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O Tio Sam extraviou a nossa batucada

Após 70 anos de seu lançamento, as matrizes de Native Brazilian Music dormem nos arquivos da Sony Music. Mas, enquanto as gravações não retornam ao Brasil, é possível ouvir algumas canções deste tesouro musical na internet

Cristiano Bastos Publicado em 26/11/2012, às 14h12 - Atualizado às 21h13

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Native Brazilian Music - Reprodução
Native Brazilian Music - Reprodução

Em 2012, completam 70 anos de lançamento do álbum Native Brazilian Music, que reúne, em dois volumes (contemplados em oito discos de 78 RPM), 16 faixas contendo 17 canções gravadas por grandes expoentes da música brasileira. Entre eles estavam Pixinguinha, Cartola, Donga, João da Bahiana, Zé Espinguela, Luiz Americano, Zé da Zilda e Jararaca e Ratinho. São, ao todo, 30 músicos ou mais que participaram das gravações. Os registros foram feitos em 1940, a bordo do navio S.S. Uruguay – o qual ficou atracado na Praça Mauá, Rio de Janeiro, durante dois dias. A iniciativa que levou à gravação desses registros foi parte da chamada “Política de Boa Vizinhança”, colocada em prática pelos Estados Unidos no período de aproximação diplomática com países da América Latina, no contexto da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, o panorama político da época era o Estado Novo de Getúlio Vargas.

Native Brazilian Music teve como produtor e idealizador o renomado maestro Leopold Stokowski, e o time de músicos que tocaram no álbum foi arregimentado pelo maestro e compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos. Entusiasta da música brasileira, até então quase desconhecida pelo público norte-americano, Stokowski deu a Villa-Lobos a missão de juntar, no Rio de Janeiro, os melhores músicos populares daquele tempo para o registro das canções. Durante a noite do dia 7 de agosto de 1940, os músicos recrutados subiram a bordo do S.S. Uruguay, que foi equipado com estúdio de gravação da Columbia Records (adquirida em 1988 pela Sony Music Entertainment), gravadora também responsável por lançar o álbum em 1942 – somente nos Estados Unidos, porém. Durante a sessão foram registrados aproximadamente 40 fonogramas. Apenas 17 deles, todavia, foram editados em Native Brazilian Music. Sabe-se também que, desses registros, ainda há oito gravações sobreviventes que nunca foram lançadas. Permanecem, portanto, guardadas.

No Brasil, a primeira edição dos discos teve pouca (ou nenhuma) repercussão, pois eles nunca foram lançados nacionalmente. Mas as gravações no S.S. Uruguay, pelo contrário, receberam ampla cobertura jornalística na imprensa brasileira e ganharam destaque em jornais como O Globo, por exemplo, que, na edição de 8 de agosto de 1940, anunciou em manchete de capa: “Durante oito horas consecutivas, o famoso regente gravou perto de 40 músicas populares do Brasil”. O lançamento nos Estados Unidos, por sua vez, ganhou resenha publicada na revista Time.

Passados 70 anos, Native Brazilian Music continua sem lançamento oficial no Brasil e, em razão disso, a maioria dos músicos que tocou no álbum morreu sem nunca ter ouvido as gravações das quais participaram. Além disso, nenhum deles foi pago decentemente por elas. Cartola, por exemplo, recebeu 1.500 réis – naqueles dias o suficiente apenas para comprar, como definiu o compositor, “três maços de cigarro baratos”. O dinheiro foi pago um ano e meio depois das gravações. Cartola ouviu “Quem Me Vê Sorrir” – tida como a sua primeira gravação cantando – somente 20 anos após as sessões no Uruguay.

Native Brazilian Music possui inegável importância – histórica e cultural – para o Brasil. Mais do que patrimônio, é, sobretudo, um documento ímpar sobre o cancioneiro brasileiro e que os brasileiros, por sua vez, conhecem infimamente. Ou, melhor dizendo, nada conhecem. Em 2006, entretanto, as gravações feitas no navio Uruguay foram colocadas no Registro Nacional de Gravações da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Stokowski Caçado

No começo dos anos 2000, a pesquisadora norte-americana Daniella Thompson contou a história sobre a gravação de Native Brazilian Music em uma série de artigos denominados “Stokowski Caçado”, que você pode ler aqui. Os textos são, provavelmente, a mais fidedigna fonte de estudo e informações a respeito dessa “saga fonográfica”. Daniella iniciou uma busca desenfreada pelos 40 fonogramas originais, os quais, em tese, deveriam estar guardados nos arquivos da Columbia, hoje pertencente à major Sony Music. A pesquisadora chegou a contatar a Sony em busca de pistas ou informações, sem, contudo, obter nenhuma resposta: “A gravadora nunca respondeu a meus pedidos de procura”, diz Daniella, acrescentando: “Em 2003, fiquei sabendo que 24 matrizes da sessão no S.S. Uruguay ainda estão guardadas nos cofres da Columbia/Sony”.

