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Bruce Springsteen

Ele fez as pazes com sua vida e sua música e lançou um disco que mistura questões políticas com relacionamentos. "Porque é assim que as pessoas vivem", avisa

Joe Levy Publicado em 09/01/2008, às 11h00 - Atualizado em 20/02/2013, às 15h01

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Imagem Bruce Springsteen

Nesta tarde, bruce springsteen está com a cabeça cheia. Existem os ensaios da banda e a turnê mundial com 37 shows marcados. Há seu álbum novo, Magic. Há ainda a questão do tema do disco - coisas pesadas como a direção da democracia norte-americana e um clima de festa que lembra o tempo em que a E Street Band soltava faísca (há mais de três décadas). E há ainda mais outra coisa: o jogo de futebol de seu filho mais velho começa às 16h30. l A vida de Springsteen aos 58 anos gira em torno da família e da música. Nem sempre foi assim.

Durante muito tempo, foi só a música. E depois, por um período, só a família. O equilíbrio que ele alcançou - e a seqüência criativa em que se encontra, com quatro álbuns nos últimos cinco anos - é relativamente recente. "Passei uns dez anos sem ter exatamente um ponto de chegada", recorda, referindo-se à época em que se mudou para Los Angeles, acomodou-se em seu segundo casamento e deu início a uma família. Ele e a mulher, Patti Scialfa, têm três filhos: Evan, 17, Jessica, 16, e Sam, 13. l Os dez anos que Springsteen menciona coincidem mais ou menos com o período de ociosidade da E Street Band, de 1988 a 1999. Durante esse tempo, ele redefiniu sua carreira e sua música de maneira mais radical do que qualquer artista entre os grandes já fez, à exceção de Bob Dylan, que nunca deixa de surpreender.

Depois de ter alcançado o nível de sucesso de massa que sua música e sua ambição sempre exigiram, Springsteen se recolheu. Suas composições se voltaram primeiro para dentro, depois para fora. Os álbuns mais pessoais que ele fez - Lucky Town e Human Touch (ambos lançados em 1992) - foram, como ele próprio observa, os mais felizes e de menos sucesso. Em 1995, The Ghost of Tom Joad, um disco literário com inclinações políticas - um cruzamento de Raymond Carver (escritor e poeta) e Woody Guthrie (cantor folk) -, seguiu-se ao nascimento de seu primeiro filho. Em sete anos, ele passara de estádios para arenas e depois para teatros, um homem sozinho com seu violão.

Em 1999, poucos meses antes do 50º aniversário, Springsteen saiu em turnê com a E Street Band pela primeira vez em mais de uma década. Como sempre acontece, a banda injetou sangue e músculos por trás das letras, reconectando Springsteen ao rock e ao soul, que foram a primeira fonte de sua arte. Isso fica claro quando vejo os ensaios para a atual turnê no Convention Hall de Asbury Park, em Nova Jersey - uma banda de arena reunida em um salão com dimensões de ginásio de colégio para se aquecer antes de uma longa corrida. Naquela voz conhecida, rascante, Springsteen traça caminhos melódicos pelo ar, à la Sam Cooke.

A magia retorna ao espírito de Asbury Park com um som grandioso que Springsteen não experimenta desde Born to Run (1975). "Ultimamente, tenho mantido um pequeno romance com meus trabalhos mais antigos", admite. "Havia muita liberdade neles. Quando você começa uma coisa e a termina... é aí que a pressão acaba. No início, você é desconhecido demais, na verdade não está concorrendo com ninguém. E, a esta altura, não estou competindo com 50 Cent nem tentando aparecer na MTV. Estou tocando para mim mesmo e para minha banda e para meu público."

Como ele explica quando nos sentamos para conversar nos camarins do Convention Hall, Magic usa os sons do passado para transmitir a sensação do presente: "As inquietações de uma época muito inquieta". Com freqüência, enquanto fala, o músico começa a dar risada no meio de uma frase, como se ficasse acanhado de se levar tão a sério assim. Mas não quando discute o rumo que os Estados Unidos tomaram sob a administração de George W. Bush ou sobre a Guerra no Iraque. As risadas desaparecem.

