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O atacante que amava demais

Por negar-se a abandonar o time do coração, Eduard Streltsov deixou de disputar três Copas e foi acusado de um crime que não cometeu. O caso é o perfeito exemplo de como operava o terrorismo de Estado na União Soviética.

Edgardo Martolio Publicado em 13/06/2014, às 11h11 - Atualizado às 12h40

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<b>Vestindo a camisa</b><br>
Streltsov em ação: durante a carreira, o atacante jogou apenas no time pelo qual torcia, o Torpedo, e na seleção
da União Soviética. - Alexandre Makarov
<b>Vestindo a camisa</b><br> Streltsov em ação: durante a carreira, o atacante jogou apenas no time pelo qual torcia, o Torpedo, e na seleção da União Soviética. - Alexandre Makarov

Na época da união soviética (1922-1991), os clubes Torpedo e Spartak de Moscou representavam a oposição silenciosa ao regime comunista que impunha o terrorismo de Estado no país. Silenciosa? Não exatamente: nos clássicos jogados na capital, contra o CSKA (o time do Exército Vermelho) e o Dynamo (o time da polícia secreta KGB), os torcedores daqueles times costumavam cantar “Bei militsia!” (“Peguem os policiais! Peguem os soldados!”). E o estádio se transformava em um verdadeiro caldeirão, algo impossível de acontecer nas ruas.

Em meio a tamanha rivalidade política, o nome de Eduard Streltsov se destaca. Nas décadas de 1950 e 1960, o atacante foi o maior ídolo do Torpedo, o clube do sindicato de fabricantes de automóveis. E aqueles que o assistiram jogar na União Soviética não tinham dúvidas: ele foi tão bom quanto Pelé. A manobra clássica em campo era o toque de calcanhar – tanto que hoje, na Rússia, essa jogada leva o nome dele. Para certos críticos europeus, se Streltsov tivesse atuado na Copa de 1958, a União Soviética ganharia o título mundial. Houve quem dissesse: “O Brasil não teria levado a Copa sem Pelé; foi isso o que aconteceu com a União Soviética”.

Eduard anatolyevich streltsov nasceu em Perovo, nos arredores de Moscou, em 21 de julho de 1937. O talento no futebol apareceu cedo: aos 13, ele se juntou ao Fraser, time de futebol de operários. Três anos e meio depois, os dirigentes da fábrica de automóveis ZIL assinaram o passe do atacante de 16 anos para o Torpedo, equipe da primeira divisão e time de coração do jovem Streltsov.

Estreou na equipe principal aos 16, em 1953, e “agradeceu” marcando quatro gols logo na primeira partida. Em 1955, fez a primeira partida pela seleção soviética e marcou três gols em 45 minutos contra a Suécia, na casa do adversário, enfeitando a vitória de 6 a 0 e fazendo delirar jornalistas e torcedores. Um ano mais tarde, foi o primeiro convocado para representar a União Soviética nas Olimpíadas de Melbourne (Austrália), em que o país ganhou a medalha dourada. Foi nessa competição em que começaram os percalços do jovem craque.

Streltsov era a estrela do Torpedo, o clube dos fabricantes de automóveis e do sindicato Trudovye Rezervy, que reunia operários e estudantes das escolas técnicas do país. Não era do clube do Exército Vermelho, o CSKA Moscou, nem do clube da polícia secreta KGB (na época, chamada NKVD), o Dynamo. Também sequer era ídolo do Spartak, conhecido como “o time do povo”. Pior que isso, Streltsov se declarava um torcedor fanático do Torpedo e costumava tirar sarro dos times “queridinhos” dos poderosos. Vale dizer que, na época, a maioria dos times soviéticos deixava o Dynamo e o CSKA vencerem as partidas, apenas para evitar maiores represálias dos órgãos oficiais.

Antes da partida final das Olimpíadas, contra a favorita Iugoslávia, o treinador soviético Gavrill Dmitriyevich Kachalin recebeu a ordem de escalar apenas jogadores do CSKA e do Dynamo. “Nem sequer Streltsov posso escalar?”, perguntou. “Nem ele. Assim ele aprende onde deve jogar se quiser a glória”, ouviu como resposta. A ordem era ainda mais ampla: obrigava Kachalin a escalar o time com a mesma quantidade de atletas de cada clube: cinco do Dynamo, com o mítico goleiro Lev Yashin, o “Aranha Negra”; cinco do

CSKA, entre eles o zagueiro Boris Kutnezov; e a única exceção, Igor Neto, o capitão do Spartak.

Naquela, época, os jogadores da União Soviética eram conhecidos como “os cientistas da bola”, porque praticavam um futebol científico, com disciplina tática, vigor físico e talento. A URSS venceu a Iugoslávia por 1 a 0 e festejou o primeiro título da história do país... sem Streltsov, que nem ao menos recebeu a medalha de ouro que, por regulamento, era reservada apenas para quem entrou em campo na final. Nikita Simonyan, que o substituiu na partida, relata que ofereceu a medalha para o companheiro, porque ele havia jogado as outras partidas. Strelsov a recusou: “Não se preocupe, Nikita. Ganharei outras no futuro”.

