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Entrevista RS - Tom Zé

Aos 75, o maior “vanguardista-retardista” da MPB continua se reinventando, e, ao mesmo tempo, investigando seu próprio passado

Antônio do Amaral Rocha Publicado em 10/08/2012, às 12h30 - Atualizado às 12h35

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Ilustração - Índio San
Ilustração - Índio San

Músico popular de formação erudita, cofundador do tropicalismo, “morto” pela mídia como vítima das conveniências mercadológicas e ressuscitado pelo público a partir da redescoberta de David Byrne, Tom Zé diz hoje estar em paz. Com o público, com os amigos e com sua música. Inquieto e ininterruptamente produtivo, ele continua criando teorizações surpreendentes para se explicar ou para confundir ainda mais. Como quando fala sobre o 23º disco da carreira, o recém-lançado Tropicália Lixo Lógico: o movimento que ele ajudou a formatar e que também dá nome ao álbum seria produto do tal “lixo lógico”, acumulado no hipotálamo – ou hipotalo, como ele prefere.

Em uma manhã ensolarada e fria, Antônio José Santana Martins, autodenominado um “vanguardista-retardista”, abriu o estúdio particular em um prédio no bairro de Perdizes, em São Paulo. Depois da audição do mais novo CD, o assunto continua no 10º andar do mesmo prédio, no apartamento abarrotado de livros, discos e objetos onde mora com Neusa, esposa dele há mais de quatro décadas. Aos 75 anos e exibindo disposição, Tom Zé liga o aquecedor, oferece um capuccino, esfrega as mãos e se prepara para a longa investigação de seu passado que se desenrolaria pelas horas seguintes.

Como foi a sua infância em Irará, na Bahia?

As circunstâncias da região criaram para a gente uma grande armadilha intelectual. Era uma Idade Média. As relações humanas, a fé, a relação com Deus, as festas, as danças e as cantigas de folclore... depois, as relações de trabalho, de família, de amor, de casamento e as brincadeiras eram muito diferentes das de hoje. Isso tudo era absolutamente medieval.

A sua família tinha posses?

Tinha, senão eu não teria ido para o ginásio. Quer dizer, rico no Nordeste era remediado. Meu pai, por exemplo, comprava um queijo no Natal, e esse queijo a gente comia no Natal, Ano-Novo e no Dia de Reis. Acabava e, então, queijo só no ano seguinte. Era assim, a vida era muito pobre, não tinha esse conforto, essa alimentação que hoje engorda tantos brasileiros.

Como você entrou em contato com os livros?

O meu avô tinha mandado os filhos para o ginásio, e ninguém mandava filhos para o ginásio em Salvador. E até as moças. Moças se estudassem era uma loucura. Diziam que iam perder a cabeça da moça. E depois ele botou até na Universidade! Então, ele mandava livros. A Caçada de Pedrinho, do [Monteiro] Lobato foi o primeiro livro. Minha mãe lia pra gente. Mas, quando fiz 13 anos, eu tive um choque de livros, porque eu fui obrigado a estudar nas férias todas, eu estava de segunda chamada. Só que antes de chegarem os livros teve outra coisa. Na casa do meu avô, os tios comunistas, os tios universitários, o vaqueiro, todos sentados na mesa, nas conversas. Todos davam a sua versão sobre esse “vale de lágrimas” em palavras, a palavra era a moeda mais forte que circulava no Nordeste. A palavra falada dando a interpretação da vida. E eles falando de livro, de capitalismo, de comunismo, e eu criança ouvindo e apaixonado por aquilo, com febre. Eu ia dormir embriagado com aquela coisa.

Falavam de qual livro?

Os Sertões, de Euclides da Cunha, era a toda hora lembrado. Quando eu tinha 13 anos, não tinha mais gibi pra ler, e eu tinha que estudar nas férias. Um dia eu vi Os Sertões num cantinho, num volume só, grandão. “Puta que pariu, aquilo deve ser uma porra”, pensava, mas como não tinha nada pra fazer, peguei. Bem, daí eu fui ficando emocionado, passei a ler com entusiasmo e no terceiro dia estava tremendo de emoção. No quarto dia eu chorava, porque o livro é lindo. Só que naquele tempo era feio chorar, só chorava quem estava louco. Se ouvia minha mãe chegando, me enxugava para que ela não me achasse maluco. E aí, já com 20, botaram uma biblioteca sensacional na casa do meu avô. Tinha [Franz] Kafka, Thomas Mann, Dante [Alighieri]. Kafka quase que me mata, porque aqueles livros são pra matar! Ainda mais eu que sou assombrado! O meu pecado foi ler O Processo, esse me matou.


