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Consequência da Coragem

Bradley Manning foi um soldado gay atormentado que expôs os segredos mais profundos do exército norte-americano – e está pagando um alto preço desde então

Janet Reitman | Tradução: Ligia Fonseca Publicado em 10/04/2013, às 15h03 - Atualizado em 14/04/2013, às 17h54

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<b>UM SONHO DE LIBERDADE</b> Bradley Manning: conexão com o Wikileaks já lhe rendeu quase mil dias de detenção – e poderá mantêlo aprisionado pelo resto da vida
<b>UM SONHO DE LIBERDADE</b> Bradley Manning: conexão com o Wikileaks já lhe rendeu quase mil dias de detenção – e poderá mantêlo aprisionado pelo resto da vida

Em junho de 2010, quando estava a cerca de duas semanas na detenção militar em Camp Arifjan, no Kuwait, Bradley Manning, o soldado de 22 anos do Exército acusado de vazar centenas de milhares de documentos confidenciais para o WikiLeaks, foi levado da tenda com ar-condicionado onde estava vivendo e colocado em uma gaiola. Não houve nenhuma explicação; os motivos para essa transferência repentina, que ocorreu várias semanas antes de qualquer acusação oficial ter sido feita contra ele, ainda não estão claros. Manning passaria mais de um mês nessa cela, um cubo de 2,5 m por 2,5 m – quase idêntica às usadas em Guantánamo – feito de painéis de grade de aço e equipado com beliche, pia de aço inox e uma privada acoplada. O contato humano era quase nulo. Em um “ciclo de sono reverso”, ele era acordado às 22h e tinha de ir dormir às 13h ou 14h do dia seguinte.

Manning, que já estava em um estado frágil e emotivo antes de ser preso, começou a deteriorar muito rapidamente. Foi encontrado uma noite “gritando, tremendo, balbuciando e batendo a cabeça na parede adjacente”, segundo documentos oficiais. Ele tinha fabricado uma forca com lençóis, “mas foi inútil”, afirmou mais tarde, observando que não havia onde pendurá-la. Na segunda semana de confinamento, Manning tinha passado tanto tempo na gaiola que começou a acreditar que poderia ficar lá para sempre. “Só lembro que pensava: ‘Vou morrer. Estou preso nesta gaiola e vou morrer’”, conta.

Assim começou a jornada de Bradley Manning pelo mundo excessivamente obscuro da detenção militar pré-julgamento, um tormento de quase três anos pontuado por meses de tortura legalizada, não diferente da que inimigos detidos sofreram na Baía de Guantánamo. Embora não seja o tratamento-padrão para soldados norte-americanos, mesmo para os acusados de crimes de guerra, oficiais do governo Obama o consideraram “adequado” para Manning, que, em muitos sentidos, “parou de ser um ‘soldado’ no momento em que cruzou a linha e revelou segredos da guerra”, observa Kristine Huskey, diretora do Programa Antitortura da organização Physicians for Human Rights (Médicos pelos Direitos Humanos). “Ao fazer isso, ele se tornou, de fato, o ‘inimigo’, e, quando se é o inimigo, você pode estar sujeito a tratamento que não é para pessoas do nosso lado.”

Um ex-analista de inteligência, Manning foi preso em 27 de maio de 2010, em sua base no leste do Iraque. Investigadores do Exército fizeram buscas no computador dele, encontrando evidências de milhares de comunicados militares e do Departamento de Estado e conversas crípticas entre Manning e um associado ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange. Manning acabou sendo acusado pelo maior vazamento de segredos governamentais da história dos Estados Unidos – uma revelação composta por mais de 700.000 documentos da inteligência norte-americana, incluindo: um vídeo de julho de 2007 de um ataque com helicóptero Apache a civis iraquianos, no qual 18 pessoas morreram; quase 500.000 relatórios sobre as guerras no Iraque e no Afeganistão; mais de 250.000 mensagens diplomáticas de embaixadas norte-americanas em todo o mundo; e 779 documentos pertencentes à Baía de Guantánamo.

