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Homem da Renascença

Há 100 anos nascia Vinicius de Moraes, artista que viveu como poucos, virou mito e continua a influenciar todas as áreas da cultura brasileira

Mauro Ferreira Publicado em 18/10/2013, às 07h52 - Atualizado em 31/10/2013, às 12h45

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<b>EM TODOS OS CANTOS</b>
Na música, literatura e em diversos campos de atuação, Vinicius deixou uma marca indelével - Pedro de Moraes
<b>EM TODOS OS CANTOS</b> Na música, literatura e em diversos campos de atuação, Vinicius deixou uma marca indelével - Pedro de Moraes

"Vinicius não morreu. Vinicius gastou a vida." Proferida no velório de Vinícius de Moraes, a frase de Lygia de Moraes, irmã do poeta e compositor então recém-falecido na manhã de 9 de julho de 1980, no Rio de Janeiro, dá bem a dimensão da vida plural de Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes. Diplomata que atuou como crítico de cinema ao mesmo tempo em que se transformava em um dos grandes poetas do Brasil e no letrista maior da música brasileira, parceiro de Antonio Carlos Jobim em clássicos mundiais como “Garota de Ipanema” (1962) e “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1959), o Poetinha – epíteto que disfarçava a grandeza de sua atuação na cena cultural do Brasil – pareceu ter vivido bem mais do que seus 67 anos incompletos. Talvez porque, como sentenciara o amigo e poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, Vinicius foi o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. E parece ter sido assim desde que ele veio ao mundo há exatos 100 anos, em uma casa do Jardim Botânico, bairro esverdeado do Rio de Janeiro, na madrugada chuvosa de 19 de outubro de 1913.

Galeria - Veja fotos de Vinicius de Moraes.

Em entrevista concedida ao jornalista Zuenir Ventura em 1980, por ocasião da morte do amigo, Drummond admitiu que invejava o conceito que Vinicius teve da vida, com independência de espírito. O cantor e compositor mineiro João Bosco, que se tornou parceiro improvável de Vinicius em 1967, testemunhou a liberdade com que o poeta “gastava” a vida. Foi Vinicius quem fez Bosco, então estudante de engenharia e músico amador, se decidir a trilhar o caminho profissional da música: de passagem por Ouro Preto (MG) em 1967, Vinicius não somente atendeu o chamado noturno do jovem Bosco para conhecê-lo, abrindo a porta da pousada onde estava hospedado, como naquela mesma noite viraram parceiros. Juntos, fizeram sambas que nunca ganharam registro em disco, mas que deram a Bosco a certeza de que a música era o único caminho possível a ser seguido.

No Universo do Poetinha - CDs, livros e lançamentos digitais marcam os 100 anos do mito.

“A cada vez que o tempo anda, a ausência de Vinicius é mais sentida. Ele fica ainda mais saudoso, se faz mais necessário”, diz Bosco. Ele ainda hoje se lembra, com incredulidade, das madrugadas em que subia as ruas de Ouro Preto com Vinicius, catando restos de cigarro pelo chão, única forma de saciar o vício dos dois fumantes inveterados na alta noite mineira, hora em que não havia onde comprar cigarro. “Vinicius era generoso. Quando me recebeu, eu estava acostumado a tomar conhaques baratos, e ele me serviu um uísque de boa qualidade. E ele fazia isso com todo mundo, não era só comigo. A gente era duro e o Vinicius levava a gente para boates caras e pagava a conta. Eu era apenas um jovem estudante com um violão na mão e ele já era o Vinicius de Moraes.”