E o momento em que você conheceu a música, fez vestibular e passou em primeiro lugar?

Foi um absurdo, porque eu não tive educação musical na infância. Nessa época eu estava participando do CPC (Centro Popular de Cultura), e quando eu fui fazer a música da segunda peça de teatro, A Chegança, o pessoal falou que eu estava me repetindo. Eu falei: “Vocês estão enganados, no folclore o tempo é redondo”. E me falaram em estudar na universidade, na Escola de Música. Dois anos depois eu estava estudando, aprendendo teoria, e eu aprendia feito uma fera. Em solfejo eu era muito ruim, não sei como passei em primeiro lugar.

E sua formação erudita foi na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia.

Uma das melhores escolas do mundo naquela época. Mas, ao mesmo tempo, ficava parecendo que eu iria ter alguma vantagem, por estudar, ao fazer música junto com Caetano [Veloso] e [Gilberto] Gil. Sempre dizia: “Queridos, o que vocês veem na Bahia é o mesmo que eu estudo lá. Tanto faz estudarem música ou não, o que importa é a grade de pensamentos que ganha novas capacidades de concepção”.

Você já fazia parte da turma de Caetano e Gil?

Entrei no curso universitário em 1964, mas desde 1961 já conhecia Caetano e a turma toda. Tocamos juntos nos shows Nós, por Exemplo e Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova, em 1964.

Na música brasileira atual, os setentões estão se aproximando dos jovens. E você também começou a fazer isso, com Mallu, Emicida, Rodrigo Amarante e outros.

Eu não comecei nem faço isso. Eu presto atenção e ouço. Um exemplo só pra lhe mostrar a diferença: um dia o secretário de Cultura da Paraíba [o também músico Chico César] estava organizando um show e disse que “forró matéria plástica” ele não pagava com dinheiro do Estado. Eu pensei: ‘Porra, a gente tem que ouvir tudo!’ O que é forró matéria plástica? Fui atrás, ouvi e achei algumas coisas interessantes. Esse é o meu tipo de aproximação. Quando a Natura topou patrocinar esse novo Tropicália Lixo Lógico, a proposta da produtora Milena Machado era que eu fizesse com jovens. Aceitei e foi uma experiência maravilhosa. Não é que eu tenha procurado. Por acaso, veio parar uma constelação na minha mão.

O tropicalismo é objeto de estudo, de teses universitárias, e os principais criadores, Caetano e Gil, não falam sobre o tema. Parece que o legado do movimento ficou com você.

Eu fazia um tipo de música. Um dia encontrei Gil e Caetano, que me disseram: “Você fica conosco”, e me deram o telhado deles. A minha música não mudou, eu não sabia fazer o que eles faziam nem tentei fazer, e só fui fazer agora uma imitação, só vim plagiar eles agora. Enquanto eles faziam uma música de bossa nova da mais alta qualidade, eu fazia uma música rústica. Eles fizeram, saíram e entraram em outra coisa e eu continuo fazendo a mesma coisa que sempre fiz, e não sei o que é tropicalismo e o que não é. Uma coisa que talvez responda: minha fonte não é o futuro, é o passado. Em tudo o que eu fiz até agora, foi o passado que me orientou. Não estou falando do meu passado, foi a investigação do passado que me fez fazer Estudando o Samba (1976), Estudando o Pagode (2005) e Estudando a Bossa (2008), então não sou um vanguardista, eu sou um “retardista”.

E o novo Tropicália Lixo Lógico poderia se chamar Estudando o Tropicalismo?