Embora nada desse material fosse “superconfidencial”, foi um retrato condenatório e, às vezes, altamente embaraçoso do poder e da diplomacia dos Estados Unidos, expondo incursões noturnas que deram terrivelmente errado; ataques de mísseis com alvo em crianças, por engano; inúmeros tiros a civis iraquianos em postos de controle; torturas realizadas pelas forças iraquianas com aprovação explícita das tropas norte-americanas vinculadas por uma política oficial, mas não divulgada anteriormente, de não interferência, além de corrupção exercida por aliados norte-americanos no Afeganistão, no Paquistão e em muitos países do Oriente Médio.

Manning atualmente é acusado de 22 infrações à lei militar, oito das quais caem sob a Lei de Espionagem, um estatuto arcaico de 1917 contra o compartilhamento de informações com fontes não autorizadas. Usar a Lei de Espionagem para perseguir delatores tem sido uma característica da administração Obama, parte do que alguns veem como uma “guerra a delatores” mais ampla – que significa uma inversão impressionante da postura original do presidente de levar maior transparência ao governo. Desde que Obama tomou posse para o primeiro mandato, em 2009, a administração dele abriu seis processos por vazamento de segredos de segurança nacional – mais do que todas as outras administrações combinadas. Desses casos, Bradley Manning é o único membro do Exército norte-americano e a única pessoa a ser colocada em detenção pré-julgamento. Também é a única a ser acusada de “auxiliar o inimigo” ao, como diz a folha de processo, “enganosamente e injustificadamente”, fazer com que dados da inteligência norte-americana fossem publicados na internet, onde inimigos dos Estados Unidos podem vê-los.

O major Ashden Fein, principal promotor do governo no caso, argumentou que, como Manning havia lido relatórios do Exército mostrando que a Al Qaeda e outros inimigos dos Estados Unidos usavam o WikiLeaks, ele forneceu “conscientemente”, embora indiretamente, informações confidenciais. O fato de Manning intencionalmente ajudar a Al Qaeda ou qualquer inimigo é, argumenta o governo, imaterial. “Se alguém roubasse um pão para alimentar a família, ele de qualquer forma roubou o pão”, afirmou o capitão Angel Overgaard, um dos promotores do governo.


Manning era um soldado atípico. Com apenas 1,58 m de altura, era um questionador incansável. Usava uma corrente de pingentes personalizada se identificando como “humanista”. Tinha um celular rosa. Era gay, mas não abertamente. Criado em Crescent, Oklahoma, saiu do armário para os amigos aos 13 anos, mas desde que entrou para o Exército, em 2007, tinha vivido sob diversas camadas de segredo, graças à política militar “don’t ask, don’t tell” (não pergunte, não conte). O acampamento do Exército tinha sido uma tortura. Atacado incessantemente, sofreu crises de ansiedade, arranjou brigas e até urinou em si mesmo (mais de uma vez).

No terceiro trimestre de 2009, ele partiu para o Iraque com a 2ª Equipe de Combate em Brigada da 10th Mountain. Assombrado por medos de não ser “masculino o suficiente”, como disse a um amigo, Manning começou a questionar o próprio sexo. Em férias nos Estados Unidos durante o inverno rigoroso de 2010, passou alguns dias vestido de mulher. Chamou seu alter ego feminino de “Breanna”.

Além dessas questões pessoais, havia o fato de que Manning estava começando a ter sérias dúvidas. “Ele tinha motivo para acreditar que os Estados Unidos estavam envolvidos em atividades que infringiam diversas leis, então tomou uma decisão fatal de expor a ilegalidade”, diz Thomas Drake, ex-oficial da Agência de Segurança Nacional (NSA) que foi acusado pela Lei de Espionagem, em 2010, de vazar informações confidenciais para a imprensa. “Esta é a definição clássica de um delator, e o que aconteceu com ele desde então é uma retaliação clássica contra alguém que expôs o descontrole do poder patológico.”