Como enfatiza João Bosco, ser Vinicius de Moraes por volta de 1967 e 1968 já era muita coisa. Quarenta anos antes, em 1928, Vinicius havia iniciado, ao compor o foxtrot “Loura ou Morena” com Haroldo Tapajós, uma carreira de compositor que mudaria os rumos da maneira de fazer letra na música popular brasileira. Tal revolução não foi sentida de imediato quando a música ganhou registro, em julho de 1932, em disco de 78 rotações por minuto gravado pelos Irmãos Tapajós – o duo carioca formado por Haroldo com o irmão Paulo Tapajós – um ano antes de Vinicius se formar em direito e de ter editado seu primeiro livro, O Caminho para a Distância (1933). Até porque, o próprio Vinicius ainda maturava um estilo. Mas ninguém ficou imune aos avanços estéticos promovidos pela parceria dele com Tom Jobim, estabelecida em 1956 por iniciativa do poeta, que procurou o músico para compor os temas do musical Orfeu da Conceição. Ao receber o convite na mesa de um bar de Ipanema, Jobim perguntou se havia um dinheirinho envolvido. Diante da resposta positiva, iniciou-se ali a parceria mais fundamental da história da nossa música.

Dois anos depois, em 1958, a revolucionária gravação de “Chega de Saudade” por João Gilberto, feita em julho e lançada em agosto daquele ano, também abalou as estruturas da música mundial. Foi principalmente pela batida diferente do violão do obsessivo João, mas também pelo tom coloquial e ensolarado dos versos de Vinicius. Estava cristalizada a estética da moderna música brasileira, que viria a ser rotulada de bossa nova. Com letras românticas e leves, Vinicius trilhava um caminho de modernidade desbravado por antecessores como Noel Rosa e Dorival Caymmi, mas consolidado pelo poeta criador de versos repletos de musicalidade.

A longa estrada percorrida por Vinicius antes do encontro revolucionário com Jobim tinha tido várias bifurcações. Ao mesmo tempo em que foi se firmando como poeta, Vinicius atuou como crítico de cinema, avaliando filmes no jornal A Manhã a partir de 1941, atividade que expandiu para outras publicações em 1945. Em 1946, ele foi para Los Angeles atuar como vice-cônsul do Brasil, no que seria sua primeira função como diplomata. Voltou ao Brasil somente em 1950. Nos dourados anos 50, o letrista começou a ocupar progressivamente o lugar do poeta. Foi quando Vinicius abriu parceria com o compositor e cronista pernambucano Antonio Maria, com quem criou Quando Tu Passas por Mim (1953), tema de lirismo romântico lançado na voz da cantora carioca Aracy de Almeida. Posteriormente, ele também se aventurou pelo universo da música erudita, compondo série de canções de câmara, em 1955, em Paris, em parceria com o maestro Claudio Santoro.


Projetado na década de 50 como arquiteto de modernas melodias, Tom Jobim foi o principal parceiro de Vinicius de Moraes no período de 1956 a 1962, mas não reinou soberano. Com todo o peso característico do universo do samba-canção, Vinicius compôs a letra de “Bom dia, Tristeza” (1957) em Paris e a enviou numa carta para Aracy de Almeida, que reencaminhou os versos para Adoniran Barbosa, impelido pela cantora a fazer a melodia. Nascia assim, na ponte Rio-Paris, uma improvável parceria que se desviou do estilo italianado que caracterizou a obra do compositor paulista.

A partir de 1962, Vinicius iniciou com o violonista fluminense Baden Powell a composição de série de afro-sambas em uma produção frenética que teve força suficiente para fundar um subgênero (a rigor, criado em 1961 pelo mesmo Vinicius com a composição de “Água de Beber” em parceria com Tom Jobim). Tudo era feito com uma simplicidade genial, que fazia com que a música de Vinicius quase sempre tivesse obtido adesão popular, a exemplo da parceria com Toquinho, dominante na vida do poeta e nas paradas de sucesso dos anos 70.

Com livre trânsito nos círculos musicais e literários do mundo, Vinicius de Moraes exalava cultura com a mesma intensidade com que sorvia o inseparável uísque. Foi amigo de notórios como o poeta chileno Pablo Neruda, estudou cinema com Orson Welles em Los Angeles em 1947 e desfrutou a confiança do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto sem jamais erguer o nariz. “Vinicius foi o mais generoso dos poetas, dono de um saber enorme, de uma cultura gigantesca, que ele disfarçava pra não humilhar ninguém”, ressalta Joyce Moreno, cantora e compositora carioca apadrinhada por Vinicius nos anos 60 e a quem ela dedicou em 1988 o álbum Vinicius de Moraes – Negro Demais no Coração.

