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Os Últimos Sobreviventes

Eles constituem a principal minoria em risco de extinção na África Negra. Belgas e norte-americanos já os exibiram em zoológicos, e os vizinhos bantos os dizimaram, comeram e escravizavam. Qual será o destino dos pigmeus?

Edgardo Martolio Publicado em 13/12/2012, às 16h02 - Atualizado às 16h04

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<b>RISCO CONSTANTE</b> Explorada como curiosidade por europeus e norte-americanos, a cultura dos povos pigmeus está cada vez mais frágil - Edgardo Martolio
<b>RISCO CONSTANTE</b> Explorada como curiosidade por europeus e norte-americanos, a cultura dos povos pigmeus está cada vez mais frágil - Edgardo Martolio

No coração da África, em Uganda, há uma vila chamada Ntandi. Ela fica no vale Semlike, em uma densa floresta, matizada nas ladeiras das fascinantes montanhas Rwenzori por ordenadas plantações de chá, onde emerge o monte Stanley, o mais alto do continente. Estou próximo da linha do Equador e sinto o calor intenso e grudento. Cada vez que desço da Land Cruiser, a umidade me banha como se estivesse perto de uma cascata. Percorri muitos quilômetros para conhecer o povo arcaicamente – e preconceituosamente – chamado de pigmeu. Nunca os vi antes, a não ser em filmes ou fotos.

Tradicionalmente, os integrantes de um povo precisam medir entre 1,35 e 1,55m para ser considerados “pigmeus” – esse traço que une diversas etnias ao redor do mundo seria, especula-se, uma adaptação genética que permitiu a esses indivíduos, que vivem de caça e coleta, uma sobrevivência mais eficiente nas selvas tropicais. Já levo mais de um ano andando por estas selvas, e ainda não estive com eles. Na África Central, os mais ocidentalizados pelo turismo são os de Camarões. Mas os que procuro ainda podem me surpreender. Depois de abastecer o veículo em Fort Portal, vindo de Kampala, a capital ugandesa, consegui comida suficiente para vários dias. A estrada é péssima e, devido às chuvas de janeiro, está consideravelmente pior. A tração nas quatro rodas funciona direto.

Uganda não tem um território muito extenso: 241.048 km2, apenas um pouco maior do que Rondônia, mas está cheia de atrativos naturais, como a nascente do rio Nilo. A área onde os pigmeus de lá vivem não é muito habitada. A etnia Twa (também conhecida como Batwa ou Abatwa), segundo o censo local de 2002, tem pouco menos de 7 mil indivíduos dentro da população de mais de 30 milhões do país. As guerras do antigo Zaire, hoje novamente República Democrática do Congo, trouxeram alguns deles para o lado leste da fronteira nos últimos 20 anos; os que já tinham sido expulsos de outra reserva, quando ainda eram nômades. Acredita-se que na África Central há cerca de 500 mil pigmeus, segundo a organização Survival for Tribal Peoples.

A principal migração nestas montanhas veio de Ruanda e Burundi, onde os Hutus e Tutsis não apenas se mataram entre si no início dos anos 90, mas também aniquilaram parte da minoria Twa, cerca de 30% deles, também habitante do local. De fato, o manifesto Bahutu de 1957 não deixa muitas dúvidas: “A nação Hutu é o povo superior da África e por isso tem o direito de governá-la”. Na época, o pouco comentado extermínio dos Twa ratificou tamanha loucura. Os que fugiram para as cidades morreram vítimas do álcool ou, sem qualificações profissionais, acabaram na mendicância.

Não tenho obrigações nem datas para voltar. Ninguém me aguarda em lugar algum. E não sei se os Twa vão me permitir passar um dia ou uma semana com eles. Eles não sabem que estou chegando nem quais são as minhas intenções. Mas estou tranquilo: historicamente é um dos povos mais pacíficos do planeta. Logo, pareço estar perto. Se meu mapa não me engana, estou a uns 500 metros. Aliás, vejo fumaça. Estaciono entre bananeiras e prefiro chegar caminhando. Menos barulho, mais discrição, menos comoção, mais normalidade. É bom estabelecer, desde o início, uma relação de igual para igual. É a melhor maneira de evitar que peçam um presente atrás do outro. Com quase todos os aborígenes é assim. Com os pigmeus seguramente não será diferente. Penso na norte-americana Delia J. Akeley, autora de J.T. Jr.: The Biography of an African Monkey (1929), que viveu meses entre eles, e me excito: em algum momento de sua viagem, acompanhada pelo marido e pelo presidente americano Theodore Roosevelt, caçou e embalsamou animais para o Museu de História Natural, de Nova York. Também penso na compatriota dela, a cineasta Osa Johnson, que realizou os documentários Congorilla (1932) e Simba (1928), e esteve com os Akeley em um período, filmando. Osa, com dois hidroaviões que a ajudavam a registrar imagens aéreas, permaneceu quatro anos na região visitada por figuras como o inventor do filme fotográfico, George Eastman, e imortalizou sua saga no livro Four Years in Paradise (“quatro anos no paraíso”, de 1941). Isto é um paraíso, sim.