Em um dia fresco no final de novembro de 2012, Manning, acompanhado do advogado, David Coombs, chegou a Fort George G. Meade, a base imponente do Exército nos arredores de Baltimore, para argumentar que sua detenção na brigada da Marinha em Quantico, Virgínia, para onde foi transferido depois de dois meses no Kuwait, representava punição pré-julgamento ilegal.

Embora o WikiLeaks tivesse virado notícia no mundo inteiro, Manning havia permanecido um enigma, jogado na detenção militar enquanto seu caso era praticamente submerso pela busca incansável do governo por Julian Assange. Com Manning incapaz de falar por si mesmo, sua história tinha sido relegada a vários amigos, parentes, defensores da liberdade de expressão, ativistas de direitos humanos, advogados, repórteres e soldados que haviam servido com ele, todos contribuindo para a narrativa que o pintou como um ser humano frágil, problemático, fraco – um maluco emotivo que nunca deveria ter sido convocado para a guerra, quanto mais ter recebido uma autorização de segurança máxima.

No entanto, o Manning que apareceu não era esse soldado. Usando um uniforme azul-marinho, com óculos sem aros e cabelo loiro curto e bem penteado, não aparentava ser o “afeminado” tantas vezes retratado. Não chorou nem tremeu. Principalmente, parecia muito jovem – tinha acabado de fazer 21 anos quando começou a vasculhar bancos de dados confidenciais e viu “coisas incríveis, terríveis... que pertenciam ao domínio público, não a algum servidor escondido em uma sala escura em Washington”. Eram memorandos internos dando os detalhes sórdidos das guerras mais sangrentas e moralmente questionáveis desde o Vietnã. “Quero que as pessoas vejam a verdade independentemente de quem sejam, porque, sem informações, não podemos tomar decisões”, ele contou a Adrian Lamo, um hacker que depois viria a delatá-lo. “Sinto, por algum motivo bizarro, que isso realmente pode mudar alguma coisa. Ou talvez eu seja jovem, ingênuo e estúpido.”

Apenas uma fração dos cerca de 300 soldados da base Hammer se envolveu diretamente com os iraquianos; o restante, como Bradley Manning, nunca saía da base. No edifício em que trabalhava, um verdadeiro caixote sem janelas, analistas de inteligência levavam uma existência parecida com a do filme Feitiço do Tempo: trabalhavam em turnos de 12 horas, depois dos quais comiam, dormiam, acordavam e faziam tudo de novo. Era um trabalho tedioso e a segurança era fraca.


Manning começou no turno da noite, como parte da equipe Shi’a Threat, um grupo de analistas encarregado de rastrear apoiadores insurgentes de xiitas radicais como Muqtada al-Sadr. Ele se saiu bem, recebendo elogios por sua “persistência” e, em novembro de 2009, foi promovido a especialista. Pouco depois, boatos começaram a circular na base operacional de que a Al Qaeda estava publicando “literatura anti-iraquiana” em uma gráfica local. Com a ajuda das tropas norte-americanas, a polícia federal iraquiana invadiu o lugar e prendeu um grupo de 15 homens que alegavam ser insurgentes.

No entanto, quase imediatamente depois da incursão, ficou claro para as forças norte-americanas que os homens não eram da Al Qaeda, mas sim opositores políticos do primeiro-ministro Nouri al-Maliki que o governo queria silenciar. Foi um momento vergonhoso para a 10th Mountain, cujos comandantes “simplesmente queriam que aquilo desaparecesse”, como um oficial do governo que estava lá lembra. Para alguns dos soldados, particularmente os que realmente acreditavam que estavam construindo uma nação, foi um golpe devastador. “Aquele foi o primeiro encontro com a brecha entre a propaganda e a realidade”, acrescenta o oficial. “Não estávamos romovendo a democracia. Na verdade, toda aquela coisa de democracia era besteira.”

Manning foi um dos primeiros soldados a ficar sabendo do fiasco, tendo recebido ordens para investigar os “bandidos” depois do ataque. “O que aconteceu foi que eles haviam imprimido uma crítica política inofensiva chamada ‘Para Onde Foi o Dinheiro?’ depois de um julgamento por corrupção dentro do gabinete do primeiro-ministro”, contou. Chocado, ele “imediatamente pegou essa informação e correu até o comandante [responsável] para explicar o que estava acontecendo”. O oficial lhe disse para “calar a boca”, afirmou. “Não queria ouvir mais nada sobre aquilo.”

Manning sabia que os 15 iraquianos estavam condenados. A polícia do país era conhecida por torturar seus prisioneiros, enquanto os militares norte-americanos viravam as costas. Ele não podia deixar isso acontecer. “Naquela hora, eu estava ativamente envolvido em algo ao qual era completamente contrário”, afirmou. A partir de então, “tudo começou a desmoronar. Vi as coisas de um jeito diferente”.

De acordo com as acusações do governo norte-americano, Manning fez o primeiro contato com o WikiLeaks em novembro de 2009, pouco antes ou depois do incidente com os detidos. Afirmou ter feito contato direto com o “australiano maluco de cabelo branco”, também conhecido como Julian Assange, embora não se saiba se conversou diretamente com ele.

Uma das primeiras coisas que Manning vazou foi um vídeo de 17 minutos, chamado de “Assassinato Colateral”. A gravação, feita em 2007, mostra um helicóptero Apache disparando contra civis desarmados que parecem estar se misturando a insurgentes na rua. Os feridos fogem agachados e são assassinados. Uma van parece recolher os corpos; há crianças dentro. Elas também levam tiros. “Assassinato Colateral” foi divulgado em 5 de abril de 2010, em uma coletiva de imprensa do WikiLeaks em Washington. Poucos dias depois, tornou-se viral e foi considerado por organizações de imprensa no mundo inteiro como documentação de um crime de guerra.

Entre dezembro de 2009 e maio de 2010, o período em que Manning presumidamente esteve em contato com o WikiLeaks, superiores notaram uma queda no desempenho e estado mental dele, culminando com um incidente em 7 de maio de 2010, quando foi encontrado encolhido no chão da base em posição fetal, depois de entalhar as palavras ‘I want’ (eu quero) em uma cadeira. Algumas horas depois, deu um soco no rosto de um superior. “Estou cansado disso!”, falou. No dia seguinte, Manning foi rebaixado a soldado de primeira classe, dispensado do trabalho como analista e transferido para a sala de suprimentos como balconista. Deprimido, nunca tinha sido tão marginalizado. Para ele, parecia que o “único lugar seguro”, como dizia, era a internet.


Em uma noite solitária, procurando conexão e depois de experiências de contato online com estranhos, Manning enviou um e-mail para um consultor de segurança de 29 anos chamado Adrian Lamo. Um colombiano/americano que já havia sido bonito, mas tinha problemas com medicamentos controlados, Lamo tinha ficado famoso no início dos anos 2000 como o “hacker mendigo”, um sábio digital que, depois de abandonar o ensino médio em São Francisco, viajou pelos Estados Unidos de ônibus, dormindo no sofá da casa de amigos ou em prédios abandonados, ingerindo altas doses de anfetaminas e usando um laptop Toshiba surrado para invadir os bancos de dados de gigantes corporativos como Yahoo, AOL e MCI WorldCom – para depois explicar prestativamente aos administradores de sistemas das empresas como tapar os buracos que encontrou.

Bradley Manning sabia que Lamo, que era abertamente bissexual, havia aparecido em um documentário de 2003, Hackers Wanted, que focava em seus problemas com a lei; também sabia, pelos posts de Lamo no Twitter, que ele apoiava o WikiLeaks. Um dia, Lamo recebeu uma mensagem de um estranho.

