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A suave revolução do Papa Francisco

Os tempos estão mudando

Mark Binelli | Tradução: Ligia Fonseca Publicado em 13/03/2014, às 14h09 - Atualizado às 14h09

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SUA SANTIDADE O PAPA
Jorge Bergoglio, o papa Francisco: aos 77 anos, ele é celebrado por exibir uma maneira mais democrática de conduzir a Igreja Católica - STEFANO SPAZIANI
SUA SANTIDADE O PAPA Jorge Bergoglio, o papa Francisco: aos 77 anos, ele é celebrado por exibir uma maneira mais democrática de conduzir a Igreja Católica - STEFANO SPAZIANI

Praticamente toda quarta-feira em Roma, fiéis e curiosos se juntam na Praça de São Pedro para uma audiência geral com o papa. Desde a eleição de Jorge Mario Bergoglio em março, o público nos eventos papais triplicou para 6,6 milhões de pessoas. Em uma manhã de dezembro, a multidão de peregrinos parecia brilhar com a luz do sol, cobrindo a praça como um tapete colorido. Talvez fosse uma ilusão criada pelos smartphones levantados aos céus.

De perto, o papa Francisco, o 266º pontífice de Jesus Cristo na Terra, um homem cuja humildade óbvia, empatia e, acima de tudo, devoção aos economicamente desfavorecidos se encaixaram perfeitamente com nosso tempo, parece mais cheinho do que na televisão. Tendo famosamente dispensado os acessórios pontífices mais extravagantes, também é surpreendentemente estiloso, usando hoje um sobretudo branco com botões duplos, cachecol branco e uma batina creme, todos impecavelmente costurados.

O tópico da catequese, ou ensinamento, de Francisco é o Dia do Julgamento, embora, como de costume, ele não tente invocar imagens de fogo e enxofre. Seu antecessor, Bento XVI, falando sobre o tópico, uma vez disse: “Atualmente, estamos acostumados a pensar: ‘O que é pecado? Deus é bom, Ele nos entende, então o pecado não conta; no final, Deus será bom com todos’. É uma bela esperança, mas há justiça, e há culpa real”.

Por sua vez, Francisco, 77 anos, implora para que a multidão pense na perspectiva de encontrar o Criador como algo a se esperar, como um casamento, onde Jesus e todos os santos no céu estarão esperando de braços abertos. A voz dele é desconcertantemente gentil, mesmo quando amplificada sobre uma praça pública enorme. Sempre que possível, ele cumprimenta o público. Bento, um acadêmico austero, mantinha essa parte do público geral a certa distância. Entretanto, Francisco adora o contato pessoal e passa quase uma hora saudando os fiéis.

A celebridade papal é algo engraçado. Como arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio nunca tinha sido um orador especialmente talentoso, mas, agora que é o papa Francisco, sua humanidade reconhecível é vista como positivamente revolucionária. Contra o cenário absurdo, impossivelmente barroco do Vaticano, um mundo ainda comandado como uma corte medieval, a eleição de Francisco representa o que a jornalista argentina Elisabetta Piqué, que o conhece há uma década, chama de “escândalo de normalidade”. Desde que foi eleito, em março passado, Francisco vem superando expectativas com os gestos mais simples: surpreendendo recepcionistas no hotel onde se hospedou durante o conclave papal ao aparecer para pagar a própria conta, apavorando o guarda-costas ao beber em uma cuia de mate que um estranho lhe deu durante sua visita ao Brasil, fazendo cardeais morrerem de rir com piadas sobre si mesmo, horas depois de ser eleito (a quem participou de seu primeiro jantar como papa, ele falou: “Que Deus os perdoe pelo que fizeram”).

Depois do papado desastroso de Bento XVI, um tradicionalista rígido que parecia ser capaz de usar uma camiseta listrada, luvas com lâminas no lugar dos dedos e ameaçar adolescentes em pesadelos, o domínio básico de Francisco em habilidades como sorrir em público pareceu um pequeno milagre para o católico médio. No entanto, ele tinha mudanças mais radicais em mente. Ao trocar o palácio papal por um apartamento modesto de dois dormitórios, ao repreender publicamente líderes da igreja por serem “obcecados” por questões sociais controversas como casamento gay, controle de natalidade e aborto (“Quem sou eu para julgar?”, respondeu famosamente quando lhe perguntaram sua opinião sobre padres homossexuais) e – talvez o mais impressionante de tudo – ao dedicar sua primeira grande catequese escrita a uma crítica contundente ao capitalismo desvairado do mercado livre, o papa revelou que suas próprias obsessões estavam mais em linha com as do filho do cara lá de cima.

Até onde se sabe, o conclave papal que elegeu Bergoglio presumiu que estava escolhendo um candidato relativamente tranquilo e transigente. Cardeais gostaram da ideia de um papa da América Latina, um dos mercados de maior crescimento da Igreja. Também reagiram bem a um discurso animador de três minutos que Bergoglio deu durante o conclave, no qual disse que a Igreja, para sobreviver, deve “parar de viver dentro de si mesma, para si mesma, por si mesma”.

