele se divorciaram. Ele ficou sob os cuidados da avó. Em 1968, encontrou sua recompensa na força da guitarra que ele ouviu em Disraeli Gears, do Cream – apesar de os anos que se seguiram terem favorecido mais os sons bagunçados dos Rolling Stones e do Mott the Hoople, e bandas norte-americanas como MC5, Stoogese New York Dolls. Ele começou a tocar guitarra a sério em 1972. No começo de 1975, fundou o grupo experimental London SS.

Naquele mesmo ano, Mick Jones conheceu Bernard Rhodes em um show em um bar vagabundo. Rhodes, ao mesmo tempo figura fundamental e problemática da história do Clash, era filho de uma judia que fugiu da Alemanha em 1945, grávida de Bernard. Ele nasceu no East End de Londres e nunca conheceu o pai. Quando Mick Jones o conheceu, Rhodes estampava camisetas para o empresário Malcolm McLaren na controversa butique Sex, localizada na King’s Road, em Londres. Tanto McLaren quanto Rhodes tinham se enamorado pelos Situacionistas, um movimento marxista que promovia ideias artísticas. McLaren queria aplicar os princípios dos Situacionistas à conservadora cena do rock de Londres. Ele tinha examinado gente de Nova York como Patti Smith, Television e Ramones e estava determinado a levar aquele som e atitude para Londres, tendo como alvo os hábitos sociais tacanhos dos britânicos. Encontrou seus meios no Sex Pistols, banda montada por um cliente da Sex, o guitarrista Steve Jones. Quando Rhodes apresentou McLaren a John Lydon, o Sex Pistols estava pronto para passar à notoriedade e ao status de lenda. Rhodes queria uma banda para controlar. Em Mick Jones, ele viu um garoto interessado em aprender.


Rhodes estava em busca de um equivalente de Johnny Rotten e Jones acreditava que tinha encontrado essa pessoa no magricela Paul Simonon. Ele também vinha de uma família despedaçada. Quando Jones conheceu Simonon, gostou do visual do rapaz de fala mansa – botas de caubói, cabelo curto espetado para cima, gingada distraída –, mas Simonon cantava fora do tom. Ainda assim, Rhodes convenceu Jones a ensiná-lo a tocar baixo. Jones tinha se tornado um letrista prolífico, mas não tinha voz feral, e era isso que Rhodes queria: um líder capaz de contar verdades sem vacilar.

Joe Strummer sempre teve um caráter de menino levado. Mas, ao longo do caminho, um ar cauteloso e melancólico tomou conta. Ronald, o pai dele, era representante diplomático inglês. A família não era rica, apesar de o trabalho de Ronald levar a prole para lugares distantes – Cairo, Cidade do México, Bonn e Ancara, na Turquia, onde Strummer nasceu no dia 21 de agosto de 1952, com o nome de John Mellor. Em 1961, preocupado com a possibilidade de que as viagens fossem nocivas à educação dos filhos, o casal Mellor deixou Joe e o irmão mais velho, David, em um internato londrino. Joe, juntamente com David, se sentiu abandonado pelos pais em um ambiente que trouxe à tona seu lado mais duro.

Na adolescência, Strummer encontrou moral nas mesmas fontes que acalentavam Mick Jones. Ele precisava daquela levantada. No verão de 1970, seu irmão David se matou com uma overdose de aspirina. O suicídio do irmão desequilibrou Joe. Quando o punk se transformou em seu meio e sua razão de ser, ele nunca assinou embaixo do niilismo que alguns consideravam tão romântico. A raiva e o luto que Joe tinha eram muito profundos para que ele se entregasse à ideia romântica do desapego, muito por causa do fatídico dia em que ele precisou identificar a fria realidade da vida em um necrotério de Londres.