Magic começa com "Radio Nowhere", que fala sobre um sujeito na estrada, em busca de uma conexão.

É um cenário de fim de mundo: ele vê o apocalipse e todas as comunicações estão cortadas. E este é meu objetivo: tentar me conectar a você. Isso se resume a tentar fazer as pessoas felizes, a se sentirem menos solitárias, mas também a ser um condutor para um diálogo a respeito das coisas que aconteceram naquele dia, das questões que causam impacto na vida, do ponto de vista pessoal, social e político e religioso. É assim que sempre vi o trabalho da nossa banda. A esta altura, acredito que estou no meio de uma conversa muito longa com o meu público.

E o que você escuta do outro lado dessa conversa?

Muitas coisas. É um diálogo contínuo sobre o significado da vida. Não é um diálogo cara a cara, mas é como se você sentisse um retorno do público. A gente cria um espaço conjunto, imagina a vida que deseja viver, o tipo de país em que quer morar, o tipo de lugar que pretende deixar para os filhos. Quais são as coisas que lhe trazem êxtase e alegria, as coisas que suscitam tristeza, e o que podemos fazer juntos para combater tudo isso? Esse é o diálogo que crio quando estou compondo. E o vejo na minha frente quando estou me apresentando. É uma coisa orgânica, viva. A cada noite, são ditas coisas com diferenças sutis. Mas você está tentando definir o mundo e a sua vida - e causar impacto sobre isso.

O que você ganha por ter essa dedicação toda com seus fãs?

Gosto e, mais ainda, preciso disso. Quando me prendi a isso, agarrei-me como se fosse um bote salva-vidas. As luzes se apagam e você tem liberdade para imaginar a pessoa que quer ser, o lugar em que deseja estar. Suponho que você leve um pouco disso quando sai dali. Eu me lembro do nascimento dos meus filhos. Foi um dos poucos momentos em que experimentei o amor total sem medo. Depois, tive receio de perdê-lo, só que você nunca perde - a lembrança daquele momento e as possibilidades inerentes a ele são eternas. Então, em uma noite boa, quando a banda está tocando bem de verdade, o público é parte de um acontecimento coletivo de imaginação. E depois coloca aquilo em ação da maneira que melhor atenda às suas necessidades.

Esse ato coletivo de imaginação aparece na canção "Magic". O tipo de país em que desejamos viver é um tema recorrente na sua obra...

"Magic" tem a ver com viver em uma época em que qualquer coisa verdadeira pode ser transformada em aparente mentira, e em que qualquer mentira pode ser transformada em aparente verdade. Existem pessoas que tomaram isso como um credo. A citação mais clássica foi feita por um dos Bush no [jornal] The New York Times: "Nós criamos nossa própria realidade. Vocês a relatam, nós a criamos e fazemos". Sou capaz de abominar essa afirmação - pela estupidez e arrogância inacreditáveis nela - mais do que abomino as expressões "bring it on" [manda ver] e "mission accomplished" [missão cumprida]. E essa música ["Magic"] fala de ilusão: "Trust none of what you hear / And less of what you'll see / This is what will be" [não confie em nada do que escuta / e muito menos no que verá / é assim que vai ser] - somos nós que a criamos. Até chegarmos ao último verso: "There's a fire down below / It's coming up here (...) There's bodies hanging in the trees / This is what will be" [Há um incêndio lá embaixo / Está chegando aqui (...) Há corpos pendurados nas árvores / É assim que vai ser]. O coração do meu álbum está aí.

Há um verso no fim dessa canção sobre carregar apenas aquilo que lhe dá medo. Você está falando da "política do medo", não?

É. Não dá para atingir a segurança matando os outros e não dá para liderar com a estratégia de amedrontar as pessoas. Às vezes até dá para fazer as pessoas votarem em você dessa forma, mas não é uma tática que forneça o tipo de autoridade moral e de liderança necessária para se comunicar no mundo. É apenas a solução do covarde.