“Oi”, escreveu uma pessoa chamada “bradass87”. “Como vai? Sou um analista de inteligência do Exército, alocado no leste de Bagdá, com dispensa pendente por ‘desordem de ajuste’... Tenho certeza de que você está bastante ocupado... [mas] se você tivesse acesso inédito a redes confidenciais 14 horas por dia, sete dias na semana, por mais de oito meses, o que faria?”

Lamo notificou as autoridades e, durante vários dias, registrou sorrateiramente esses chats. Manning, acreditando que estava falando confidencialmente, abriu o coração. Explicou o processo de envio de arquivos para o WikiLeaks e disse que tinha conversado com Assange várias vezes. Falou profundamente sobre a falta de segurança na base e como era fácil roubar informações.

Mais tarde, Lamo diria que temia que o vazamento de Manning colocasse vidas norte-americanas em perigo. “Brad detalhava seu esforço desesperado para salvar o mundo de si mesmo”, afirma Lamo. Em 25 de maio, Lamo se encontrou com agentes do governo em um Starbucks perto da casa dele em Carmichael, Califórnia, e entregou os registros de seus chats, dando aos investigadores o ponto crucial das provas contra Manning. Dois dias depois, uma semana após ter iniciado contato com Lamo, Manning foi abordado por agentes do comando de investigação criminal do Exército enquanto trabalhava na sala de suprimentos da base Hammer e levado para uma sala de reunião, onde recebeu um papel explicando seus direitos legais. Depois de um breve depoimento a um magistrado do Exército em Bagdá, foi levado para a prisão do Exército norte-americano, aguardando julgamento. A agonia da carreira militar de Manning chegava ao fim, mas a verdadeira tortura ainda estava por vir.

Em 25 de julho de 2010, dois meses após ser preso, o tamanho das ambições de Manning de expor o lado obscuro da conduta norte-americana em guerras ficou aparente quando o WikiLeaks publicou o “Diário da Guerra Afegã”. Manning descreveu o arquivo de seis anos de comunicados secretos militares como “um dos documentos mais significativos de nosso tempo, removendo a névoa da guerra e revelando a verdadeira natureza da guerra assimétrica do século 21”.

O The New York Times publicou a matéria no dia seguinte, mostrando os registros como uma imagem sombria da guerra afegã, “em muitos aspectos mais sinistra do que o retrato oficial”. Cinco dias depois, Manning foi retirado de sua gaiola no Camp Arifjan e levado para um voo comercial fretado com destino aos Estados Unidos. O prisioneiro militar mais valioso dos Estados Unidos na história recente foi encarcerado na brigada da Marinha em Quantico, Virgínia, onde pagaria por seus pecados.


Garantir que nada acontecesse a Bradley Manning se tornou uma obsessão para os oficiais de Quantico, notavelmente para o tenente-general George J. Flynn, que comandava todas as operações na base direto de seu escritório no Pentágono. “Seria bom se vocês impingissem em todos os que entram em contato com o soldado Manning a absoluta necessidade de vigiá-lo de perto”, escreveu a oficiais da base. “A vida dele desmoronou completamente, o que o torna um forte candidato (do meu ponto de vista) ao suicídio.”

O Exército não usa o termo “confinamento solitário”, preferindo “segregação administrativa” para descrever a forma de isolamento que Manning, por ser considerado em risco de suicídio, enfrentou. Em Quantico, foi levado para uma cela de 1,8 m por 2,5 m sem janela ou luz natural e passava, no mínimo, 23 horas por dia nessa área minúscula. Embora os regulamentos declarem que qualquer disciplina ministrada deva ser “com base corretiva em vez de punitiva”, Manning passava o tempo em que ficava acordado, das 5 da manhã às 22h, forçado a se sentar na beira da cama, com as costas retas, no que, depois de muitas horas, poderia ser visto como postura de estresse. Não podia deitar nem encostar as costas na parede. Seus óculos, sem os quais não conseguia enxergar, foram confiscados. A brigada acabou os devolvendo, mas foram seu único acessório: Manning não podia usar itens de toalete nem qualquer outra posse – até mesmo papel e caneta eram usados apenas uma hora por dia para escrever cartas. Embora pudesse ler, só tinha permissão para um livro ou revista por vez – nunca um jornal – e, se afastava o livro para descansar os olhos ou fosse visto não “lendo ativamente”, ele era retirado. Havia diversos guardas encarregados do que chamavam de “Vigília do Manning” e cujas instruções eram ficar de olho nele a cada cinco minutos, 24 horas por dia.