Acusado de estupro, Streltsov foi condenado à prisão, mas a culpa dele jamais foi comprovada

Nos meses seguintes, o craque construiu o que ficou conhecido como “os 100 dias de Streltsov”. De 21 de julho a 26 de outubro de 1957, ele anotou 22 gols para o Torpedo, feito que lhe rendeu o reconhecimento de sétimo melhor jogador da Europa pela revista France Football. Era o maior momento do jogador, e os cartolas do Dynamo se apressaram a oferecer a ele um lugar no time, o que lhe garantiria uma vaga de titular na Copa de 1958, na Suécia.

Em maio, o universo que recepcionaria Streltsov como um novo ídolo desabou. O jogador respondeu aos cartolas do Dynamo que só jogaria pelo Torpedo, e que não aceitaria ser transferido. Nada poderia ter ofendido mais a cúpula do Exército Vermelho do que tal negativa. Rebelde, Streltsov sentia-se um James Dean local – de fato, penteava o cabelo como o ícone hollywoodiano, fugindo dos padrões clássicos comunistas. Também recusou a chance de jogar pelo CSKA. “Eu só defendo a camisa que amo, a do Torpedo. E tanto quanto isso gosto de fazer gols no Dynamo e no CSKA”, foi a provocadora resposta que ele deu para as ofertas.

Dias depois, Streltsov compareceu a uma festa organizada na casa de campo do oficial militar Eduard Karakhanov. Entre vodcas e risadas, o craque se retirou para a praia com Marina Lebedeva, uma bela garota de 20 anos. Na manhã seguinte, o jogador foi detido sob a acusação de estupro. Na mesma tarde, Streltsov assinou a confissão, enterrando para sempre um sólido futuro como jogador. Há duas versões para a história: em uma, ele teria sido torturado; na outra, teria confessado porque garantiram que seria convocado para a Copa e, com isso, “se encerraria o problema”. Acabou condenado a 12 anos de prisão, embora jamais se comprovasse verdadeiramente sua culpa.

Kachalin, o treinador, pediu que o processo se suspendesse até o fim do Mundial, mas foi informado que “a causa não tinha retorno, e que Nikita Khrushchev, Primeiro-Secretário do Partido Comunista, foi quem ordenou a prisão e o processo”. Também se sabe que o jovem craque havia dito outro “não” inadequado anteriormente, e que poderia ter dado origem à intervenção de Khrushchev ao caso: em uma festa no Kremlin em homenagem ao título olímpico, Streltsov – publicamente – recusou a mão de Svetlana, 16 anos, filha de Ekaterina Furtseva, então ministra da Cultura e provavelmente a mulher mais influente na política soviética na época. Conta a lenda que o jogador teria dito à garota: “Jamais me casarei contigo, [é] menina demais e [tem] cara de macaco... Antes prefiro

ser enforcado”. A mãe prometeu vingança. Meses depois, Streltsov casou-se com outra garota, dois dias antes de um amistoso contra a Romênia, contradizendo o conselho do treinador que pediu que ele esperasse e se casasse após o jogo. “É um irresponsável. Está claro que o Torpedo não consegue formar os esportistas que queremos”, falou Lavrent Beria, chefe da polícia política soviética.

Assim, enquanto a União Soviética viajava para a Suécia, onde perderia para o Brasil (naquele 15 de junho, Pelé e Garrincha jogaram juntos pela primeira vez em uma Copa), Streltsov era enviado para uma prisão na Sibéria. Os jornais soviéticos, controlados pelo poder, foram proibidos de falar sobre o craque ou reclamar da ausência dele na seleção. No livro Gulag: Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos, da historiadora norte-americana Anne Applebaum, há um trecho que quantifica o terror imposto por Vladimir Lenin, presidente do Conselho de Comissários do Povo da União Soviética, em seus “campos de trabalho forçado”: segundo dados oficiais, o número de prisioneiros cresceu de 200 mil em 1930 para 2,5 milhões no momento da morte de Josef Stalin – sucessor de Lenin –, em 1953. É possível que 2,7 milhões de soviéticos tenham morrido dessa forma. Streltsov, pelo menos, salvou-se de engrossar essa estatística.

Quase seis anos depois e doente dos rins, Streltsov recuperou a liberdade e, por boa conduta, também o direito de voltar a jogar pelo Torpedo. Apesar de a condição física dele nunca mais ter sido a mesma, conseguiu levar o time ao segundo título, em 1965, e ao terceiro, em 1968. Para os torcedores, foi chocante notar que o craque havia perdido quase todo o cabelo, mas não a classe. Por isso, a presença dele foi amplamente requisitada no elenco que jogaria a Copa da Inglaterra, em 1966.