Então, você está dizendo que, dessa forma, é até possível ganhar as eleições, mas não governar.

É isso mesmo. Essa é a única carta que colocaram na mesa, basicamente, desde o primeiro dia de governo. Se a eleição de 2004 tivesse ocorrido seis meses depois, eles teriam perdido. As pessoas ainda estavam sob o efeito do "11 de Setembro" e da magia [risos] e do Swift Boat [barcos de pequeno porte norte-americanos usados para operações de contra-ataque durante a Guerra do Vietnã. John Kerry, candidato presidencial da oposição em 2004, servira no Vietnã como comandante em um desses barcos e, segundo acusações de um grupo de veteranos, teria cometido crimes de guerra na ocasião]. Um dos momentos mais satisfatórios da eleição foi quando [o jornalista televisivo] Ted Koppel detonou os Swift Boaters no [programa] Nightline mais ou menos uma semana antes da eleição, quando foram até um vilarejo no Vietnã onde o incidente se deu e falaram com as vítimas vietnamitas. Estava logo ali, mas não foi suficiente, e foi tarde demais. Em resumo, é o seguinte: se você faz parte da imprensa e acredita que parte da sua responsabilidade é dar às pessoas as informações de que precisam para proteger suas liberdades, existe responsabilidade editorial. Mas isso foi relegado a segundo plano de um modo terrível. Quando alguém diz que a manchete é Anna Nicole Smith, é preciso se perguntar se está mesmo na profissão certa. A imprensa se transformou em comércio, e nos canais que supostamente são os mais confiáveis não há nada além de um desfile infinito de bobagens.

Certo. Porque, durante a eleição, para conseguir a verdade por trás dos anúncios relativos ao caso do Swift Boat, era necessário fugir da mídia de massa e ir direto ao (programa) The Daily Show.

[O apresentador e comediante] Jon Stewart é uma força muitíssimo importante e solitária na televisão. Ele quer ajudar as pessoas a interpretar o mundo da mídia moderna. Há muito ruído. Toda noite Stewart aparece na tela e tira o véu, e a gente pode ter uma visão de como as coisas são na realidade. É por isso que as pessoas gravitam na direção dele e confiam nele.

Há um verso de "Long Walk Home" que tem uma força tremenda. Um pai diz ao filho que a bandeira desfraldada no alto do tribunal significa que "certain things are set in stone (...) what we'll do and what we won't" (algumas coisas são imutáveis (...) o que podemos fazer e o que não podemos). Mas vivemos em uma época em que essas coisas já não são mais imutáveis...

Não, porque foram dilapidadas de maneira pavorosa. Quem algum dia pensaria que nós viveríamos em um país onde não há direito ao habeas corpus? Parece coisa de [George] Orwell. A histeria política é isso, e é eficiente assim. Senti na pele. Você fica temeroso em relação à família, a sua casa e percebe como os países podem se desviar de seu rumo, para muito longe dos ideais democráticos. Junte mais um ou dois ataques terroristas e os Estados Unidos podem se transformar em um lugar bem assustador. Philip Roth captou isso em Complô Contra a América: acontece de um jeito bem americano - a bandeira desfraldada por cima das liberdades civis que se despedaçam. Foi uma percepção fascinante.

Você mencionou o escritor Philip Roth. Há outras coisas que leu e que tiveram impacto sobre Magic?

Não exatamente. Fui muito influenciado no passado por livros e filmes, mas diria que, neste álbum, voltei a me apaixonar pela música pop. [O cantor e ativista político] Pete Seeger diz: "Quero saber para que serve a música? Qual é o suposto objetivo deste trabalho?". Carrego um pouquinho disso comigo, mas sou uma cria do pop. Às vezes, a utilidade da música é apenas a maneira como ela faz com que você se sinta. Neste álbum, quis muito isso. Há alguns formatos pop clássicos da década de 1960. Influências do rock da Califórnia - Pet Sounds e muito Byrds. Queria pegar as produções que criaram os universos pop perfeitos e então subvertê-las com as letras - enchê-las com o vazio e com o medo.