Depois da escola, Strummer transformou a vida itinerante em carreira. Em 1972, começou a tocar violão e cantar músicas folk em estações do metrô de Londres. Em 1974, fundou o 101ers, uma banda que começou tocando rock antigo e R&B. Joe – que assumiu o nome Strummer em deferência a suas limitações como guitarrista – revelou-se um vocalista tosco; seus vários dentes tortos tinham lhe dado uma embocadura gutural. Mas ele tinha uma noção galvânica de ritmo e mandava ver no R&B de um jeito que fez com que a 101ers se transformasse em grande magneto de público. Em março de 1976, Strummer compôs e cantou o single do 101ers, “Keys to Your Heart”. Mas em abril começou a questionar o futuro da banda, depois que o Sex Pistols abrir um show para o 101ers.

Em maio de 1976, Mick Jones e Paul Simonon tinham reparado no 101ers – principalmente no vocalista. Durante um encontro casual em uma rua de Londres, Jones disse a Strummer que o tinha visto se apresentar com a 101ers; Jones não tinha gostado muito da banda, mas achou que Strummer era “ótimo”. Rhodes também viu o 101ers em um bar e nos bastidores perguntou a Strummer se ele queria ser o vocalista principal de uma banda nova de punk que iria rivalizar com o Sex Pistols. Rhodes deu a Joe 48 horas para se decidir. Em um dia, Joe Strummer entrou para o Clash.

Em 1976, o punk britânico era um argumento para novas possibilidades, e um de seus pilares era esquecer o passado. Joe Strummer estava pronto: “Foi como voltar para a estaca zero. Éramos stalinistas na maneira como tínhamos de dispensar os amigos, apagar tudo que se conhecia antes”. Bernard Rhodes decretou: “Escrevam sobre o que é importante”. Paul Simonon fez mais uma contribuição de preço incalculável: ele deu o nome à banda, depois de reparar em como aquela palavra “clash” (choque) aparecia com frequência no noticiário cotidiano para descrever os crescentes conflitos sociais e políticos na Inglaterra. O Clash fez seu primeiro show no dia 4 de julho de 1976, abrindo para o Sex Pistols.

Aquela foi a temporada mais ousada do punk. A Frente Nacional, organização de direita que se mostrava abertamente racista, estava em ascensão em meados da década de 1970 e tinha lutado com violência contra grupos de esquerda nas ruas de Londres. Muitos punks ainda não tinham refletido sobre as implicações políticas de seu movimento, mas o Clash já sabia de que lado estava. Em agosto de 1976, depois de testemunhar um confronto da polícia de Londres em uma comunidade amplamente negra, Joe Strummer encontrou sua voz. Em “White Riot”, o primeiro single da banda (março de 1977), ele foi direto: “Todo o poder está nas mãos / Das pessoas que são ricas o suficiente para comprá-lo.../ Você vai assumir o poder / Ou vai receber ordens?”

Com “White Riot”, o Clash ganhou terreno como o centro moral do punk. Enquanto o Sex Pistols falava do lado escuro do coração e de todas as coisas, o Clash almejava o bem, apesar de não negar a existência do mal. Johnny Rotten cantava o negativismo raivoso de maneira magnífica, mas aquilo podia ser tomado como uma permissão para comentar situações sem saída. Por outro lado, Joe Strummer descrevia vidas isoladas, presas em prédios de apartamentos populares, minorias e jovens sujeitos a sistemas de poder autoritários, loucos para criar alguma esperança. O destaque crescente do Clash também serviria para desafiar de maneira inesperada sua credibilidade. Em janeiro de 1977, Rhodes fez a banda assinar contrato com a CBS Records por 100 mil libras. A CBS era uma das maiores gravadoras do mundo, e a ideia de contratar renegados como o Clash incomodou muita gente na empresa. Mas a banda foi referendada por Maurice Oberstein, diretor-gerente da divisão do Reino Unido da CBS. Já Mark Perry, que tinha defendido a banda em seu fanzine punk, Sniffin’ Glue, disse: “Eu fiquei imensamente decepcionado, e falei o que pensava. Minha grande frase foi: ‘O punk morreu no dia em que o Clash assinou com a CBS’”.

As críticas incomodaram o Clash, mas também incentivaram a banda a produzir o primeiro álbum monumental do punk. The Clash, lançado em abril de 1977, mostrava a banda raivosa, mas em sintonia com a sensibilidade pop. A cover melancólica de “Police and Thieves”, de Junior Murvin, mostrou uma afinidade pelo reggae, algo fértil para a banda. O trabalho vendeu bem no Reino Unido, atingindo o número 12 na parada de álbuns do país, para o espanto de muita gente na CBS.

Nos Estados Unidos, a Epic Records, pertencente à CBS, recusou o álbum e insistiu para que a banda viesse com algo mais lapidado antes de apresentá-la ao gosto dos norte-americanos. A CBS tinha garantido ao Clash controle criativo sobre sua obra, mas o selo tinha o direito de se recusar a lançar seus álbuns. A banda aceitou a sugestão da empresa para usar um novo produtor, Sandy Pearlman. O baterista Topper Headon tinha substituído Terry Chimes. Durante sessões que se estenderam por boa parte de 1978, Pearlman e o Clash criaram um som menos frenético do que o do primeiro álbum, mas que estava longe de ser limpo. Mick Jones – que já se sentia preso pelo dogma do punk de construções harmônicas e rítmicas rígidas – fez hora extra com Pearlman para construir o urro titânico do novo álbum.

A obra terminada, Give ’Em Enough Rope, foi lançada em novembro de 1978. O trabalho disparou para o número 2 da parada de álbuns no Reino Unido, mas, apesar da insistência da Epic por uma produção mais profissional, ele não entrou nem na lista dos 100 álbuns mais vendidos nos Estados Unidos. A reação norte-americana tinha a ver com o fato de o punk ainda ser considerado por muita gente como algo anormal. Mas também pode ter relação com a imagem da capa, que mostrava um soldado chinês comunista avançando a cavalo na direção de um caubói norte-americano morto. A ilustração não era apenas um cutucão naquilo que o Clash considerava a arrogância dos Estados Unidos. Também proclamava que Strummer e Jones estavam expandindo sua visão para além dos confins da sociedade e da política britânica e agora olhavam para o mundo todo, cheio de medo e de conflitos mortais.

A posição política do Clash não apenas ajudou a garantir seu lugar na história do rock and roll, como também se mostrou premonitória. Alguns meses depois de Give ’Em Enough Rope, Margaret Thatcher, líder do Partido Conservador, chegou ao poder como primeira-ministra da Grã-Bretanha, capitalizando no sentimento nacionalista apresentado pela Frente Nacional. A época de Thatcher veio e se foi e, apesar de ser possível dizer a mesma coisa a respeito do Clash, suas verdades até hoje ecoam. Mais de 30 anos depois, a apreensão da música ainda parece ter lugar na descrição de um momento presente. Quando Give ’Em Enough Rope foi lançado, o punk já não existia mais como o mesmo tipo de experimento de levante. Em janeiro de 1978, o Sex Pistols fez uma turnê pelos Estados Unidos e desmoronou.

Mas o Clash não estava ansioso para aceitar instruções de ninguém, e isso incluía Bernard Rhodes. Mick

Jones estava desconfiado das exigências de Rhodes – principalmente à luz da insistência do empresário para que lhe garantissem “controle completo”. Jones também estava preocupado com a possibilidade de Rhodes substituí-lo pelo guitarrista do Sex Pistols, Steve Jones, e tomou uma atitude cautelar: em outubro de 1978, o Clash mandou embora o empresário que tinha ajudado a formar a banda. Strummer, por sua vez, teve dúvidas a respeito da demissão de Rhodes.

Rhodes conseguiu um mandado judicial para bloquear todos os ganhos do Clash, e a banda recorreu à Epic Records para financiar sua primeira turnê norte-americana. De má vontade, o selo forneceu um orçamento modesto. Apesar de a banda abrir os shows norte-americanos com “I’m So Bored with the U.S.A.”, o Clash ficou fascinado com os mitos e a música do país. O punk poderia alegar que surgiu do nada no Ano Zero, mas o Clash compreendia que isso não tinha acontecido sem precursores essenciais. “Quando se gosta de música norte-americana há tanto tempo quanto eu gosto”, Strummer declarou, “ir até lá é um barato. Viajar pelo país é outro barato. Foi fantástico. Eu obtive quantidades infinitas de inspiração.”

O Clash estava chegando a um momento crucial. Por um lado, Bernard Rhodes não estava mais lá; por outro, a CBS Records ainda não botava muita fé no apelo da banda fora da Inglaterra. O Clash também sabia que não podia segurar a estética estreita do punk sem correr o risco de se tornar uma banda estática ou apenas uma curiosidade datada. Com Give ’Em Enough Rope, a banda tinha cantado a respeito de mortalidade, política, liberdades e destinos à disposição de todos. Agora, depois de fazer turnê pelos Estados Unidos, o Clash estava encontrando maneiras de infundir seus temas e seus sons com música que era ao mesmo tempo histórica, atemporal e progressiva. A banda traria todas essas influências para criar uma coleção de canções inovadoras.

O resultado foi uma das obras mais prodigiosas do rock. Produzido por Guy Stevens, London Calling (1979) abre com a apocalíptica faixa-título e fecha com a dor surpreendente de “Train in Vain”, de Mick Jones, uma faixa com ares pop sem nenhum disfarce. Entre as duas há 17 outras canções que falam de atitude desafiadora, revolução, guerra, apocalipse e morte, mas também sobre a liberdade de exibir prazer, vulnerabilidade, dúvida e coragem no mesmo fôlego. O Clash criou uma obra-prima de acordo com seus próprios termos, havia atingido um ápice de criatividade que ninguém alcançava desde os Beatles. O grupo era chamado na época de “a única banda que importa”.

Até agora, esta pode parecer uma história de idealismo conquistado a duras penas. O quarteto compartilhava os valores políticos que expressava, e a banda nunca renegou essas crenças. Mas o Clash não era uma parceria integral como os Beatles, em que os integrantes tinham crescido juntos com uma história mútua. Tinha havido desconforto entre os membros desde o começo – em parte devido ao estresse inevitável de trabalhar e viajar de maneira tão intensa em um espaço de tempo tão curto. A relação entre Strummer e Jones se tornou belicosa.

Com a ausência de Rhodes, as coisas melhoraram. O Clash tinha London Calling para mostrar – o álbum vendeu bem tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos – e, quando a banda voltou a se reunir para gravar em 1980, tinha ganhado a abertura para fazer música em estilos que estavam fora do esquema sonoro do punk, incorporando elementos de hip-hop, dub e até jazz. No final do projeto, o Clash tinha 36 faixas que abrangiam uma diversidade extrema de estilos. Jones insistiu que aquilo era material suficiente para justificar o lançamento de três LPs de vinil em um único pacote, sob o nome de Sandinista!. O título foi um tributo ao movimento revolucionário nicaraguense que tinha derrubado o brutal ditador Anastasio Somoza em 1979. Na época, o governo do presidente Ronald Reagan trabalhava para tirar o poder dos sandinistas.

A CBS ficou furiosa. Não por causa das simpatias marxistas implícitas do álbum, mas porque a banda quis lançar música demais pelo preço de um álbum só. Mick Jones recusou qualquer sugestão de encurtar o material. Com o passar dos anos, Sandinista! tem sido visto tanto como uma coleção magnífica de riquezas musicais quanto como uma profusão de desordem e indulgência. Em resposta à obstinação do Clash, a CBS se recusou a promover uma turnê da banda e Sandinista! vendeu mal. Strummer começou a desconfiar que a produção cheia de liberdades de Mick Jones tivesse sido uma falha fatal. Strummer renunciaria ao álbum como um erro, apesar de mais tarde ele voltar a defendê-lo.

Strummer usou o fracasso do disco para corrigir tudo que ele considerava errado. No início de 1981, deu um ultimato: se o Clash quisesse que ele permanecesse, a banda teria que recontratar Bernard Rhodes. Mick Jones ficou estupefato. Ele desprezava Rhodes, e achava que a banda tinha florescido sem ele, mas Strummer o deixara sem opção. Jones começou a se afastar: fazia cada vez mais coisas sozinho, gostava cada vez menos de se apresentar ao vivo. Já Topper Headon enfrentava sérias dificuldades. Seus talentos tinham sido essenciais ao crescimento da banda. Mas desde o começo, ele tinha começado a encher a cara e a se comportar de maneira desleixada. E viciou-se em heroína.