“Vinicius fez uma revolução, mudou a maneira de escrever letras e, como Miles Davis, fez uma revolução mais de uma vez”, sintetiza Adriana Calcanhotto. Para festejar o centenário do poeta revolucionário, a cantora, compositora e escritora gaúcha produziu com Dé Palmeira uma nova versão da Arca de Noé, projeto infantil que fechou a discografia oficial de Vinicius em 1980 e que, 33 anos depois, é repaginado com arranjos contemporâneos em gravações feitas por nomes como Caetano Veloso e Marisa Monte. Produtora do projeto idealizado por Susana de Moraes (uma das quatro filhas de Vinicius), Adriana sempre foi seduzida pelo que chama de “alma de poeta, vagabunda, solta” que detectava em Vinicius. “Ele escreveu e viveu poesia, e como ouvinte eu percebia essa emanação de poesia que ele era. Ou, melhor, que ele ainda é. Conheci Vinicius ouvindo rádio e, quando ouvia aquela voz, sentia uma força, uma autoridade que me impactou muito. Era a poesia, que pode estar nos poemas, mas não só, e a vida de Vinicius é a maior prova disso.”

Regada a bebida e mulheres, a vida de Vinicius de Moraes foi tão intensa que o mito alimentado em torno da figura do poeta é quase tão grande quanto sua obra. Contudo, o apego à família também foi profundo. “Ele nunca me levou ao dentista, mas teve muita conversa e muito exemplo. E o que imprime, o que vale mesmo, é o exemplo”, diz Susana, a filha mais velha, nascida em 1940, fruto da união de Vinicius com a primeira de suas nove mulheres oficiais, Beatriz Azevedo de Mello. “Vinicius era muito tolerante, aberto às diversidades. Às vezes, eu o via dando atenção a pessoas que eu achava chatíssimas. E ele conseguia extrair coisas interessantes dessas pessoas.”


“Nunca vi um pai ausente tão presente”, faz coro Georgiana de Moraes, a segunda das quatro filhas, nascida em 1953, do casamento de Vinicius com Lila Maria Esquerdo e Bôscoli. “A cada ano que passa, o Brasil fala mais do Vinicius. Ele está muito perto da gente.” Georgiana atua lado a lado com a meia-irmã, Maria de Moraes, – filha temporã, nascida em 1970 da união de Vinicius com a atriz baiana Gesse Gessy –, na empresa carioca VM Cultural, criada para que “o Brasil continue falando de Vinicius”. Maria ressalta a fama de trabalhador incansável do pai. “Vinicius ralava muito. E ele era rígido com a questão da verdade, da integridade. Tenho muito orgulho de meu pai ter sido uma pessoa nada preconceituosa. Foi um artista, mas foi também o nosso pai.”

Recorrente no imaginário nacional, a imagem do poeta bonachão, boêmio, sempre de bem com a vida, está em sintonia com o libertário estilo de vida adotado por Vinicius de Moraes. Contudo, o artista também tinha breves ataques de ira. A filha Maria presenciou um deles. Foi em 1978 quando ela, aos 8 anos, tentou entrar na extinta casa de shows Canecão (RJ) para assistir ao show que o pai fazia com Tom Jobim, Toquinho e a cantora Miúcha, mas foi impedida por um censor por ser menor de idade. “Foi uma das poucas vezes em que vi meu pai bravo. Ele disse: ‘Se minha filha não entrar, não tem show’”, lembra ela. Obviamente, a caçula de Vinicius de Moraes acabou entrando.

Toquinho, parceiro de sambas como “regra Três” e eterno companheiro de noitadas ao longo dos anos 70 (e que atualmente celebra os 100 anos do parceiro em um show ao lado de João Bosco), testemunhou também um momento em que Vinicius de Moraes normalmente tão aberto ao convívio humano, fechou o tempo. No caso, por confundir sonho e realidade.