Em Quantico, esses abusos eram considerados parte da “prevenção ao suicídio”. Para garantir que não se ferisse, Manning não tinha lençóis nem travesseiro, e devia ceder suas roupas à noite. Era forçado a dormir de barriga para cima, com a cabeça voltada para a cabine de observação, diretamente na mira de uma lâmpada fluorescente – se mudasse de posição ou tentasse dormir de lado, um guarda o corrigia. Seus braços tinham de ficar sobre o “cobertor de suicídio” à prova de rasgos. Se eles inadvertidamente fossem para baixo do cobertor quando Manning dormia, os guardas o acordavam.

Logo depois de chegar a Quantico, Manning começou a se encontrar com o doutor William Hocter, psiquiatra da base, que recomendou sua remoção da vigília antissuicídio depois de uma semana. Os regulamentos da Marinha afirmam especificamente que, assim que um psiquiatra considera que um prisioneiro não está mais em risco, este deverá ser removido da vigília. Em Quantico, no entanto, o militar a cargo da brigada, o oficial de prisão James Averhart, escolheu ignorar essa diretriz, explicando, mais tarde, que, em sua opinião, a palavra “deverá” não significava “agora mesmo”. Averhart esperou quase uma semana para acatar a recomendação de Hocter. Naquele agosto, tirou Manning da vigília antissuicídio e o colocou em uma de “prevenção de ferimento” (POI – Prevention of Injury), um status que pode ser imposto arbitrariamente por oficiais sem anuência de um psiquiatra. Apesar das recomendações contínuas do médico para que fosse removido dali, Manning permaneceu em POI nos nove meses seguintes.

O rebaixamento para POI – ou status de risco leve de suicídio – deu a Manning alguns privilégios a mais. Agora, tinha short, camiseta e chinelo para usar durante o dia (embora ainda precisasse entregar tudo, menos a cueca, à noite). Fora isso, o tratamento era basicamente o mesmo: as refeições eram feitas na cela, em uma bandeja de plástico, com colher de metal. Exercícios na cela, mesmo agachamentos ou flexões, eram proibidos, pelo medo de que se ferisse. Quando tomava banho, um guarda ficava do lado de fora. Ao usar o banheiro, totalmente à vista dos guardas, tinha de pedir o papel higiênico do jeito formal da Marinha: “O cabo Bradley Manning solicita papel higiênico!”

Pelos padrões extremos definidos pela Guerra ao Terror, Bradley Manning não era tecnicamente “torturado”. O tratamento que ele recebeu possivelmente, e infelizmente, não era muito diferente do que diversos prisioneiros aguentam no sistema penal norte-americano, incluindo aqueles em detenção pré-julgamento. A medida real da tortura, entretanto, tem muito mais nuances. Manning estava, mesmo que não oficialmente, em confinamento solitário, o que talvez seja a forma mais devastadora de tortura, elaborada para quebrar o espírito e punir.

O relator especial da ONU sobre tortura, Juan Méndez, concluiu que o governo norte-americano era culpado de dar “tratamento cruel, desumano e degradante” a Bradley Manning. Em 20 de abril de 2011, depois de meses de pressão pública e repercussão negativa na imprensa, ele foi transferido para a Joint Regional Correctional Facility em Fort Leavenworth, no Kansas, onde, depois de uma longa entrevista com os consultores em saúde mental da base, foi colocado em custódia média. Após quase um ano de isolamento, ele serviria o restante da detenção pré-julgamento com presos com quem poderia conversar, alojado em uma cela de 7,5 metros quadrados, com uma grande janela por onde entrava luz natural, uma cama e uma privada. Recebeu colchão, lençóis e um travesseiro. Podia escrever cartas sempre que quisesse e recebeu de volta todos os itens pessoais e roupas.