A expectativa é que as gravações originais sejam reintegradas ao patrimônio cultural do país e a guarda dos fonogramas fique sob tutela do Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Também existe a possibilidade de finalmente lançá-los em terras brasileiras, mediante um esforço diplomático que vem sendo feito por meio da Embaixada do Brasil em Washington, nos Estados Unidos. Mas enquanto as matrizes de Native Brazilian Music não retornam ao Brasil é possível, pelo menos, ouvir algumas canções do disco na internet:

“Passarinho Bateu Asas” (Donga)

Intérprete: José Gonçalves (Zé da Zilda)

A gravação original deste samba de Donga é de Francisco Alves e foi realizada na gravadora Odeon, em 1928. No navio Uruguay, coube a Zé da Zilda registrar a famosa composição. Destaca-se no acompanhamento a flauta de Pixinguinha.

“Bambo do Bambu (Donga)”

Intérprete: Jararaca e Ratinho

Jararaca e Ratinho cantam essa embolada assinada por Donga. Nesse autêntico e divertido trava-língua, Ratinho, literalmente se embola e tem a língua travada antes da hora... O incrível violão que encerra a gravação é de Laurindo de Almeida.

“Macumba de Oxóssi (Donga/José Espinguela)”

Intérprete: Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá

Está é assinada por Donga e Espinguela e foi grafada erradamente em Native Brazilian Music. A macumba “with vocal ensemble”, como explica a etiqueta do disco, foi gravada, segundo o encarte errado, pelo “Grupo de Rae Alufá”. A voz solista é do pai de santo Espinguela.

“Quem Me Vê Sorrir (Cartola/Carlos Cachaça)”

Intérprete: Cartola e coro da Mangueira

É “ápice musical” de Native. Nessa canção, Cartola é acompanhado pelo “Mangueira Chorus” (como está descrito no disco) e canta seu samba “Quem Me Vê Sorrir”. A letra é de Carlos Cachaça que, aliás, também deveria ter ido ao navio Uruguay, mas justamente na noite da gravação teve plantão na Central do Brasil, onde trabalhava. Seu nome não consta no selo do disco. Participaram também da gravação vários ritmistas e o violonista e compositor Aloisio Dias, da verde-e-rosa. Este seria, possivelmente, o mais antigo registro gravado da voz de Cartola.

“Seu Mané Luiz” (Donga)

Intérprete: José Gonçalves (Zé da Zilda) e Janir Martins

Zé da Zilda é o interprete vocal dessa composição de Donga. Janir Martins dialoga com Zilda neste “samba with vocal duet”.

Saiba mais sobre o disco Native Brazilian Music na reportagem publicada na edição 74 da Rolling Stone Brasil.

De Batutas e Batucadas

Os bastidores da criação quase involuntária de um tesouro artístico até hoje pouco conhecido e os seus surpreendentes desdobramentos em um cenário conflagrado pela guerra: esse é o ponto de partida do documentário De Batutas e Batucadas, que tem direção de João Carlos Silva Neves da Fontoura e produção de Maria Cristina Monteiro, realizado pela TV Senado, em 2009. O filme ajuda a traçar um perfil diferenciado de Heitor Villa-Lobos, maior compositor erudito brasileiro de todos os tempos e um dos maiores expoentes da cultura mundial.

Muito bem produzido, o documentário também resgata um episódio desconhecido pela maioria dos brasileiros, mas bastante ilustrativo sobre a personalidade artística de Villa-Lobos no processo de construção de um gênero musical que viria a ser tornar um símbolo da identidade nacional: o samba. E traz uma série de imagens e depoimentos históricos de estudiosos da música brasileira, como Sergio Cabral e Ricardo Cravo Albim, e de músicos, a exemplo do violonista Turíbio Santos, que inclusive dedilha algumas peças da obra de Villa-Lobos no filme.

De Batutas e Batucadas mostra ainda que em meio a críticas e polêmicas, Villa-Lobos conquistou essa condição de símbolo nacional ao contribuir decisivamente na derrubada do muro de preconceito que separava a cultura popular da cultura erudita. “A riqueza estética e a multiplicidade dos gêneros musicais que povoaram o ambiente artístico de sua época estão impregnadas na obra e na trajetória do compositor. Através da síntese virtuosa de sua criação e do vigor de sua personalidade artística, Villa-Lobos teve um papel decisivo na elevação de nossa cultura como um elo fundamental na invenção e na afirmação de uma nacionalidade brasileira”, pontua o texto de apresentação do filme. Vale conferir o site do filme, que apresenta ficha técnica, galeria de entevistados, personagens, foto e making of.

Assista à primeira parte de Batutas e Batucadas: