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Especial Mulher: Timidez Felina

Eternamente preocupada com a influência nociva da fama, Pitty já consegue aproveitar as vantagens de ser célebre

Tiago Agostini Publicado em 09/03/2012, às 11h03 - Atualizado em 10/04/2013, às 16h33

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<b>EFÊMERA </b> “No final das contas, tudo é temporário”, diz Pitty. “Mesmo que seja uma vida” - DANIEL ARATANGY
<b>EFÊMERA </b> “No final das contas, tudo é temporário”, diz Pitty. “Mesmo que seja uma vida” - DANIEL ARATANGY

"Não quero ficar com cara de modelete", diz Pitty, ao solicitar alguns pequenos desenhos em lápis preto ao redor dos olhos. “Não se preocupe, você é bonita”, responde o maquiador. “Obrigada”, ela agradece, fechando os olhos mais tranquila. Momentos depois, em uma tarde de sexta-feira pouco ensolarada em São Paulo, Pitty está sentada de frente para a ampla janela da sala de um apartamento no alto de um prédio no bairro de Perdizes, enquanto aguarda para ser fotografada. A assessora lhe traz pão de queijo e café, que compõem o que provavelmente é a primeira refeição dela naquele dia. Enquanto dança discretamente ao som do Gotan Project, Priscilla Novaes Leone nem se parece com a furiosa cantora de letras confessionais que conquistou a admiração fanática de milhares de adolescentes deslocados – eles, segundo a própria Pitty, seriam o espelho dela própria no que chama de seus “anos definidores”, quando morou com a mãe, Dina, e o irmão, Leonardo, em Porto Seguro, Bahia, entre os 10 e 14 anos. Assim sendo, Pitty sempre toma cuidado especial ao abandonar – nem que apenas por alguns minutos – a persona rebelde que encarnou desde o começo da carreira.

Assista ao making of da sessão de fotos com Pitty.

Ainda durante a sessão de maquiagem, Pitty confessa que despertou há poucos anos para a vaidade, mesmo que não saiba precisar exatamente quando. “Sou péssima com datas”, justifica. “Rolou naturalmente. Algumas pessoas podem dizer que foi a maturidade, mas eu não sei. Um belo dia comecei a achar interessante e não reprimi.” Este é um dos poucos lados assumidamente “menininha” da cantora. Durante as fotos, no entanto, desarmada de defesas em relação ao contato com estranhos (ou então assumindo um papel por alguns poucos minutos), Pitty deixa seu lado feminino aflorar aos poucos. Vestindo uma lingerie roxa, ela exibe uma sensualidade contida, mas nítida. Está longe do estilo mulherão – tem 1,61 m de altura e não costuma usar roupas que realcem suas formas – mas confortavelmente se deixa deitar no sofá para, sem grandes movimentos, seduzir a câmera apenas com o olhar. Tal qual um gato que pede carinho de mansinho, ela parece levar a situação com sutileza ímpar.

Uma sessão de fotos é, na verdade, outra forma de teatro, um jogo entre câmera e seu objeto – algo que Pitty, 34 anos, está acostumada a fazer na vida profissional. Pouco mais de um mês depois, nos reencontramos na sala do apartamento dela, na região da boêmia rua Augusta, em São Paulo. Com o rosto limpo, calça de ginástica preta, blusa preta com detalhes verdes e azuis, ela parece mais relaxada. Confessa que se sente melhor em ambientes masculinos. “Me identifico com a praticidade, um certo pragmatismo”, explica. “Acho a relação com homem muito honesta, sempre tive amigos homens de olhar no olho e dizer tudo que eu sinto sem me sentir julgada. Quando estou com meus amigos, sou um mano: arroto, bato no ombro, chamo de gostosa.” Não que ela não tenha grandes amigas mulheres ou não frequente ambientes femininos. “Os estereótipos femininos, as conversas, me fazem olhar meio de fora”, analisa. “Eu não me vejo participando daquilo. Participo porque sou garota, tenho que estar ali, mas acho caricato.”

Nem sempre foi assim, porém. “eu era bem molequinha na adolescência”, Pitty relembra, soltando uma leve gargalhada. Os anos em Porto Seguro vêm à tona de novo e ela os retrata com um cuidado. “Foi a descoberta da própria identidade”, conta. Como todo adolescente, Priscilla teve de lidar com a aceitação em um grupo, em especial na escola. “Nessa fase você ainda não sabe lidar com as diferenças, e adolescentes podem ser muito cruéis”, ela relembra a origem humilde. “Tinha aquela coisa de usar roupa de marca, e era a fase em que eu estava aprendendo que não posso contar com aparência, posses. Meu trunfo tinha que ser outro.” Ela escolheu o diálogo como maneira de se destacar na multidão. “Se você não é a gatona, tem de dar um jeito de sobreviver naquela minissociedade”, diz. Não é de se espantar que Pitty tenha começado a dar vazão à vaidade apenas depois de famosa, com os holofotes invariavelmente focando nela.