O pouco sol da tarde está caindo. A vegetação frondosa ajuda para que a meia-luz se imponha. A umidade continua a governar o ambiente. Caminho devagar, mas mostrando-me seguro. Alguém vem pela senda à minha procura. Já perceberam que estou indo na direção da mínima e desorganizada aldeia de palha. É um homem bem pequeno. Meu 1,72 m nunca foi tão alto. Sinto-me Leandro Vissotto, astro do vôlei brasileiro, que mede 2,11m. O nome do nativo é Yofre, e ele não parece particularmente feliz, mas também não me olha com desconfiança. Eu sorrio. Com seu braço direito, o diminuto homem faz a universal senha para segui-lo e lá vou eu. Ele é chefe e, pelo que entendo, é o único que sabe algumas palavras em inglês. Suas línguas são rundi, kiga e, no caso aqui, kinyarwanda, que eu, claro, não conheço nem para falar “bom dia”. Mas a recepção é boa. Uns 30 deles estão à minha volta. Alguns são ainda meninos, mas não posso precisar a idade deles, porque tenho a sensação de que os de 8 anos e os de 14 têm a mesma estatura. Não são particularmente alegres. Olham-me com persistência e dão voltas ao meu redor. Voltas e voltas. Tenho a impressão de que estou em um singular carrossel onde, ao contrário do modo clássico, tudo aquilo que está à minha volta gira, menos eu.

A primeira coisa que faço é tirar fotos. A maioria não posa, vai para as choças de bambu e folhas de banana ou caminha para o mato. O chefe solicita outra senha internacional: a do dinheiro. Quer seus shillings (a moeda local). Entendo-o claramente, mas não desejo começar tão cedo a mercantilizar a minha estadia. Como a noite vai chegando – e com ela o frio –, faço indicações de que vou embora, mas que vou voltar. Retorno ao carro sozinho, tranquilo. Afasto-me um quilômetro, por ser a primeira noite com eles, e durmo na minha Maggiolina – um estupendo e simples invento italiano que, em menos de três minutos, permite montar meu dormitório no teto da 4x4, para dormir afastado de insetos, cobras e lagartos, e sem me preocupar com a chuva. Acendo um fogo que queimará durante a noite.

O primeiro sol do dia, como sempre nesses casos de vida silvestre, me acorda. Tomo meu improvisado café da manhã, pois não quero reaparecer tão cedo: desconheço os costumes locais. Reviso meu miniacampamento. Perto das 9h, volto a Ntandi. O silêncio é grande. Não há homens. Só vejo mulheres. E poucas. Uma delas se faz interpretar: devo esperar que os homens voltem da jornada de caça para fazer fotos, para ficar. Imagino que ao meio-dia terão regressado. Não voltam. Vou para a caminhonete e almoço. Na aldeia não fui convidado. Retorno com latinhas de cerveja. As mulheres não as aceitam. Encosto-me e durmo uma falsa sesta (com um olho sempre aberto).

Às 17h, os homens, dispersos, começam a voltar. Chegam com a caça, mas é pouca: um porco selvagem, diminuto como eles. Igualmente, não imagino ser muito grande o estômago a encher desses curiosos seres. Mas ofereço as cervejas. Yofre as aceita sem piscar e as leva para o interior de sua choça. Nem as abre nem convida mais ninguém. Pelo que parece, são todas para ele. Convida-me a sentar a seu lado. Sento-me, obviamente, e procuro conversar. O entendimento está difícil. Espero que a experiência geral seja mais rica do que esse diálogo.

Caçam com zarabatanas (dardos soprados de uma espécie de canudo), arco e flecha e lanças. Na realidade, as armas parecem brinquedos. E segundo as minhas impressões, a caça é reservada aos homens adultos, precedida de um ritual que inclui abstenção sexual e cerimônias de purificação que não imagino estarem em desuso atualmente. Já a pesca é coisa das crianças, de preferência com uma rede. Mas também penso que a caça era (e é, junto com a música) o único ato com o qual os Twa levantam a autoestima, pois o preconceito acima deles é tão lendário que tribos canibais os comiam – não como humanos, e sim como animais –, e outras, como os bantos, os escravizavam, abusando de sua pouca força física. De fato, na guerra do Congo, o grupo chamado “les effaceurs” (“os exterminadores”) os devorou literalmente, segundo relatou Sinafasi Makelo, representante da etnia mbuti, na ONU, em 2003.

Percebe-se a debilidade física não só na estatura, também na constituição geral desses nativos. Mal se alimentam, porque nunca aprenderam a cultivar a terra. Assim, comem larvas de troncos ocos da floresta vizinha. Não possuem documentos e, portanto, não têm sequer direito aos (péssimos) benefícios da saúde pública da região. O artesanato simplório é o modo mais civilizado de eles ganharem a vida, mas são maus negociadores – nem sequer conseguem que seus produtos sejam valorizados o suficiente para um dia sair da miséria. A palha é a matéria-prima para cestas e vasos nos quais trabalham com ferramentas rudimentares, feitas com ossos, dentes, madeiras, fibras, sementes sólidas e chifres. As mulheres são as mais sacrificadas, as que mais trabalham, inclusive recolhendo as larvas, o mel, as frutas silvestres, os cogumelos, os insetos e as ervas que os alimentam. Mas são respeitadas dentro das comunidades como em poucas culturas, a ponto de que a monogamia é uma das mais consistentes que se conhecem no mundo: não existe infidelidade entre eles.

Não obstante, as mulheres solteiras são trocadas nos casamentos intertribais que os caracterizam. A troca de irmãs é o mais comum desses arranjos. Por serem grupos tão pequenos – raramente chegam a uma centena – procuram não se casar entre eles. Os casamentos são cerimônias simples porque também não são religiosas: apenas acreditam que as almas boas se convertem em estrelas (levadas por uma mosca ao céu) e as ruins sobrevivem sem destino na própria selva que os rodeia. Para alguns, Jengi ou Mugasa é o Deus da Selva; para outros, é chamado de Tore. Especialmente entre os Twa, alguns são animistas e os que se urbanizaram foram convertidos, em sua maior parte, ao anglicanismo (50%, segundo o censo mais recente). Camuflados nas eternas sombras tropicais, têm uma pigmentação rara, que não os torna nem negros nem brancos, sua pele poderia se definir como “amarronzada”. Carentes de educação, fora os rituais tradicionais de sua cultura de aldeia primitiva, caem facilmente nos vícios. O álcool é um deles, e os cigarros de palha, outro. Destilam o milho e frutas disponíveis; dali eles extraem o álcool para se embriagar; palha é o que sobra a seu redor. Não distingui exatamente o “tabaco” que fumam, mas acredito que seja o arbusto iboga (mítica droga vegetal que se utiliza para diminuir a sede e a fome e possui efeitos estimulantes e alucinógenos).

Historicamente, a discriminação contra os “pigmeus” foi tamanha, que a civilizadíssima Bélgica, quando os encontrou na sua colônia africana, então chamada Congo Belga, os enviou a Bruxelas para serem exibidos em zoológicos do país. Os norte-americanos, logo depois, fizeram barbaridade semelhante. Eu queria conhecê-los em seu habitat, não só porque são considerados os primeiros habitantes do centro da África, mas porque constituem uma das principais minorias em risco de extinção, de modo especial os Batwa; hoje estima-se que não somam mais do que 0,03% da população de Uganda.

O chefe pede-me dinheiro e aponta para a câmera fotográfica. Quero dizer que já dei a ele as latinhas de cervejas, que não abuse. Não é idiota: sabe que não fui até ali para voltar com a mesma quantidade de filmes virgens com os quais cheguei. Tem certeza – como depois acontecerá – de que vai me arrancar alguns shillings e mais alguma outra coisa para comer ou vestir. Ando, sem fotografar, pela aldeia, que é minúscula: deve ser uma dúzia e meia de choças à vista e há outras poucas semiescondidas na floresta. A paisagem é linda, mas repetida. As cabanas, geralmente construídas pelas mulheres, não superam 1,60 m, são ovais e o diâmetro não supera os 3 m.

Agora pago e clico. Fumam, fazem de conta que caçam, preparam comida de cheiro forte, oferecem artesanato. É o que há. É o que têm. A vida deles, hoje, é uma agonia que seus olhares não conseguem dissimular. Yofre, com muita dificuldade, me ensina que “umugore” quer dizer mulher; montanha se diz “umusozi”; e leão é “intare”. O improvisado professor me pede dinheiro extra pela aula porque eles não têm “ubutunzi” (posses) e eu sou “ubukire” (rico). Mais uma vez sinto que os seres humanos foram feitos para contatos efêmeros. Toda prolongação não natural é destrutiva. Portanto, chegou a hora de ir embora. Não quero dar mais nada a Yofre, mesmo que ele me cause certa simpatia. Já fui o gigante de 1,72 m que nunca antes tinha sido. Já olhei os outros de cima como se fosse um pilar de basquete. É uma experiência e tanto. Pronto, voltará a chover e eu quero ir à montanha dos gorilas, que está bem perto. Minha breve jornada com os “pigmeus” agora se resume a uma centena de fotos e uma lembrança distinta de qualquer outra: talvez eu tenha visto a última geração Twa.