Rhodes retornou com ideias grandiosas. Para combater a má vontade da CBS de financiar uma turnê, o empresário colocou a banda para fazer uma série de shows no Bond’s Casino, na Times Square, em Nova York, no final de maio de 1981. Deu tudo errado: os bombeiros forçaram o clube a fechar no último minuto. Os fãs fizeram arruaça e xingaram as bandas de abertura (os grupos de rap Treacherous Three e Grandmaster Flash and the Furious Five) e a performance do Clash foi prejudicada. De volta a Londres, Strummer quis que a banda fizesse um álbum mais acessível, com som mais próximo ao do primeiro trabalho. Jones, no entanto, queria que o Clash voltasse a Nova York para seguir uma direção tecnológica e influenciada pelo funk. A comunicação ficou insustentável. Depois que Mick Jones achou que tinha a versão final do álbum, Strummer rejeitou o material. “Mick, acho que você não tem capacidade para produzir”, ele disse. “Seu canalha”, Jones respondeu. Rhodes trouxe Glyn Johns, que trabalhou com os Beatles na época das sessões de Let It Be, para editar e mixar as gravações. Quando o quinto álbum do Clash foi lançado, em maio de 1982, com o título de Combat Rock, a visão de Strummer era a que tinha prevalecido. O álbum era bastante comercial e finalmente levou o Clash às massas. Os singles “Should I Stay or Should I Go” e “Rock the Casbah” chegaram à parada pop norte-americana, e este se tornou o álbum mais vendido da banda. Com o sucesso, a CBS se mostrou ansiosa para colocar a banda na estrada. No meio disso, Strummer reuniu os integrantes e mandou Topper Headon embora. Os problemas do baterista com as drogas foram piorando ao longo dos anos – ele tinha dívidas enormes com traficantes. Strummer posteriormente admitiria que perder Headon tinha sido um golpe duro. “Acho que não fizemos mais nenhum show bom depois daquilo”, ele declarou a Salewicz. Jones nunca gostou da decisão de Strummer. “Eu não teria mandado ninguém embora”, ele disse.

A banda convenceu Terry Chimes a voltar para a turnê de 1982, que culminou com o Clash abrindo para o Who em diversos shows de estádio no segundo semestre. Como o álbum póstumo Live at Shea Stadium atesta, o Clash – mesmo sem Headon – continuava sendo uma banda fantástica ao vivo. Mas conflitos entre os ideais do grupo e a realidade do sucesso, mais o rancor interno, estavam pesando. Em maio de 1983, a banda (com Pete Howard na bateria) apresentou-se para seu maior público – cerca de 200 mil pessoas – no Us Festival, um evento de quatro dias nos arredores de Los Angeles. Quando a banda saiu do palco, o desastre chegou ao auge em uma troca de socos entre os integrantes do grupo e a equipe de palco do festival. Foi a última vez em que os membros originais do Clash – Mick Jones, Paul Simonon e Joe Strummer – tocaram juntos.

Em agosto de 1983, Strummer convocou uma reunião e disse a Jones: “Acho que está na hora de irmos cada um para um lado”. Mick tinha certeza de que isso era obra de Rhodes. “Eu perguntei à banda quem eles queriam, Bernie ou eu”, Jones disse posteriormente. “O grupo disse que queria Bernie. Não dava para acreditar. Então, peguei minha guitarra e caí fora.” Talvez até Bernard Rhodes estivesse despreparado para o caráter brutal do momento. Ele saiu correndo atrás de Jones e lhe ofereceu um cheque. “Como se fosse um relógio de ouro – o que foi ainda mais insultante”, Jones lembra. “Mas eu aceitei.” O Clash tentou seguir em frente. Rhodes e Strummer recrutaram novos integrantes (Pete Howard ficou na bateria; Vince White e Nick Sheppard entraram para assumir as guitarras e os vocais), mas o line-up não tinha equanimidade. Rhodes humilhava os novos integrantes. Strummer simplesmente não intervinha. Ele parecia intimidado por Rhodes.