Apoiando as costas no sofá, Pitty está sentada no chão da sala, enquanto dois de seus três gatos – Chaplin, Billie e Nega – circulam próximos a nós, como que reconhecendo o ser estranho ao ambiente. Ao fundo, a jukebox que só aceita CDs, ao lado de uma mesa de sinuca, toca The Freewheelin’ Bob Dylan. “Gosto de ouvir os clássicos nela. As músicas novas ouço no iPod”, diz. Mais tarde, porém, “Ready to Start” (do Arcade Fire) sai dos falantes.

O apartamento de dois pisos é o último do prédio, localizado em uma rua pacata – uma grande diferença em relação ao movimento ininterrupto da badalada e eclética Augusta. Morando na capital paulista desde o lançamento do primeiro álbum, Admirável Chip Novo, de 2003, Pitty sofreu de amor à primeira vista com a cidade. “Quando cheguei, pensei na hora: aqui é o meu lugar.” Antes da residência atual, que divide com o marido, Daniel Weksler, baterista do NX Zero, ela morava em um flat próximo dali. Ainda hoje, não é raro encontrá-la em algum dos bares e clubes da rua famosa.


Mas a fama também acabou conduzindo Pitty a ambientes completamente distintos de sua zona de conforto. Graças ao sucesso do recente projeto folk-suave Agridoce, ao lado do guitarrista Martin, ela recebeu um convite para passar um final de semana ao lado de celebridades diversas na Ilha de Caras. “Foi surreal”, relembra, com um leve sorriso, admitindo ter demorado a aceitar a proposta. “Fico tentando me adaptar às circunstâncias. A gente é mais roots, mais da rua, mas foi uma experiência legal. Mas pensei: no mínimo vai ser um fim de semana de mordomia, curtição... Tomar umas biritas legais e pagar de bacana.”

Enfrentar as consequências de ser uma celebridade é um dos problemas da profissão de Pitty – talvez por isso a convivência em ambientes pomposos lhe traga incômodo. Quando criança, sonhava em ser secretária ou trabalhar no circo. Teve vários empregos, inclusive ajudando na lanchonete que o pai, Luiz, montou em Porto Seguro. Chegou a prestar vestibular para jornalismo (“Gostava muito de escrever”, ela confessa a justificativa padrão dos aspirantes à profissão), mas acabou fazendo faculdade de música e alimentando o sonho de viver de arte desde sua primeira banda, que montou quando tinha por volta de 15 anos. “Meu sonho era que as pessoas se identificassem com a minha música. O famoso é consequência”, ela filosofa, me encarando.

Mesmo longe da rotina diária de um escritório (que ela garante que jamais conseguiria suportar), Pitty faz questão de reforçar que o glamour da rotina de uma estrela do rock não é tão grande quanto crê o senso comum. “Lidar com a falta de privacidade é a pior parte do trabalho – as pessoas acharem que você é um bem público porque você tem uma carreira”, diz. “Eu não gosto de ser famosa, mas tenho que divulgar minha música, se não você faz e a coloca na gaveta. É um dilema de todos os dias, mas vou ter que resolver de alguma forma.” Os três meses de negociação e desencontros de agenda para a realização da entrevista exemplificam o receio que a cantora tem em relação à exposição. Mesmo quando o tom da conversa é ameno, ela mede as palavras e reflete muito antes de soltar uma resposta. “Eu gosto de observar. Não sou exibicionista, sou voyeur”, aponta. Seu comportamento padrão em um novo ambiente é o de chegar, encostar-se em um canto, tomar uma “birita” e analisar as relações. Se nos palcos tem presença forte e uma performance intensa, Pitty prefere ser invisível fora deles. “Eu acho todo mundo tão personagem... Só que, claro, quando você é famoso a roda gira e você vira o personagem que as pessoas observam. Fico tímida.” De fato, todas as vezes que a conversa foge do âmbito profissional, ela para de me encarar, buscando com o olhar refúgios pelas paredes da sala.