"Girls in Their Summer Clothes", por exemplo, é uma balada de crooner dos anos 60, mas cria uma imagem ideal que se sobrepõe ao que corre pelas entranhas de Magic. Há uma lanchonete em duas canções, e são muito diferentes. Há a de "Girls in Their Summer Clothes" - Frankie's Diner, nos limites da cidade, com luminosos de neon - e depois tem a lanchonete com a placa que simplesmente diz "fui embora" [em "Long Walk Home"]. Acredito nas duas. Esses são exatamente os parâmetros de que falo.

"Girls in Their Summer Clothes" é uma das várias músicas que parecem fazer referência ao seu início de carreira.

Ela é grandiosa, de um jeito descarado. Acho que não escrevo com tanto romantismo quanto me permiti nessa música desde Born to Run. Desta vez, me senti livre para retornar ao romantismo dos meus primeiros trabalhos. Dobrei minha voz, cantei mais forte. Na verdade, estou ansioso para compor um pouco mais naquele estilo, para pegar alguns dos elementos que descartei porque queria me assegurar de que a música era forte o bastante para os assuntos que estava interessado em abordar. Foi o que fiz com Darkness on the Edge of Town (1978) e com Nebraska (1982) e com partes de The River (1980). Mas, agora, me sinto livre o suficiente para voltar e retomar esses elementos adoráveis de simplicidade pop e a canção bem-feita de 3min30, coisa que adoro fazer.

Será que isso veio à tona a partir do trabalho na edição comemorativa de 30 anos de Born to Run?

Eu me esqueci de como aquele álbum era bom. Fazia muitos, muitos anos que não o escutava. Born to Run foi criticado por ser romântico demais. Estava naquela parte da minha carreira em que reagia. Quando você conquista certa atenção, começa a reagir... Então me aproximei de coisas sombrias. Mas parte das coisas que me assustavam é o motivo de o álbum ter durado: durou porque era romântico. Mas, ainda assim, preenchi o romantismo com tristeza. Era um disco pós-Vietnã, e dá para ouvir, mais uma vez, a inquietação e o medo e a preocupação com o futuro. O verso clássico de "Thunder Road", que escrevi aos 24 anos, era: "We're not that young anymore" [não somos mais tão jovens assim]. Isso saiu diretamente daqueles últimos anos de guerra. Ninguém mais se sentia tão jovem. Estabeleci os parâmetros do mundo que viria a investigar. É interessante - não pensei sobre o assunto, mas era realmente o que queria. Todos os vários pequenos efeitos que obtivemos. Sempre amei aquelas pequenas sinfonias pop, então, desta vez, pude brincar um pouco com isso. "Your Own Worst Enemy" foi uma das minhas grandes produções pop. A letra diz "we're always teetering on the edge" [estamos sempre equilibrados na beirada], e tem a ver com a auto-subversão. Não dá para levar para o nível pessoal ou político. É isso que dá ao álbum sua tensão, aquelas duas coisas - o universo pop perfeito e, depois, o que está em seu cerne. "Living in the Future" tem um som bem tranqüilo, mas tem a ver com como as coisas se distorceram horrivelmente. É sobre apatia, e sobre como as coisas que você pensava que nunca aconteceriam já aconteceram. Tentei combinar o pessoal e o político, de modo que é possível ler as músicas dos dois jeitos. Dá para ler o álbum como um comentário sobre o que anda acontecendo ou pode ser lido apenas como músicas que falam de relacionamentos.

É eficiente. Tem força alegórica.

É. Apesar desta entrevista aqui, não queria fazer um disco para ficar falando mal de Bush. Isso já foi feito - e não é disso que as pessoas realmente precisam - ou talvez não seja o que preciso neste momento. A composição precisa ser multidimensional para continuar sendo interessante, para ter vida. Você não está escrevendo manchetes. Encontrei maneiras de expressar minhas preocupações políticas e minhas preocupações pessoais, e sempre acho que é melhor quando se combinam, porque é assim que as pessoas vivem.