“Vinicius nunca soube viver sem poesia. Na rapidez do cotidiano quase sempre não cabe poesia, mas ela o acompanhava o tempo inteiro. Para ele, tudo era natural. E quantas vezes eu fiz parte dessa poesia!”, Toquinho relembra. “Como na manhã em que tive que enfrentá-lo zangadíssimo em uma de nossas viagens: acordei e desci [no hotel] para o café. Ele já estava à mesa, fumando, sem levantar os olhos do jornal. Dei bom dia, tentei conversar, e ele não respondia: ‘Aconteceu alguma coisa?’, perguntei. Ele olhou-me furioso e disse: ‘Olha aqui, Toco. Se um dia você ousar alguma coisa com minha mulher, eu não te mato, porque é pouco. Sabe o que eu faço? Te amarro numa cadeira, prendo tuas mãos abertas na mesa, vou martelando dedo por dedo. Para você, esse castigo será pior do que a morte. Toma cuidado, pois farei isso!’ E ele falava ruminando a fúria em cada palavra. É que, durante a noite, ele sonhara comigo tentando namorar a Gesse [a mulher com quem Vinicius se casou em 1970] e vivia aquilo com tanto realismo, sentindo-se traído, como se tudo fosse verdade, pela força da fantasia! Esse era o Vinicius.”

Toquinho foi testemunha ocular de outras histórias com Vinicius que parecem lendárias, mas foram reais. Como as vezes em que, voltando das noitadas pela cidade de São Paulo, teve de erguer as calças do parceiro, que, largas, caíam em plena Avenida São Luís, deixando o poeta avesso a cuecas nu da cintura para baixo em pleno centro de São Paulo. “Vinicius não dava a mínima, achando-se a verdadeira poesia concreta daquele burburinho urbano”, lembra Toquinho. Iniciada em 1970, ano em que uma viagem de navio para a Argentina selou a amizade e a parceria da dupla, a obra de Toquinho com Vinicius manteve o poeta nas paradas ao longo daquela década e durou até a morte dele.

“Foram dez anos de convivência em torno da música, compondo, gravando, viajando, fazendo shows e, acima de tudo, saboreando a vida em todos os sentidos”, avalia Toquinho. “Acho que esse foi o fator essencial para a longevidade da parceria: colocávamos a vida sempre na frente da arte. Tudo que brotou em forma de canção teve raiz no nosso cotidiano prazeroso e juvenil. Trocamos experiências: Vinicius entrou com a juventude da experiência. Era muito mais jovem do que eu em muitos aspectos; e eu o revigorei com a experiência da juventude numa época em que ele precisava de um parceiro novo, disposto a colocá-lo outra vez na estrada.”

Foi quando estava na estrada com Toquinho que Vinicius se casou pela última vez, com Gilda de Queirós Mattoso, em 1978. Atual assessora de imprensa de artistas como Gilberto Gil, Gilda deu consultoria para exposição sobre Vinicius programada para este mês no Theatro Municipal de Niterói (RJ), mesma cidade onde ela o conheceu, em 1972. “Eu morava em Niterói e Vinicius foi fazer um show lá. Eu já era apaixonada, louca por ele. A letra da canção brasileira pode ser dividida em antes e depois de Vinicius de Moraes. Ele botava as coisas do cotidiano nos seus versos, não escrevia aqueles dramalhões de amor”, diz.

No cotidiano do casamento com Vinicius, uma evolução de caso de amor que começou para valer em Paris em 1978, Gilda se deparou eventualmente com um Vinicius um pouco mais melancólico, sobretudo depois que sofreu um derrame cerebral no avião, na volta de uma viagem à Europa. Foi quando apareceram as limitações impostas pela idade e pelos problemas de saúde. “Quando ele se deparava em uma situação de querer fazer uma coisa e não poder, como comer rabada com agrião, Vinicius ficava bravo. Mas a alegria de viver foi o traço mais marcante de sua personalidade”, ela enfatiza.