O projeto Agridoce traz muito fácil o velho cliché do amadurecimento do artista. Criado como uma brincadeira de composição entre Pitty e Martin, integrante fixo da banda dela, o duo tomou corpo conforme as canções nasciam, até a dupla resolver se isolar na Serra da Cantareira (SP) para registrar a experiência. No meio do mato, o disco foi gerado madrugadas adentro, sob as badaladas dos sinos do convento vizinho. Em um clima acústico e intimista, Pitty assumiu o piano. Bem distante do que os fãs estavam acostumados a ouvir, as músicas do Agridoce revelam, de certa forma, um lado mais privado da cantora. Ela costuma declarar que está se acostumando a tocar o piano em público. Faz sentido. Em um instrumento de sonoridade mais sutil, é mais difícil aflorar o lado rebelde e autossuficiente que ela se acostumou a incorporar desde o início da carreira. Se Pitty escreve músicas como uma forma de terapia, dá para afirmar que o Agridoce é o divã ideal para compreender essa atual fase da vida.

Pitty escreveu as primeiras letras ainda na adolescência, fruto do desenvolvimento natural de um diário abarrotado de lembranças que toda menina mantém. “Eu quis ter uma banda para escoar essas coisas que escrevia”, ela comenta. Filha de pais separados, com o pai morando entre Salvador e Porto Seguro, Pitty aprendeu desde cedo a se virar sozinha. “A relação com minha mãe nessa época foi um desastre, obviamente. Por conta de causas naturais, de tudo”, ela relembra, sem se aprofundar. “Eu era dona do meu nariz, saía de casa a hora que eu queria e voltava quando queria.” Hoje, a cantora consegue enxergar os efeitos dessa atitude na família. “Acho que era o que mais machucava minha mãe. Mas eu já não tinha abertura, possibilidade de diálogo, então me fechava mais ainda. Mas a gente faz o que tem que fazer com a bagagem que tem na época. Não dá para dizer hoje que eu faria diferente.” Se com a mãe as coisas já eram difíceis, com o pai tudo piorava – foram quase dez anos sem contatos. “Ele saiu de casa e isso já era uma distância. Eu fui crescendo e não sentia a presença dele, não me importava.” Demorou até que ela conseguisse resolver os conflitos consigo mesma e deixar possíveis mágoas para trás. “Foi como falar com um fantasma do passado”, ela recorda o primeiro telefonema com o pai após o rompimento. “Eu não quero guardar nada de ruim.”


Depois de trazer a mãe de Salvador para São Paulo, hoje Pitty tem a própria família. Casada há três anos com Weksler, a cantora se diz feliz com a vida conjugal – mas vive à base de algumas regras. Se um relacionamento entre dois músicos pode parecer mais fácil, ela tenta estabelecer limites e deixar o ciúme de lado. Viagens profissionais, por exemplo, só são compartilhadas em ocasiões especiais. “Me dá um pouco de aflição, porque já temos uma relação de casamento, não dá pra estender”, explica. “Eu tenho medo de me sentir sufocada.” Mesmo com planos para um futuro a dois, ela não consegue se esquecer de uma das grandes lições aprendidas na adolescência: “Em qualquer relação que tenha – de trabalho, amor ou amizade – eu ainda tenho a sensação de que todo mundo é só.” Por mais que a afirmação soe trágica, Pitty explica com uma lógica particular. “Não existe posse, contrato. Eu estou sempre me preparando para que um dia seja só eu de novo. É uma coisa meio de defesa”, diz, com o semblante sério ainda perdido em algum canto da sala. “No final das contas, tudo é temporário, mesmo que seja uma vida.”

Apesar de todo pragmatismo, Pitty mantém o sonho de ser mãe. “É natural, né? Você casa e todo mundo pergunta: ‘Quando vêm os filhos?’ Vai rolar, tudo tem seu tempo.” Em maio de 2008, ela estava grávida e sofreu um aborto natural. Se os herdeiros ainda não chegaram, o casal compensa a casa com os três gatos. “O jeito deles combina com o meu, são relax, não são grudentos ou carentes. Já tentei ter cachorro, mas precisa dar muita atenção. Eu viajo muito, com gato coloco comida e água e não precisa de mais nada”, diz, os observando à distância. “Queria fazer o que eles fazem: pular nas coisas, me equilibrar.” Comento que é curioso que Nega, a mais arisca dos três, tenha vindo se encostar justo em meu colo durante a entrevista, já que nunca fui fã de gatos.

“Parece que eles sentem que a pessoa não gosta e fazem agrado justamente para conquistar”, Pitty diz. “Se eu fosse um gato, seria assim.”