Quero retornar um instante a "Radio Nowhere". Há uma invocação a Elvis quando o narrador está "searching for a mystery train" (procurando um trem misterioso). O que ele busca?

Aquilo que todo mundo busca. O que é inatingível, mas que está lá, aquela parte da vida fora do nosso alcance, levemente à sombra. Mas que encerra dentro de si todas as essências e a vitalidade física bruta e a carne e o osso e o suor de viver. É aquilo que faz com que tudo valha a pena, mesmo que você só experimente com a pontinha da língua. É a nossa história. É aquele trem que corre desde que aportamos aqui, e essa coisa ruge com todos nós a bordo neste momento. É isso que gosto de buscar.

De onde vem a sua noção de identidade norte-americana e da possibilidade norte-americana?

As pessoas de que gostava faziam isso e elas estavam sempre em busca de algo - Hank Williams, Frank Sinatra, Elvis, James Brown. As pessoas que adorava - Woody Guthrie, Dylan - estavam na fronteira da imaginação norte-americana, mudando o curso da história e as nossas próprias idéias relativas a quem nós éramos. E pode incluir aí Martin Luther King e Malcolm X. Era parte do que imaginava desde o início, só porque tirei uma inspiração tremenda e uma noção de lugar dos artistas que tinham imaginado isso antes de mim. Era algo a que queria me arriscar, que me deixava emocionado e ansioso. Para mim, foi o que deu início ao que tinha a oferecer. Caminhei pelo calçadão a uns 100 metros daqui e olhei em uma lojinha de bugigangas. Havia uma fileira de cartões-postais e eu peguei um que dizia Lembranças de Asbury Park. Eu disse: "Esta é a capa do meu disco. Este é o meu lugar".

As minhas músicas são todas sobre a identidade norte-americana e sobre a sua própria identidade e sobre as máscaras atrás das máscaras, tanto para o país quanto para você mesmo. E sobre tentar se agarrar ao que vale a pena, ao que faz deste lugar algo especial, porque ainda acredito que seja. A idéia norte-americana ainda tem um poder enorme em sua melhor manifestação. E dez George Bushes não são capazes de derrubar essa idéia - 100 não são capazes de derrubar essa idéia. Isto pelo que estamos passando agora, vamos sair do outro lado em algum momento. Mas aquela idéia permanece, e é algo que me impulsionou a vida toda. A arte disso era compreender quem eu era - de onde vim e o que via acontecer com algumas pessoas à minha volta.

O que isso significa?

Minha família tinha problemas em muitos aspectos. Minha mãe era italiana de segunda geração. Minha avó viveu até os 102 anos e nunca falou inglês. Quando entrava no quarto dela, estava na Itália. Tudo: as Madonas, os xales. Ela viveu neste país desde os 20 anos e nunca aprendeu inglês. Então, havia a cultura italiana, e a outra parte irlandesa que era muito tradicional. Tive que peneirar isso. Então a identidade se tornou parte importante da música que escrevi. E daí, por causa da época em que cresci (os anos 60), nossa identidade nacional estava em uma torrente tremenda. Eu me interessei por "qual é o lado social dessa equação?". Em última instância, todas as minhas coisas realmente falam disso: "Tem alguém vivo por aí?", perguntei, vez após outra. "Long Walk Home" poderia ter saído de Darkness on the Edge of Town.

Você apresentou "Long Walk Home" durante a turnê de Seeger Sessions. Qual é a diferença de tocá-la com a banda das "Sessions" e com a E Street Band?

Era nossa noite de estréia em Londres. Quando se está na Europa, você toma muita consciência do seu americanismo, principalmente nesta época horrível. Eu tinha a música e criamos um arranjo bem solto. Era muito fácil improvisar com aquela banda. Inventar alguma coisa na passagem de som e tocar na mesma noite - fazíamos muito isso. Sinto que tenho duas das melhores bandas do mundo. Compus a maior parte deste álbum em turnê com a banda das Sessions. Escrevi uma parte dele no minuto em que larguei The Rising. Minha idéia era partir dos resultados políticos e sociais que se seguiram à tragédia de 11 de Setembro. Tenho "Livin' in the Future" desde aquela época, e pode ser que também tivesse "Radio Nowhere". Durante a turnê, pegava meu violão e começava a compor. Escrevia em meu tempo livre. Hoje é um processo muito fluido, na comparação do que era anos atrás. Quando insistia em me torturar durante o máximo de tempo e com a máxima força possível por não ter nada melhor para fazer. Agora que tenho três filhos adolescentes, então escrevo quase só no meu tempo livre.

Você se torturava quando era jovem?

A gente fica achando que existe um jeito certo, e é uma falácia quando se trata de criar algo. Então, nesse aspecto você se encrenca. Além do mais, não tem vida. Então, em vez de passar pela experiência desagradável do seu cotidiano, é melhor viver a experiência desagradável da sua criatividade. As horas que eu gastava nisso... Era a única maneira que conhecia de trabalhar. Era divertido, mas exaustivo. Acho que intencionalmente exaustivo. Fiz muita música boa, mas saiu tudo em Tracks. Provavelmente existe um outro Tracks guardado no cofre, que vou pegar algum dia.

A seqüência criativa por que você está passado agora é recente, levando em conta a extensão da sua carreira. Houve um período em que você fazia álbuns e colocava de lado.

É, fiz um para "Streets of Philadelphia". Tinha muitos pequenos loops e coisas assim. Era muito bem escrito. Mas não era uma obra completa, e foi por isso que ficava feliz com quatro ou cinco músicas. No fim, sentia uma certa insatisfação.

Sobre o que falavam aquelas canções?

Na maior parte, sobre relacionamentos. Tinha acabado de fazer Tunnel of Love (1998) e esse teria sido meu quarto disco com esse tema - pensei que era demais. Mas não sabia o que queria fazer. Tive que desmembrar a narrativa em que me encontrava, desmontar o contexto e me mudar para Los Angeles durante três ou quatro anos, fugir das coisas conectadas a mim mesmo. Fomos para Los Angeles e a mudança de cenário foi boa. Na verdade, adoro aquela cidade, as montanhas e o deserto - lá posso ficar com os meus carros e as minhas motocicletas. Mudei-me para o oeste, onde tinha uma casinha da metade da década de 1980 em Hollywood Hills. Minha irmã mora lá, meus pais moram mais ao norte, em São Francisco, e para mim foi fascinante estar lá. Escrevi coisas que não teria escrito se tivesse ficado no leste - dois ou três álbuns de canções [ao estilo] western. The Ghost of Tom Joad, Devils & Dust (2005) e outro álbum em que ando trabalhando. Foi uma ótima mudança geográfica, um lugar para encontrar histórias novas. Mas também demorei dez anos e aprendi como viver. Tinha 35 anos e não fazia a menor idéia de nada. Aprendi a viver, e encontrei alegria naquelas coisas.

O que aprendeu?

Acho que a ter vida fora do trabalho. Como ter relacionamentos? Como se dedicar a coisas que são para sempre? Como se desfazer de todos os seus antigos álibis ou pelo menos de alguns deles? Precisei treinar isso da mesma maneira que precisei ensaiar guitarra quando comecei - muitas e muitas horas de dedicação intensa. Eu era alguém que precisava aprender porque todos os meus instintos estavam errados. Todos os meus instintos faziam com que me afastasse das coisas.

Às vezes, a gente corre para outra direção porque não sabe fazer as coisas de outro jeito.

É isso mesmo. Daí você percebe que precisa fazer seu próprio mapa e que, ao fazê-lo, homenageia seus pais ao tomar as boas coisas que eles lhes deram e carregá-las consigo - e ao largar pesos e fardos para que seus filhos não precisem correr com eles. Mas aquele intervalo foi realmente radical para mim, e Patti foi, e continua sendo, paciente além da paciência. Não conseguia sair da cama de manhã, não conseguia dormir à noite. As coisas básicas que acertam o relógio.