Outra vez, os cartolas do Dynamo o abordaram: “Se jogar com a gente, irá para a Copa”. E, novamente, ele recusou: “Eu sou do Torpedo e só jogarei pelo Torpedo. Se antes errei me prejudicando, agora sei que é a coisa certa, porque nada mais tenho a perder”. Imediatamente, o Partido Comunista o proibiu de participar da Copa – dessa vez, a URSS alcançou as semifinais. O Pravda, jornal de maior tiragem do mundo na época, trouxe a explicação: “Um ex-prisioneiro não tem o direito de defender a camisa vermelha com a sigla CCCP [‘URSS no alfabeto cirílico] no peito”. E o caso foi encerrado. Nos dois anos seguintes, Streltsov foi nomeado o “Jogador do Ano” da União Soviética. Sem Copas pela frente, voltou a ser convocado para a seleção, para enfrentar a então campeã do mundo,

Inglaterra, no mítico Estádio de Wembley. No empate por 2 a 2, ele foi considerado um dos melhores em campo. É dessa partida que guardou a última lembrança como jogador: “O gramado de Wembley foi o melhor em que já pisei”.

A despedida dele do Torpedo aconteceu em 1970. Logo, passou a treinar as divisões de base do clube, que precisou limitar as inscrições: todos os pais queriam que os filhos fossem treinados pelo “Pelé russo”, como o batizou definitivamente a imprensa europeia (a Fifa o incluiu na lista dos 50 maiores do século 20). Sua vida era o Torpedo, para onde ia diariamente até morrer, de câncer na garganta, em 20 de julho de 1990 – um dia depois de fazer 53 anos. Na agonia, pela última vez, jurou inocência à esposa.

Atualmente, muitas personalidades lutam para que as acusações de estupro sejam retiradas postumamente, como uma maneira de limpar em definitivo o nome de Streltsov. Dentre elas, o político Yury Luzhkov, prefeito de Moscou, e o enxadrista Anatoly Karpov, campeão do mundo entre 1975 e 1999, ambos fundadores do “Comitê Streltsov” em 2001, cujo propósito é restaurar a reputação do craque perante a Justiça russa e o mundo. “Por causa dessa terrível condenação, ele não conseguiu ser reconhecido como o

melhor futebolista do mundo. Ele teria sido mais do que Pelé”, declarou Karpov recentemente.

Mas nem todos põem a mão no fogo. Simonyan, que o substituiu na final das Olimpíadas de Melbourne, deixou dúvidas em uma declaração: “É uma coisa misteriosa. Ele escreveu para a mãe dele dizendo que estava levando a culpa de outra pessoa. Mas, ainda quando penso que foi o sistema que puniu Streltsov, não sei com certeza se houve um estupro. Sei sim que ele e a menina dormiram juntos. Ele era jovem, solteiro...” De todo modo, pelo prestígio de Karpov e pelo poder de Luzhkov, é bem provável que o comitê

consiga fazer jus ao craque. Algo já foi feito: no final do século passado, o Torpedo levantou um monumento a Streltsov, na entrada do estádio que também leva o nome dele. Recentemente, o Banco Central da Rússia emitiu uma moeda de 2 rublos com a imagem do jogador. Streltsov pode ter morrido, mas a ideia de justiça, não.

Streltsov foi enterrado no chamado “canto dos escritores”, no cemitério Vagankovskoye, em Moscou. Uma crônica revelou: “A suposta vítima, Marina Lebedeva, foi flagrada no túmulo de Streltsov, em 1997, colocando flores no dia seguinte à cerimônia anual do aniversário de seu falecimento”. Sem dúvidas, foi um caso de amor a três – entre Marina, o craque... e o Torpedo.

Um Time de Coração

O amor irrefreável pelo Torpedo foi a ruína de Streltsov

O clube Torpedo, de Moscou, fundado em 1924 e cujo Estádio Eduard Streltsov tem capacidade para 13.500 pessoas, atualmente milita na Segunda Divisão, mas já foi campeão soviético três vezes (1960, 1965 e 1976), alçou a Taça da URSS em seis oportunidades (1949, 1952, 1960, 1968, 1972 e 1986) e conseguiu a Copa da Rússia numa ocasião (1993). Além de Torpedo, o time já teve outros nomes: Proletarskaya Kuznitsa (Forja Proletária), AMO e ZIS (por causa das fábricas de automóveis homônimas) e Torpedo-Luzhniki, para finalmente, em 1998, retomar seu nome original. “Caímos para a ‘segundona’, porque somos puros e não nos vendemos para nenhum magnata”, dizem os torcedores, em clara alusão aos novos ricos russos que adquirem clubes pelo mundo. Esse amor irrefreável que o Torpedo desperta em seus fãs é o que levou Eduard Streltsov a perder a chance de jogar três Copas do Mundo, além de mais de cinco anos de liberdade. Mas o jogador jamais perdeu a dignidade: parece óbvio que a acusação de estupro foi uma grande armação.