Cynara Faria, uma das quatro cantoras do Quarteto em Cy, grupo vocal apadrinhado por Vinicius em 1964, também testemunhou a alegria de viver do poeta mulherengo. Vinicius gostava de mulher e, nos versos de “Minha Namorada” (1961), mais famosa parceria dele com Carlos Lyra, escreveu versos machistas (“Se quiser ser somente minha / Exatamente essa coisinha / Essa coisa toda minha”) que justificariam uma queima de sutiãs em praça pública pelas feministas da época. Mas, sendo versos do Vinicius, tudo soou natural. Exatamente como Cynara achou natural quando, ao chegar à casa de Dorival Caymmi com as demais integrantes do Quarteto para um ensaio, ouviu Vinicius falar para Caymmi: “Olha lá, meu Caymmi, lá vêm elas quatro, duas pra mim, duas pra você”. “A convivência com Vinicius sempre foi fácil, leve, alegre e rica, como deve ser a convivência com um poeta ligado às artes e ao ser humano. Era um ser humano de verdade, com toda a carga que essas duas palavras carregam em si mesmas”, recorda Cynara. “Uma figura alegre, divertida, e a sensação que me dava, quando o via no palco todo faceiro, de macacão verde ou laranja, era a de um homem feliz, fazendo ali o que mais gostava: música.”

A música de Vinicius, que foi gravada antes da poesia dele ser publicada, contrariando a tese de que o poeta se tornou letrista, pode ser ouvida nas mais de 300 canções feitas com parceiros do quilate de Chico Buarque, Edu Lobo (com quem começou a compor em 1963) e Francis Hime, além dos fundamentais Jobim, Baden Powell e Toquinho. São canções envolvidas em histórias saborosas, muitas reunidas no volume dedicado a Vinicius na série Histórias de Canções (editora LeYa). Assinado por Wagner Homem com Bruno de la Rosa, o livro sai no embalo das comemorações pelo centenário do poeta e relata a gênese da parceria de Vinicius com outro gigante da música brasileira, Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha. Iniciada há 50 anos, a parceria foi promovida pelo cineasta Alex Viany, que convidou ambos para comporem a trilha sonora do O Sol sobre a Lama (1963). Foi quando Vinicius pôs letra no choro-canção “Lamentos”, composto por Pixinguinha em 1928. “Mundo Melhor”, música que deu título ao álbum lançado por Beth Carvalho em 1976, foi outro fruto da inusitada conexão de Pixinguinha com Vinicius.

Histórias não faltam para faixas que, também, ganharam exposição internacional. “As canções do Vinicius continuam sendo gravadas em vários idiomas”, atesta a filha Maria de Moraes. O caminho das músicas no exterior é coerente com a trajetória de um diplomata que viajou boa parte do mundo e que foi promovido postumamente a embaixador do Brasil, em 2010. Por isso mesmo, é curioso que a obra dele, tantas vezes ovacionado em palcos argentinos, contenha somente uma letra escrita originalmente em espanhol. Trata-se do obscuro bolero “Amigo Porteño”, feito por Vinicius no Uruguai. A melodia é do baterista Mutinho, que tocava nos shows das turnês internacionais de Toquinho & Vinicius. O bolero é fruto da saudade que Vinicius sentia da breve paixão tida pela poeta argentina Marta Santa Maria, então com apenas 23 anos, 40 a menos do que Vinicius. Impetuoso, ele quase se casou com sua Martita, o que totalizaria dez casamentos em 67 anos incompletos de vida se a união tivesse sido oficializada.

Pela atuação tão plural na cena cultural do Brasil, Vinicius foi até alvo de piada do cronista carioca Sérgio Porto, através do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta. Ele disse certa vez que, se Vinicius fosse apenas um, teria de se chamar “Viniciu de Moral”. O fato é que a obra poética e musical do mito – múltipla a ponto de aglutinar sambas, valsas, sonetos, afro-sambas, boleros, sambas-canção e, claro, os clássicos arejados de bossa nova – desafia as leis do tempo e parece imortal, infinita além da duração da vida do grandioso Poetinha. Como disse a irmã no velório, Vinicius não morreu, Vinicius gastou a vida. Hoje, ele é eterno.