Isso se deu pela necessidade de desacostumar com o ritmo da estrada?

Remonta à minha infância. Minha criação foi estranha, minha casa era muito excêntrica. Aos 5 e 6 anos, ficava acordado até as 3h da manhã. Tenho certeza de que não foi coincidência o fato de ter me tornado músico - para poder ficar acordado até as 3h da manhã, como eu já fazia. Quando você passa a ter filhos, pensa: "Preciso mudar isso". Passei muito tempo aprendendo a viver. Suponho que Patti diria que alcancei um nível tolerável de competência.

O que o fez retornar a Nova Jersey?

Cresci rodeado de muitos parentes. Acho que Patti e eu temos uns 70 parentes, só nesta área, e há muitos italianos e também o lado irlandês. A certa altura, quando as crianças chegaram à idade escolar, resolvemos que queríamos isso para elas. Passávamos sempre a metade do ano aqui, mesmo naquela época. Então, quando voltamos, meus filhos cresceram perto do meu tio que caça, do outro que é dono de uma lavanderia - pessoas que fazem todo tipo de trabalho e que trazem todo tipo de coisas para eles. Isso anulou toda a esquisitice do meu trabalho, e permitiu que eles procurassem modelos de conduta de todos os tipos. Isso foi importante. Daí, voltamos, e reencontrei a liberdade em algumas das minhas primeiras narrativas, e isso inclui este prédio aqui e esta cidade e a minha banda. Do ponto de vista criativo, nunca me senti tão livre na vida. Sinto que peguei o fio da meada que nunca larguei, mas que deixei de molho durante um tempo. E sinto que estamos com tudo agora. Esta será a melhor E Street Band que qualquer pessoa já viu. Você pode ter uma parte preferida do meu trabalho, pode ter um show preferido, mas se for garoto e seu irmão ou seu pai nos viu, e você vem nos ver agora, pode dizer: "Eu os vi em sua melhor forma". Gosto disso. Gosto do fato de que todo o meu pessoal está por aí, e que continuam todos vivos. Poderia ter tomado muitos outros caminhos. Houve dificuldades, os mesmos tipos de problemas que muitas outras bandas têm, mas as pessoas cuidavam umas das outras, e todo mundo está lá para ajudar. Não consigo expressar minha alegria de estar ao lado dessas mesmas pessoas.

Algumas delas estão com você há mais de três décadas.

Conheci Steve [Van Zandt] quando tinha 16 anos. Agora estou com 58. Então, são mais de 40 anos. É maravilhoso estar lá com seus melhores amigos e sua mulher. Seu mundo todo está lá. Acho que, para muitos dos nossos fãs, parte da coisa é que, quando o mundo está desmoronando, nós não. É por isso que as pessoas vêm até nós. Sempre existiu a noção de estabilidade e de continuidade e de conexão.

Parece que você conseguiu fornecer isso às suas duas famílias - à do palco e aos seus filhos.

A esta altura, você tem que enxergar o quadro como um todo, precisa da vida como uma coisa completa. Sem isso, é um exercício. Você não quer que as coisas a respeito das quais escreve e canta sejam uma abstração para você. Sempre gostei da cena no final de Rastros de Ódio: John Wayne leva a garota de volta para casa, mas não consegue entrar. Muito trágico. Isso realmente me tocou. Cresci com muito disso, de gente que não consegue entrar, e esse sempre foi meu estado natural. Acho que, porque eu próprio tinha um coração um pouco caótico, sempre busquei essa estabilidade. Está em "Leah", de Devils & Dust: "I walk this road with a hammer and a fiery lantern / With this hand I've built, and with this I've burned" [caminho por esta estrada com um martelo e uma lanterna em fogo / com esta mão eu construí, e com esta eu queimei]. Acho que todo mundo sente essas duas coisas. O negócio é como equilibrá-las. Há muito fogo no incêndio, mas não adianta de nada se você não tiver o martelo para a construção.