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Ilha Partida

Por Juliana Resende Publicado em 10/11/2008, às 12h14

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Da janela do avião avistase a ilha. É de um verde dramático, assim como a geografia - abrupta, quando o mar cinza encontra a terra em falésias vertiginosas. Os preços também causam vertigem. Um café, quase 3 euros; uma água, quase 2. O tratamento de choque se pronuncia quando o setor de imigração se aproxima, antes mesmo de chegar à esteira das malas, no Aeroporto de Dublin - ainda mais quando seu passaporte é o manjado verdinho, o modelo antigo expedido pela República Federativa do Brasil. É com uma espécie de credencial para o Apocalipse que circula esta repórter, nas desvairadas andanças pelos domínios de James Joyce, Bono, Van Morrison, Sinéad O'Connor e Snow Patrol, regados a Guinness e Blackbush, o legítimo uísque irlandês tarja preta, destilado no norte, que rivaliza com aqueles curtidos em barris sulistas, como, aliás, quase tudo nesta que é a 20&ordf: maior ilha do planeta.

Garrafas são como gigantes - a mitologia local está cheia deles - que, reza a lenda, digladiavam, já na remota antigüidade, por território ali mesmo no arquipélago que a Irlanda divide com as ilhas britânicas. Um deles, desesperado durante a batalha, cortou a própria mão e jogou longe - onde seu corpo (ou parte dele) alcançasse seria seu domínio. Por isso, a bandeira do Ulster, a região que compreende a Irlanda do Norte, tem uma mão vermelha (de sangue) no centro. Sim, desde os primeiros séculos da Era Cristã até o pote de ouro no fim do arco-íris capitalista, a existência tem sido turbulenta nestas paragens afeitas a batalhas e provações, e que podem guardar, entre outros segredos e idiossincrasias, as origens do nome Brasil - como é conhecida uma lendária e supostamente paradisíaca ilhota, a oeste da Irlanda, que só poderia ser vista de sete em sete anos. O'Brazil, Hy Brasil e Ho Brasile são algumas das grafias encontradas em relatos desde o século 15. O nome da misteriosa terra que parece ter "descido" para a América do Sul teria origem no poderoso rei Fir Bolg, mais conhecido como Breasal.

Mas não é exatamente por isso que os brasileiros têm sido tão atraídos pela República da Irlanda. Trata-se da "parte-mãe" da ilha, também conhecida como Eire, independente do Reino Unido desde 1937. A ilha foi ocupada desde o século 12 pelo império britânico, do qual faz parte a Irlanda do Norte, há dez anos em processo de paz, depois de amargar mais de três décadas de guerra civil. E o cunho religioso desse duelo entre católicos e protestantes representa, na verdade, diversas e profundas divisões socioeconômicas. A ilha sobreviveu a invasões bárbaras, incluindo vikings, a homéricas guerras - como a da Conquista Cromwelliana, que matou cerca de 600 mil pessoas (metade dos habitantes de então, 400 mil católicos), em 1651. Na época, os britânicos chegaram a vender cerca de 12 mil irlandeses rebeldes capturados como escravos a outras colônias. Para se ter uma idéia do vampirismo dos colonizadores e da desvantagem dos nativos, que tinham bens e terras confi scados, em pleno século 18 nenhum católico podia integrar o Parlamento Irlandês, composto exclusivamente por protestantes.

A religião é um catalisador de diferenças e dívidas históricas, uma forma de simplificar e santificar a polarização, que ainda causa repulsa em alguns compatriotas e engessa politicamente o norte, mas que não justifica mais a luta armada e muito menos a má fama da região - uma das razões pelas quais os brasileiros preferem se estabelecer na República (o Sul) em busca de euros. No país (ainda) se tem direito a trabalhar legalmente por meio-período, desde que matriculado em um curso de inglês - o que não é permitido na Irlanda do Norte. Essa brecha na legislação criou uma indústria de imigração, por fazer da República da Irlanda uma boa opção para cidadãos não europeus. Foi quando começou a virada econômica, que teria o apogeu nos anos 90, passando da mais pobre nação da Europa Ocidental a uma das mais prósperas da atualidade, com um PIB esbarrando entre os cinco mais altos da região. Com esse processo, a capital, Dublin, se abriu para a pós-modernidade e o cosmopolitismo.

Você lê esta matéria na íntegra na edição 26, novembro/2008