O comprometimento de Strummer com o Clash parecia esporádico; ele tinha assuntos mais preocupantes com que lidar, como a morte de seus pais. No derradeiro trabalho do Clash, Cut the Crap, Strummer compartilhou o crédito das canções com Bernard Rhodes. Lançado no final de 1985, o álbum era difícil de se escutar. As músicas não funcionavam e pareciam conter uma falsa bravata, só salvando “This Is England”. Joe Strummer então reuniu os integrantes da banda na casa de Paul Simonon e disse que estava tudo acabado. Rhodes quis continuar com a banda, agora com Simonon como líder, mas isso não deu em nada.

Strummer finalmente se deu conta do que tinha perdido ao demitir Mick Jones. Depois, ele iria culpar Rhodes. Mas, em 2003, depois da morte de Strummer, Simonon confidenciou a Jones que a demissão não tinha sido obra de Rhodes; o incentivo tinha sido do próprio Strummer. No final de 1985, o cantor foi atrás de Mick Jones nas Bahamas, onde seu ex-parceiro estava gravando. Joe pediu desculpa pelo que tinha feito, pelas coisas nada gentis que tinha declarado à imprensa e perguntou a Jones se eles podiam reconstruir o Clash. Mick agradeceu as desculpas, mas não quis saber. Jones mostrou para Strummer as gravações do seu novo grupo, o Big Audio Dynamite. “É a pior merda que eu já ouvi”, Strummer disse a Jones. “Não lance isso, cara.”

Joe Strummer passou anos sem jeito, arrependido pela maneira como tinha destruído o Clash. Ele também se mudou para várias cidades, bebeu muito, tornou-se volátil. Envolveu-se com cinema e em 1989 lançou o fracassado álbum Earthquake Weather. “Eu precisei me desmontar e voltar a juntar os pedaços”, Strummer disse em 1988. “Eu tinha perdido os meus pais, o meu grupo. A gente se transforma em uma pessoa diferente.”

Gradualmente, o músico conseguiu retornar do que chamou de “anos de selvageria”. Ele tinha tido duas filhas e um longo relacionamento com Gaby Salter, e, quando ele terminou, teve início um casamento feliz, em 1995, com Lucinda Henderson. Em 1999, Strummer criou uma banda nova, a Mescaleros – música que buscava novos sons no mundo todo, e essa foi a maneira que encontrou para manter a fé. “Eu acredito que a humanidade tem uma bondade inerente”, ele disse a Lucinda, “e que a boa vontade sempre triunfa.”

Strummer mantinha a esperança de reunir o Clash. Depois da inclusão da banda no Hall da Fama do Rock and Roll, ele tentou em vão que Jones e Simonon se unissem a ele em uma nova turnê. Mas era tarde demais para reuniões. No início da tarde do dia 22 de dezembro de 2002, Strummer tentou mandar uma carta por fax a Simonon, defendendo sua posição. Nesse dia, ele vestiu uma jaqueta, levou o cachorro para passear no ar frio inglês, voltou por volta das 3h da madrugada e desabou no sofá. Quando Lucinda o encontrou, seu corpo já estava ficando frio. Ele morreu de um defeito no coração que tinha carregado a vida toda sem saber.

Se existe uma tragédia na história do Clash, não é o fato de os integrantes da banda terem perdido a fé uns nos outros, nem que Joe Strummer tenha sofrido com o rompimento dessa fé. O Clash sempre correu riscos. Renovaram uma promessa que existia na música. Tinha a ver com libertação, com dar voz e coragem a pessoas a quem se negava a palavra. A banda foi mais longe com essa visão do que qualquer outro artista. Revisitaram seus ideais sem se acomodar. Joe Strummer declarou ao cineasta Don Letts: “Estamos tateando um jeito socialista na direção de algum futuro em que o mundo possa ser um lugar menos miserável do que é”.

Esse tipo de visão parece ser algo de muito tempo atrás, outra história de morte e de glória. Rebeliões da cultura popular ficaram menores; medos populares hoje se agigantam. A tragédia do Clash não tem a ver com o Clash em si – com o fato de seus integrantes terem lutado por algo honroso, mas, no final, terem derrotado uns aos outros. A tragédia do Clash é que hoje não damos mais espaço ao tipo de voz que essa banda tinha.