Rolling Stone Brasil
Busca
Facebook Rolling Stone BrasilTwitter Rolling Stone BrasilInstagram Rolling Stone BrasilSpotify Rolling Stone BrasilYoutube Rolling Stone BrasilTiktok Rolling Stone Brasil

Júlio Bressane reiventa Machado de Assis em A Erva do Rato

Voyeurismo e morbidez pautam o relacionamento do casal interpretado por Selton Mello e Alessandra Negrini no filme que estreia nesta sexta, 26

Por Anna Virginia Balloussier Publicado em 26/06/2009, às 19h13

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail

A erva deste roedor é, sobretudo, daninha. A planta que nasce quando e onde bem entender, para horror das donas-de-casa prendadas, é uma forma de entender as obsessões sexuais, um dos focos de A Erva do Rato, que entra em cartaz nesta sexta, 26, em São Paulo. No filme, Júlio Bressane dirige Selton Mello e Alessandra Negrini, os únicos atores em cena ao longo dos 80 minutos da produção, que brotou a partir de dois contos de Machado de Assis.

E brotou, diga-se, com a mesma imprevisibilidade da erva livre para crescer além dos muros de um roteiro original. De Um Esqueleto (1875) e A Causa Secreta (1885), Bressane só fica com o que lhe interessa. No primeiro, alegadamente baseado em fatos reais, há o marido que conserva em casa o esqueleto da primeira esposa, por ele assassinada - ele poderia pedir-lhe para passar o sal como se nada tivesse acontecido. O segundo conto fala sobre o sadismo do homem regozijado com a tortura de um rato.

Desse novelo o cineasta irá tecer uma terceira narrativa - se é que podemos enquadrar qualquer filme de Bressane como "narrativa". Trata-se, afinal, do diretor comumente encaçapado no buraco do "cinema marginal", movimento experimental para o qual mesmo o Cinema Novo relaxou e gozou diante da pressão comercial. Sobre Erva do Rato, Bressane sempre fez questão de deixar claro que não quis realizar uma adaptação machadiana - ao contrário de 1985, quando lançou a obra-prima Brás Cubas.

Apesar do bizarro relacionamento que estabelece, o casal vivido por Negrini e Mello mal se toca durante todo o filme. Após um encontro no cemitério, ele a leva para viver em sua casa. Nos primeiros minutos da obra, massacra-a com palavras, pedindo-lhe que transcreva intermináveis trechos que recita, sobre assuntos tão divertidos como física quântica para uma adolescente de High School Musical.

A palavra é a primeira das várias pistas falsas que o diretor oferecerá ao espectador. O personagem de Mello tem prazer doentio em observar a mulher se relacionar com os escritos - mas, apesar da importância inicial, a palavra se submeterá à plasticidade do filme, esculpida pela fotografia de Walter Carvalho.

A fala excita o homem. É daí que o voyeurismo aflora. Mas pouco interessa ao filme, no final das contas, citações como "todos os venenos têm contra-veneno, menos a erva do rato". Estão lá apenas para lembrar à plateia que, ao distribuir essas pequenas ratoeiras pseudo-narrativas, Bressane pode não estar querendo dizer nada. Depos de A e B, não necessariamente segue o C.

A araponga narrativa aparece, de certa forma, simbolizada nas máscaras de papelão que o marido põe para assistir a cenas íntimas do casal. Não que haja sexo pra valer - eles não se tocam, lembra?. Acontece que ele gosta de fotografá-la. Nua. E, ao decorrer do filme, passa a não se contentar em apenas observá-la. Com máquina fotográfica em mãos, arma seu próprio mise-en-scène, por meio de enquadramentos que a fazem abrir pernas, mas não a alma.

O trecho final do filme descamba para o bizarro. Primeiro, temos Negrini em cena como uma sonâmbula com pinta de mãe-de-santo. Em seguida, Mello aparece subjugando o inimigo roedor a uma cena digna de Jogos Mortais. E, por favor, não esqueçamos do esqueleto que serve a ensaios fotográficos mais reveladores que muita Playboy por aí. Ossos do ofício.

Em tempos de Se Eu Fosse Você 2, Bressane não quer saber de se pôr no lugar do espectador. Como bloquinhos de lego que nunca se encaixam, não facilita; constrói um filme de montagem intricada, que nas sessões tem lhe rendido um cabo-de-guerra entre palmas ("cinema de vanguarda!") e vaias ("este cara está falando sério?"). Não, ele não está se lixando para você, caro espectador. Apenas deseja que você crie seu próprio filme - que você seja menos preguiçoso, trocando em miúdos.

Talvez a mais falsa das ideias propagadas ao longo de Erva do Rato venha justamente após créditos rolados. "Nenhum animal foi maltratado ou exposto a riscos durante as gravações", vem o aviso. O rato está a salvo. Quanto ao animal-homem, esse não sai impune de sua obra. Para o bem ("cinema de vanguarda!") ou para o mal ("este cara está falando sério?").