Não poderia, mas neste disco eu decifrei melhor as coisas que aconteceram com eles, pelo menos tentei. Mas tem outra coisa que quero lhe dizer, é que eu mudo sempre. Muitas coisas que eu lhe contei eu não quero mais contar. Muitas coisas e opiniões que você sabe sobre mim eu já modifiquei. Então, eu sou falso, é sério. No próximo disco eu não sei o que eu vou fazer. Como também eu não sabia fazer tropicalismo do jeito que eles fazem. Eu tentei imitá-los nestas músicas, eu plagiei. É claro, uma pessoa que sabe perseguir, consegue imitar. Fazer a primeira vez é que é a arte. Eles fizeram, eles que são os artistas.

Existe uma rixa entre você, Caetano e Gil?

Nossos encontros são sempre deliciosos. Essas pessoas são um encanto, um prazer de ver, parece que tem um substrato daquela nossa infância que eles transformaram em tantas coisas. Tem uma admiração. Discordância pode ter, mas eu estou numa fase em que digo: “Quanto tenho a agradecer a Deus por ter me feito nascer junto a essas pessoas tão superiores, tão grandes, tão geniais, que levaram o Brasil da Idade Média para a segunda revolução industrial”. Quanto este país todo deve a eles! Agora, o que eu penso é isso. O quanto nós devemos a esses caras! Quando eu ouço “você precisa saber da piscina, da margarina”... quantas coisas apareceram pelo que tinha de subentendido na ideia dessa música! O que a gente tem que agradecer a eles não vai acabar nunca.


No Brasil, poucos artistas carregam a aura da invenção. Você é considerado um deles.

Essa coisa é de nascença. Eu pensava que as minhas músicas fossem normais, mas eram tão anormais que nem eram chamadas de músicas. Não é uma decisão de dizer: isso é invenção, isso não é invenção. Mas não quero me gabar, eu fazia coisas que não eram comuns na música popular. Fazia umas modulações em quarta e nem sabia o que era uma série de quartas. Vou te mostrar ao violão pra você ter a sensação... [pega o violão e canta um trecho de “Moreninha” ]. É de 1953, Gil gravou essa música [no disco Louvação, de 1967]. Isso que era minha invenção. E aí eu entrei no telhado do tropicalismo, até que acabou e eu fiquei numa fase muito ruim, para só sair dela com Estudando o Samba. Foi a América do Norte que me salvou, junto com a sua revista lá. Quando apareceu o Estudando o Samba, era tão estranho o disco, que a Rolling Stone norte-americana escreveu: “O que é isso? Gilberto Gil e Philip Glass de uma vez só?”

E os instrumentos inusitados que você usa?

Quando, em 1985, Rogério Duprat traduziu De Segunda a um Ano, de John Cage, logo no começo existia uma frase de Buckminster Fuller, o arquiteto do prédio sem alicerces: “Não é tempo da posse, é tempo do uso”. Isso me tirou do chão durante dois ou três anos, e depois de várias especulações acabei fazendo uma espécie de sampler que foi anterior ao sampler eletrônico da indústria de instrumentos e produz um efeito completamente diferente do sampler convencional. Nesse afã, eu comecei a desenvolver instrumentos, como o enceroscópio e o buzinório.

Estar com 75 anos é ter uma vida com pequenas mortes que vão acontecendo diariamente, como a morte da libido, a morte dos movimentos... Como você encara isso?

O que me salva, primeiro, é que tenho uma profissão que não tem aposentadoria; segundo, é o fato de Deus me prover de curiosidade e interesse, ou então me prover de satisfação e humilhações. Ainda estou lutando para salvar aquela criança que dentro do ambiente lá de casa estava destinada ao crime. Era o que diziam na minha cara o tempo todo: “Você vai ser delinquente”. Ou o complexo de inferioridade, ou tudo isso junto. O fato é que Deus me dá agora um grande interesse em certas coisas que me movimentam. O fato de eu ser casado com a mulher com a qual sou casado, ela é a intelectual de casa, eu sou o analfabeto. Agora, na velhice, agradeço a Deus por me prover de interesse e vontade de trabalhar. É muito bom isso: vontade de anular as minhas humilhações.

E que humilhações seriam essas?

