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Deus É Essa Mulher

Com 60 anos de carreira fonográfica, Elza Soares lança um contundente álbum de inéditas sem se escorar no passado

Mauro Ferreira Publicado em 01/06/2018, às 11h24 - Atualizado às 11h33

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Elza Soares - Daryan Dornelles
Elza Soares - Daryan Dornelles

‘‘Deus é a mãe!” a frase é o último verso proferido por Elza Soares no incisivo discurso presente nas letras das 11 músicas de Deus É Mulher, 33º álbum dessa valente cantora carioca que completa 88 anos em junho. Tal afirmação soa como “caco” inserido por Elza na música “Deus Há de Ser” (Pedro Luís) no disco produzido por Guilherme Kastrup e pela mesma turma de músicos que deu forma ao celebrado álbum anterior da artista, A Mulher do Fim do Mundo (2015). Para Elza, Deus está mesmo personificado na figura da mãe, Rosária, dura na queda com a filha que pariu em junho de 1930. “Tenho uma foto com minha mãe na cabeceira da cama. Que mulher guerreira ela foi! O vigor que eu tenho foi minha mãe que me passou”, ressalta a filha devota.

Leia a íntegra da entrevista com a cantora publicada na edição 130, maio/2017, da Rolling Stone Brasil.

Ela recorreu a esse vigor para percorrer o mundo durante dois anos e meio com a turnê do álbum de 2015, encerrada com apresentação ao ar livre na Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro, em 21 de abril. “A gente chegou no limite! Havia a necessidade de lançar um novo trabalho”, reconhece a cantora, que já engata outra turnê (com o show Deus É Mulher), programada para entrar em cena em 31 de maio em São Paulo.

O novo trabalho chega pautado pela energia feminina, fio condutor de músicas como “Banho”, composta por Tulipa Ruiz para Elza e gravada pela cantora com as vozes e percussões do Ilú Obá de Min, bloco afro-paulistano formado somente por mulheres.

Negra que sofreu violências físicas e psicológicas na caminhada do morro para o asfalto, Elza celebra o quanto foi feito pela liberdade feminina, mas sabe o quanto ainda precisa ser batalhado pela igualdade entre os sexos. “A mulher já nasce sangrando. Ainda tem que trabalhar muito pelo respeito à mulher. Mas vamos à luta”, conclama, satisfeita de ter presenciado em Buenos Aires passeata contra a impunidade do assassinato da vereadora Marielle Franco, executada em março. “Eu me vi representada ali”, ressalta.

Em Deus é Mulher, a cantora dá voz ao que se cala, como ela mesma anuncia ao abrir o disco a capela com os versos de “O Que Não se Cala”, música de Douglas Germano, o mesmo compositor de “Credo”, samba com peso roqueiro que não atenua a força de dizeres como “Minha fé quem faz sou eu”. Elza segue a própria religião. “Minha filosofia é espírita. Jesus é um espírito. Sem o espírito, o corpo não funciona”, pondera.

Formatado em esquema noise, cheio de ruídos, o disco prima pela contundência das letras, qualidade determinante na seleção do repertório. “Tinha muita música. O Kastrup trouxe cerca de 50. Escolhi as que me permitiam falar forte. Eu fico muito presa às letras, ao que estou querendo dizer”, conta Elza, que acerta o passo do frevo, insinuante e sexual, em “Eu Quero Comer Você”, faixa de Romulo Fróes e Alice Coutinho (também compositores de “Língua Solta”, outra canção do álbum).

Por mais que alguns músicos e compositores sejam os mesmos do álbum de 2015, Deus É Mulher é caracterizado como outro passo na trajetória da cantora. “Não é uma continuação com a mesma proposta. Não quis fazer A Mulher do Fim do Mundo 2. Se eu tivesse feito isso, aí eu não sentiria que estava sendo a Elza Soares”, argumenta. Ser a Elza Soares significa dar voz a um samba-punk, como “Exu nas Escolas”, composto por Kiko Dinucci e aditivado na gravação com o rap do paulistano Edgar. A letra versa sobre a falência moral e social que compromete a educação das crianças do Brasil. “Olha que pedrada!”, sublinha a cantora, orgulhosa por dar voz aos sem-voz. Ser a Elza Soares também é saber se alimentar do ruído cotidiano que entra pela janela do prédio em que a cantora mora, de frente para a praia de Copacabana. “Esse barulho é bom para mim. Quero ficar dentro desse ninho. Eu vivo dentro de uma gaiola. Sou um canário. E vivo literalmente para cantar. Por isso, eu me cuido muito. Não fumo nem bebo”, explica ela, que ainda anda com dificuldade por causa de uma queda que lesionou a coluna da artista há cerca de dez anos.

Curiosamente, Copacabana, o bairro carioca, foi cantado por Elza há 60 anos, no primeiro raríssimo disco da artista. Foi em 1958 que ela entrou em estúdio pela primeira vez para gravar um 78 rotações com dois sambas do amigo e incentivador Moreira da Silva, “Brotinho de Copacabana” e “Pra Que É Que Pobre Quer Dinheiro?” O disco foi lançado em 1959 pelo pequeno selo Rony, mas foi somente depois, em dezembro daquele mesmo ano, que o Brasil conheceu a voz de Elza Soares com a gravação emblemática do samba “Se Acaso Você Chegasse”.

São 60 anos de lutas e discos. “Quantas águas rolaram de lá pra cá! Quantas pedras eu tive que chutar de lá pra cá com os pés ferindo, sangrando. Se eu parar para pensar, eu fico louca”, rememora a cantora. Contudo, como o tempo, ela não para. E, como sentenciou o título da biografia lançada em 1997, Elza da Conceição Soares canta para não enlouquecer.