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O Massacre dos Monges

Há 75 anos, a Mongólia presenciou a mais cruel perseguição já feita pelo comunismo soviético fora de suas próprias fronteiras

Edgardo Martolio Publicado em 16/10/2012, às 10h14 - Atualizado em 17/10/2012, às 10h49

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<b>AMEAÇADOS</b> Nos anos 30, os russos perseguiram os monges na Mongólia - MONTAGEM SOBRE FOTO GETTY IMAGES
<b>AMEAÇADOS</b> Nos anos 30, os russos perseguiram os monges na Mongólia - MONTAGEM SOBRE FOTO GETTY IMAGES

A Mongólia foi o primeiro país a seguir os passos de sua vizinha União Soviética, transformando-se, em 1924, em um regime comunista. Na época, quase 10% de seus 700 mil habitantes eram lamas do chamado budismo tibetano, a religião preponderante no território desde o século 16. O ateísmo soviético nunca os tratou bem, mas entre 1935 e 1939 a situação chegou a um extremo – os monges foram massacrados pelo regime comunista.

Secretário-Geral do Partido Comunista russo do Comitê Central da União de Repúblicas Socialistas Soviéticas por mais de 25 anos, Josef Stalin ordenou as fronteiras para “cuidar dos interesses do regime”, aniquilando os detratores mais próximos. Os lamas budistas mongóis moravam na porta do lado, em um território cujo governo tentava agradar à URSS e tinha cortadas as relações com a outra potência vizinha, a China. Assim, eles eram o recheio de um sanduíche fácil de morder. É verdade que os mais de 70 mil lamas representavam a casta privilegiada e controlavam, do silêncio de seus mosteiros, a economia rural do país, formado por um povo empobrecido que já não tinha o poder dos tempos de Gêngis Khan. Mas isso é algo que, obviamente, não justifica a violência sofrida posteriormente pelos lamas.

Em setembro de 2010, sob um chuvoso entardecer no remodelado aeroporto Sheremetyevo de Moscou, embarquei em um voo com destino à Mongólia, sabendo que de algum modo estaria refazendo a rota dos aniquiladores stalinistas. Mas não estava sensibilizado o suficiente. Tinha conversado com alguns moscovitas com idade para conhecer história, e nenhum deles sabia precisar nada a respeito. Apenas alguns entrevistados comentaram que, após a Perestroika, escutaram alguma coisa, mas nada que os arrepiasse. O regime escondia bem seus crimes.

Em 1928, Stalin criou o primeiro de seus planos quinquenais para controlar a economia do regime, na tentativa de industrializar União Soviética a qualquer preço. Muitos pagaram com a vida, principalmente aqueles que protestavam porque a fome começava a ser marca registrada dessas experiências. Quase todos os crimes aconteciam dentro das próprias fronteiras russas ou de países invadidos e anexados.

Qualquer um que, por algum motivo, fosse considerado perigoso para a continuidade e expansão do marxismo foi eliminado sem pena nem glória. Só na Ucrânia morreram mais de 4,5 milhões de pessoas. Em meio a essa carnificina, por exemplo, foi assassinado Leon Trotsky (na época, vivendo no México), em 1940. Não adiantava fugir. E antes, em Leningrado (hoje São Petersburgo), a vítima foi Sergei Kirov, suposto sucessor de Stalin. Nesses anos todos, o ditador também assassinou mais de cinco mil oficiais de suas próprias forças militares, por acreditar que conspiravam contra o Estado. Dizem que primeiro matava e depois perguntava.

Quase uma década antes, Stalin iniciou sua caminhada para a grandeza pessoal e, também, para fora de seus limites territoriais. Nesse trajeto, a Mongólia era um prato tão cheio quanto fácil. Os budistas eram um alvo que Stalin poderia eliminar sem problemas – e justificar com menos dificuldades ainda. Nessa época, curiosamente, a Mongólia fabricava os uniformes militares de inverno, com lã de caxemira, para todo o exército socialista, e recebia alimentos e motores das 15 repúblicas do bloco.

Aterrissei ao amanhecer no aeroporto Internacional Chinggis Khaan, em Ulan Bator, capital mongol. No céu era possível ver as últimas luzes da noite da cidade e, portanto, seu pequeno tamanho. Era uma presa simples de conquistar. Se é essa a impressão que passa agora, imaginei como foi fácil para os enviados do Kremlin, três quartos de século atrás, tomar conta da região. O povo mongol atualmente está mais informado do massacre do que os russos. Como em qualquer casamento mal arranjado, a vítima lembra mais dos golpes do que o ofensor. Quase metade dos entrevistados na capital sabia que seus religiosos correram bastante naqueles tempos, boa parte deles inutilmente.

Pode parecer uma ideia à la Ray Bradbury, pura ficção científica, mas fala-se que o surgimento do nazismo na Alemanha ajudou Josef Stalin a enxergar nos lamas budistas supostos inimigos. Adolf Hitler, assim como seus generais Heinrich Himmler e Rudolf Hess, teria crenças ocultistas aparentemente vinculadas ao budismo. Há quem diga que os três acreditavam nas míticas terras subterrâneas de Hiperbórea (Thule e Última Thule). Também teriam feito estudos acerca das probabilidades de que a Terra fosse realmente oca, segundo afirmara séculos antes o astrônomo britânico Edmond Halley (o mesmo que descobriu o cometa que leva seu sobrenome). Nesse vazio subterrâneo moraria a raça superior de extraterrestres Vril-ya, que em 1871 tinha sido descrita pelo novelista inglês Edward Bulwer-Lytton na obra Vril – O Poder da Raça Futura . E onde estaria localizada essa super-raça subterrânea? Exatamente na Ásia, abaixo das estepes mongóis.

Já o filósofo alemão Nietzsche tinha feito referência aos super-homens e definido os humanos como de descendência hiperbórea, povo da mitologia greco-romana. Do mesmo modo, autores como Guido von List, Phillipp Stauff e Jörg Lanz von Liebenfels definiram a ariosofia, que pregava a superioridade ariana, antes da Primeira Grande Guerra. E, por fim, o indiano Bal Gangadhar Tilak, em sua obra de 1903, The Acrtic Home in the Vedas (algo como “O lar ártico nos Vedas”), vinculou os moradores de Thule à origem da raça ária, instalando a ideia de toda essa fantasia.

Ideia essa que chegou até o Brasil: pouco antes dos anos 60, Henrique José de Souza, o presidente da Sociedade Teosófica Brasileira da época apresentou uma nova teoria da Terra oca, revivendo Agharti, com a sua capital Shambhala, que seria a origem dos discos voadores que apareceriam na superfície por dois túneis, um em cada polo. Não por acaso a STB construiu sua sede em São Lourenço, Minas Gerais (um templo no estilo grego dedicado a Agharti). O.C. Huguenin, um aluno de Souza, escreveu Do Mundo Subterrâneo ao Céu: Discos Voadores , reforçando a teoria que o livro de R.W. Bernard, A Terra Oca , repetia, apenas modificando-a um pouco ao definir que os discos voadores de Shambhala, em Agharti, emergiam por túneis secretos sob o Himalaia, no Tibete.

Os hierarcas nazistas fizeram mais de uma expedição ao Tibete e regiões próximas, onde se pratica o budismo. E a tolerância do nazismo para com essa religião sempre foi chamativa (a Buddhistische Gemeinde – Sociedade Budista de Berlim – só foi fechada em 1941). Como Hitler achava que o cristianismo era impuro pelas suas raízes judias e não aceitava a ideia do perdão, justificava religiões como o budismo pelo sentido da abnegação. Mas, paralelamente, perseguiu antroposofistas, rosa-cruzes, franco-maçons e teosofistas. Nos Arquivos de Berzin , um tratado sobre o budismo, se lê a respeito da terceira expedição nazista ao Tibete, entre 1938 e 1939: “Durante a sua breve estadia, o antropólogo Bruno Beger mediu o crânio de numerosos tibetanos e concluiu que eram uma raça intermediária entre os arianos e os mongóis e podiam servir como um elo para a aliança alemã-japonesa”.

Se Hitler e sua cúpula acreditavam nisso tudo e a insígnia suástica do nazismo se assemelhava à cruz que estampa a fachada de muitos templos budistas, Stalin não precisava procurar tanto para encontrar elementos que mostrassem as ligações budistas com seus inimigos nazistas. O pior é que ele teve mais argumentos ainda para justificar o massacre, porque, na época, o Japão (aliado nazista na Segunda Grande Guerra) apoiava o budismo tibetano na chamada Mongólia Interior – território que na atualidade pertence ao norte da China –, anexada então como parte da Manchúria conquistada pelos japoneses.

O Exército Vermelho derrubou muitos monastérios, queimou peças sagradas, demoliu monumentos e maltratou obras de arte budistas da Mongólia. Calcula-se que foram destruídos mais de 700 templos. Trinta e cinco mil pessoas desapareceram, entre elas 15 mil lamas que foram executados sem piedade pela suspeita de que – talvez – mantivessem relações com o nazismo, que os procurava para achar a raça superior e subterrânea que moraria sob suas tundras. Reconhecendo que oficialmente não existia liberdade de culto, há que dizer que esses lamas nem sequer morreram pela intolerância religiosa.

O interior da Mongólia se apresenta como um lugar detido no tempo. Não há tantos templos reconstruídos, tampouco emergem ruínas em toda parte. Os mongóis não são um povo particularmente simpático, mas também não podem ser considerados mal-humorados. Parecem, sim, retraídos. O olhar pode ser desconfiado, mas, quando há um pouco mais de proximidade, só surgem lamentações de “vários passados” pouco felizes. Como a morte desenfreada de seus lamas. Mas, paradoxalmente, a tristeza no rosto deles vai se desfazendo como se fosse maquiagem à medida que a intimidade aumenta. Por um lado, a história é pesada demais para a alma deles; por outro, eles sabem que sobreviveram.

Um dado que resume muito bem toda essa questão: os marxistas se ocuparam da educação e em 50 anos elevaram o índice de alfabetização de 2% a 96%, mas eliminaram a língua mongol e impuseram o alfabeto cirílico (russo). Desse modo, ninguém mais poderia ler as escrituras budistas. Apesar disso, hoje, duas décadas após se livrar do regime soviético, a informação da história recente é contada aos mais jovens, que buscam sua identidade.

Muitos monges eram fuzilados, outros encarcerados, mas morriam em cativeiro ou simplesmente desapareciam nas prisões. Muitos conseguiam fugir para outras latitudes ou se escondiam no Deserto de Gobi, que também foi patrulhado pelos russos. Para cometer esses atos ilegais dentro da URSS, Stalin utilizava a NKVD, sigla que traduzida do russo significa “comissariado do povo para assuntos internos”, algo como um Ministério do Interior próprio. Além das fronteiras era o próprio exército quem encarcerava, torturava e matava. No país vizinho, a NKVD nem foi a passeio, os soldados: tinham poder suficiente para agir.

Hoje, os lamas que vivem na Mongólia não desejam lembrar esse passado. Preferem acreditar no Nirvana que seus ancestrais alcançaram quando a morte chegou a eles. Em vida e quando dormem eles paralisam os sonhos para se alucinar e, na hora de morrer, repetir esse processo e reviver todas as emoções passadas, boas e ruins; se o conseguem, na calma, se desprendem do material e atingem o Nirvana, que é a felicidade absoluta, pura, em estado de elevação, sem nenhum demônio da consciência por perto. Assim, quebram a roda do karma e evitam se reencarnar novamente.

Não consegui deles detalhes sobre as torturas, lamas não olham suas feridas. A religião deles os envolve com a paz do amanhã, e talvez seja melhor assim. Desse jeito, sem se apoiarem no drama, estão se reerguendo há 20 anos, desde quando, em paralelo à queda da União Soviética, começaram sua própria reconstrução junto à revolução que devolveu a democracia e a liberdade de culto ao país. O fato é que a Mongólia hoje é uma república parlamentarista multipartidária aberta a todas as religiões. O budismo tibetano, também vajrayana – significa “tântrico” –, chamado ainda de lamaísmo, é a maior expressão religiosa em todo o território, com 90% de praticantes (bem mais de dois milhões de mongóis).

Colado a Ulan Bator, capital do país, está o monastério de Khiid de Gandantegchinlen, construído no século 19 e que, curiosamente, escapou da destruição stalinista (com anuência do quarto presidente mongol Khorloogiin Choibalsan). Aliás, Ulan Bator cresceu devido à presença desse monastério, que, no início do século 20, tinha dez mil monges para uma população de 25 mil habitantes. Nele está a estátua de ouro do buda Migjid Chenrezig, que mede 26,5 metros, a mais alta da Ásia. Banhada a ouro, ela pesa 20 toneladas e é enfeitada por 2.286 pedras preciosas e mais de 100 quilos de seda.

Fechado em 1938 e reaberto em 1944, esse mesmo mosteiro funcionou no restante da ditadura bolchevique com um mínimo de empregados, conservado não como lugar religioso, mas sim como patrimônio da cultura e da história da Mongólia. Foi o único monastério ativo durante estes 46 anos. Dentro dele há três templos, além da universidade budista Zanabazar (onde se preparam os futuros professores que continuarão ensinando outras gerações), três escolas datsans – de filosofia budista –, duas de budismo tântrico, outra de medicina e mais uma de astrologia tradicional mongol.

Dentro deles a vida é tranquila, tal como o nome sugere: “Grande Lugar do Absoluto Regozijo”. Milhares de adeptos realizam suas preces diariamente e os 600 monges que moram ali levam vidas de estudo e orações como em qualquer outro lugar, sem que o passado os interrompa com perguntas.

Também não há turistas. Eles vão ao supermercado do monastério como seres anônimos e agem como famosos na hora das perguntas: respondem sem responder, sempre com evasivas. Mas a fé é muito grande. Digo isso a um lama, que responde: “Não é à toa que a Mongólia foi o primeiro país onde a tradição do budismo tibetano foi propagada e traduzida...”

Os fiéis acendem velas, incensos e fazem pedidos às decorativas urnas de aço. Todos se esquivam das pombas, protagonistas nas áreas descobertas. Os monges mais jovens rezam onde é vedado o registro de imagens. O céu está limpo. Nada lembra aqueles dias sombrios. Também não há felicidade no ambiente, mas uma relativa tranquilidade no ar.

Um monge se desculpa, dizendo que não havia nascido quando Stalin instaurou, em 1929, seu programa antirreligião, mas admite ter conhecido um dos lamas que instigaram a chamada Guerra de Shambhala, ocorrida entre 1930 e 1932, que obrigou Stalin a enviar suas tropas para “alinhá-las às do comunismo mongol” (a rebelião, na realidade, pretendia que a Mongólia não imitasse a União Soviética, coisa que fez e de modo mais pronunciado; Stalin também não queria isso, só desejava que os budistas mongóis não se aliassem aos japoneses que tinham ocupado a Manchúria chinesa e, assim, poderiam invadir o único país que os separava da União Soviética: a Mongólia).

Talvez os soldados stalinistas tenham chegado um pouco tarde e percebido que, efetivamente, o Japão já tinha seduzido os lamas, pois os mongóis não odiavam os japoneses por dois motivos: primeiro, porque eles tinham tomado territórios da China, que, na época de Chiang Kai-shek, reclamava não só o Tibete, como ainda hoje reclama, mas também a Mongólia toda; segundo, porque o Japão, assim como a Mongólia, era um país budista que despertava grande admiração. Foi aí que Stalin intensificou a perseguição e a matança dos monges. Os anos de 1937 a 1939 foram os mais sanguinários (em 1936, o Japão e a Alemanha nazista tinham assinado o Pacto Anti-Comintern que não só proclamava hostilidade mútua ao comunismo internacional como acordava que nenhum deles negociaria com a União Soviética e, se esta atacasse qualquer um deles, o outro o defenderia).

Próximo à capital, o monastério de Choijin Lama, de 1908, também se salvou parcialmente da destruição, porque em 1942 se transformou em museu. Em 1996, foram reconstruídas as partes mais danificadas. Dos monges que puderam fugir e voltaram à Mongólia nos últimos 20 anos, poucos regressaram aos monastérios. A vida com suas esposas e o vício da vodca os indisciplinaram e os deixaram do outro lado dos muros dos templos.

A história do comunismo, de Stalin, dos genocídios, que chega a todos nós envelopada em formato de filmes, livros e pela internet, omite frequentemente este capítulo. Os lamas, curiosamente, também não o gritam. Hoje, os monges mongóis não escavam seu passado como alguns podem imaginar, após a brutalidade a que foram submetidos pelo regime bolchevique. Diferentemente de qualquer vítima ocidental, eles incorporaram a sabedoria de quase 1500 anos do Livro Tibetano dos Mortos (Bardo Todhöl) , que afirma não apenas que existe vida após a morte, mas que é possível morrer de forma consciente e de um modo proveitoso para um novo despertar espiritual.

Volto para a Rússia nos trilhos do trem transiberiano – o comum, no qual viajam os locais, os nativos; quase não há turistas. Também não há nenhum monge, mas muitos mercadores. Antes de chegar à fronteira, que cruzei após a meia-noite, o trem para. Sobem várias policiais russas. Não são as mulheres inesquecíveis de Moscou. São rudes, como cães farejadores. Entram em todos os camarotes e levam os passaportes. Minha documentação estava em ordem, mas nesses 15 minutos de espera, na escuridão do horizonte, no meio desse silêncio, começo a pensar novamente em como foi o massacre, há 75 anos. Com loucos pensando que a Terra é oca e lamas no meio de seu caminho; paranóicos enxergando amigos/inimigos por toda parte, quando não discos voadores e monges na frente de seus fuzis. Imagino-me sendo um lama. E me preparo para correr. Mas o trem volta a se mover.

Na Mongólia atual, os budistas não querem se apresentar como vítimas. Só desejam ter paz. Preferem divulgar sua tibetana esperança em recuperar um território perdido para a China do que relembrar seu passado trágico nas miras dos fuzis comunistas. Acreditam que os monges aniquilados nunca morreram, que vão reviver tal como prega o Livro Tibetano dos Mortos . Mas o massacre dos lamas mongóis é fato e não pode ser ignorado pelo mundo ocidental, apenas porque Hollywood ainda não fez um grande filme sobre essa saga.