Certos medos. Eu no princípio tive asma, hoje tenho humilhação. Essa é a tradução atual de asma. Com a asma eu conquistei minha mãe, ela falava de mim enquanto eu tossia. Depois passei a ter gripe de 15 em 15 dias e compensava todas as minhas dificuldades na rua. Então passei para um plano um pouco maior: largava o clube, ia para a casa do meu avô e passava meses lá dentro, lendo, e hoje eu faço música. Tudo era para correr das humilhações, da dificuldade de não conseguir namorada e do insucesso no ambiente social.

Você tinha dificuldades para arrumar namorada? Se achava feio?

Era um acanhamento e por causa disso eu ficava em casa lendo. Naquele tempo, isso se chamava complexo de inferioridade. Na escola de música, em 1965, quando eu fui presidente do diretório, aí eu me soltei, tive namoradas, foi uma fase linda da minha vida. Na escola eu passei a ser muito considerado, porque comecei a mostrar algumas capacidades.

Você teve uma formação no catolicismo?

Tive uma formação católica, mas, na verdade, o catolicismo era – e é – só medo. Depois minha família foi espírita nos anos 50, um negócio pretensioso chamado espiritismo científico de Allan Kardec. Minha mãe me obrigava a ir à igreja de manhã, às 10h no centro espírita e depois ainda tinha que ir à igreja protestante.

Então fizeram você seguir três religiões ao mesmo tempo? E agora?

Atualmente acredito que você morre e sua energia vai ser reaproveitada. Não é outra vida. Quando uma pessoa morre, o ambiente deve ficar cheio da energia que escapou do tempo que aquilo se chamava um eu. Então, aquela energia vai procurar utilidade, da mesma maneira que uma poeira cósmica vai procurar um novo centro de gravidade. Na natureza nada se perde, tudo se transforma, então eu volto para Lavoisier. A minha religião principal é Lavoisier.


Lembrando da época de Stalin, que mandou apagar Trotsky das fotografias: dizem que você foi “apagado” do tropicalismo. Concorda com isso, a partir das revisões que você faz?

Deixa eu ver se eu preciso concordar ou não. Vou ser “convenientista”, vamos inventar essa palavra. [Longo silêncio] Não, eu não quero mais falar disso, não quero mais falar no assunto.

Mas houve uma fase da sua carreira que podemos chamar de renascimento.

Sim, foi quando David Byrne me levou para os Estados Unidos em 1990 com o disco Estudando o Samba.

Você não estava conseguindo trabalhar?

Mantive a minha profissão porque a classe universitária do Estado e da cidade de São Paulo me mantinha trabalhando em shows. Saí dos meios de comunicação. Estava fazendo o que não circulava nas mídias. E então, quando o David Byrne achou meu disco por acaso e lançou, comecei a existir nos Estados Unidos. E o Brasil, como sempre gosta de respeitar o que os Estados Unidos decidem, resolveu me recuperar. Estou muito contente de poder ter continuado a trabalhar, pois já ia para o posto de gasolina.

Isso é modo de dizer? Você ia ser frentista?

Não, não, eu ia mesmo pra Irará, já estava contratado. O meu sobrinho, o Deguinha, até hoje tem um posto lá. Eu ia ser gerente, mas no interior o gerente faz tudo.

E a história de cantar em uma festa do PMDB?

Quando, em 1986, a ditadura já estava relaxando, o PMDB deu uma festa, e como não tinha ninguém dando sopa por aqui, me chamaram e me pagaram mil cruzeiros. Naquele tempo eu trabalhava assim mesmo, quaisquer mil cruzeiros eu ia cantar. Lá, cantei duas canções e, de repente, mandaram tirar o microfone da minha mão. Na semana seguinte, fui cantar em Bauru, e os estudantes me disseram que o delegado era barra-pesada. Fui mostrando músicas pra eles e eles me diziam: “Essa aí não pode, essa também não”. Eu falei pra gente pedir para o delegado ouvir e ele dizer o que achava. Cantei essas músicas conhecidas. O delegado riu e disse que podia cantar tudo. Cantei tudo o que o PMDB tinha censurado. Veja quem ia governar a gente! Foi a coisa mais impressionante que vi na minha vida de artista.