A audiência de detenção pré-julgamento de Manning em dezembro durou quase três semanas. Em 8 de janeiro de 2013, a coronel Denise Lind, juíza militar responsável pelo caso, declarou que uma parte do tratamento em Quantico foi “excessiva” e deveria ser considerada punição ilegal pré-julgamento. Ela tirou de Manning menos de quatro meses de sua sentença eventual, mas não desconsiderou o caso como os advogados dele pediam. Esse decreto, embora oferecesse uma pequena vitória para a defesa, serviu para sustentar o argumento central do governo de que o que Manning aguentou em Quantico foi justificado devido ao objetivo muito mais importante de mantê-lo vivo para que pudesse ir a julgamento.

Em 3 de junho deste ano, Manning deve voltar ao tribunal da juíza Lind, onde, depois de diversos adiamentos, finalmente começarão os procedimentos da corte marcial. Aos 25 anos, ele terá passado mais de mil dias de detenção até lá. A defesa dele acredita que o simples período de tempo em que está preso viola a regra de julgamento rápido, um argumento que, por enquanto, não foi a lugar algum. A insistência da defesa de que a intenção idealista de Manning – sem contar o fato de que ele reteve documentos “realmente delicados”, vazando apenas os que, achava, não causariam dano – deve ser levada em consideração quanto à sua culpa também não deu em nada. A questão ainda mais ampla sobre se os documentos vazados deveriam ser considerados “confidenciais”, uma conversa que Lawrence Korb, ex-secretário assistente de Defesa, disse ser vital para os Estados Unidos, não será discutida no julgamento.

Em novembro passado, Manning ofereceu se declarar culpado em um subgrupo de acusações, aceitando efetivamente responsabilidade por ser a fonte dos documentos do WikiLeaks, embora não admita que ajudou o inimigo. A juíza Denise Lind informou ao governo sua responsabilidade de provar que Manning sabia, conclusivamente, que estava ajudando a Al Qaeda quando vazou os documentos. Sem tal prova, que muitos especialistas legais afirmam ser difícil de estabelecer, a acusação de auxílio ao inimigo provavelmente cairá.

As outras acusações contra Manning, no entanto, deverão se sustentar. O caso do governo está construído sobre cerca de 300 mil páginas de evidência forense: os registros de chat entre Manning e a entidade que se acredita ser Julian Assange – nos quais os dois discutem os procedimentos para fazer upload de materiais no WikiLeaks – podem ser particularmente danosos no que muitos acreditam ser uma campanha para indiciar Assange por espionagem.

Ainda este ano, a longa campanha do governo norte-americano contra Bradley Manning será concluída com um julgamento que provavelmente o mandará para a prisão por décadas, se não pelo restante de sua vida. Como todas as audiências já realizadas, o julgamento ocorrerá sob uma camada espessa de segredo, monitorado por censores militares, sem acesso público aos documentos do tribunal. Enquanto isso, em 18 de dezembro de 2011, os últimos 500 soldados norte-americanos saíram silenciosamente do Iraque, terminando quase nove anos de envolvimento militar.

No entanto, para Manning, a guerra, e as consequências dela, devem continuar. “Somos humanos... e estamos matando uns aos outros... e ninguém parecer ver isso”, escreveu a Lamo em um dos chats online que fizeram. “Isso me incomoda.” Então, citou o autor Elie Wiesel, com cuja crença de que o oposto do amor não é o ódio, mas sim a indiferença, ele se identificou. “A apatia é muito pior do que a participação ativa”, afirmou Manning. “Prefiro uma verdade dolorosa a qualquer fantasia feliz.”