No entanto, ele não dava nenhuma outra indicação de ser um agente da mudança. Nos dias depois da eleição, a maioria dos jornais o descreveu como uma escolha segura e conservadora. O próprio Bergoglio já havia escolhido um lugar para se aposentar na Argentina, para onde esperava voltar depois de participar do conclave como eleitor. “Quando ele ficou sabendo que foi eleito”, conta Elisabetta, “não sabia se era sonho ou pesadelo. Tenho certeza de que está se sentindo em uma gaiola”.

Haveria muitas maneiras razoáveis de reagir a essa nova realidade – resignação cristã estoica ou um grito de “Por que eu, Deus?”. Também seria possível se sentir revigorado com o desafio, e talvez até decidir causar problemas por aí.


Junto a muitos nobres homens de Deus, houve vários papas verdadeiramente terríveis. Bento XVI certamente não merece ser incluído na galeria dos vilões, mas é difícil imaginar uma escolha pior para enfrentar os desafios peculiares da Igreja Católica na última década do que o cardeal alemão Joseph Ratzinger. Antes de ser nomeado papa em 2005, ele havia sido prefeito da Congregação para Doutrina da Fé para seu antecessor, o amado, mas também bastante reacionário, João Paulo II. Em sua luta contra os esforços de liberalização do Segundo Conselho do Vaticano, JPII, como era conhecido no país, reprimiu grupos católicos progressivos como os jesuítas enquanto deu as boas vindas aos hipertradicionalistas polêmicos da Opus Dei, cujos membros fazem votos de celibato e praticam mortificação corporal, chicoteando-se ou usando um cilício, uma corrente de metal com tachas amarrada à coxa como penitencia e lembrete do sofrimento de Jesus.

Uma carta publicada em 1986 por Ratzinger, “Sobre o Atendimento Pastoral a Pessoas Homossexuais” (também conhecida como Homosexualitatis Problema), descrevia a homossexualidade como “um mal moral intrínseco”. Os principais proponentes da teologia da libertação, um movimento católico explosivo com conotações marxistas que se espalhou pela América Latina nos anos 70 e 80, foram marginalizados pelo gabinete de Ratzinger e vistos como hereges. Ao mesmo tempo, a equipe dele reagiu às infinitas revelações de pedofilia que abalaram a Igreja nas últimas décadas.

Depois de se tornar o Papa Bento XVI em 2005, Ratzinger parecia não ter uma folga para respirar, e certamente não tinha a habilidade de aplicar seu amplamente reconhecido brilhantismo como acadêmico ao combate a incêndios no mundo real. Em 2009, um escândalo de lavagem de dinheiro foi descoberto no Banco do Vaticano, que controla cerca de US$ 8,2 bilhões em ativos. Então, veio a traição conhecida como VatiLeaks, na qual o próprio mordomo de confiança de Bento roubou calhamaços de documentos secretos que revelam as constrangedoras engrenagens internas da Santa Sé.

Supostamente, o momento decisivo para Bento aconteceu depois que um trio de cardeais responsáveis por investigar o VatiLeaks enviou seu relatório, revelando uma rede de funcionários gays do Vaticano e gente de fora ameaçando expor a situação. “Ele simplesmente não tinha a personalidade ou resistência para lidar com tudo o que estava acontecendo”, uma fonte interna do

Vaticano me disse. Logo depois que Bento chocou o mundo em fevereiro do ano passado ao anunciar que seria o primeiro papa a renunciar em mais de 700 anos, uma indignidade final o acompanhou até a porta: a revelação pelo jornal La Repubblica de que a maior sauna gay da Itália era inquilina de um edifício de propriedade do Vaticano.

A discordância aberta, claro, é algo raro em uma organização tão hierárquica quanto a Igreja Católica, mas constatei que, se há um grupo que expressa uma notável falta de entusiasmo com seu novo papa jesuíta, é a Opus Dei. Então, certa tarde, encontrei o padre John Paul Wauck, um pastor norte-americano da Opus Dei que mora em Roma há quase 20 anos, onde ensina literatura na Pontifícia Universidade da Santa Cruz. Wauck, que não parece tão conservador para um membro dessa instituição, minimiza o pedido de trégua do papa nas guerras culturais. “Com certeza não tenho problema algum com qualquer coisa que o papa diga”, ele afirma. “Acho que há uma espécie de leitura seletiva. As pessoas estão enfatizando certas coisas e esquecendo outras que ele também falou.” Por exemplo, Wauck indica que o papa frequentemente fala do diabo, “muito mais do que me lembro de Bento ter falado”. Da mesma forma, observa que os comentários de Francisco sobre a obsessão da Igreja com o casamento gay e o aborto não propuseram nenhuma mudança doutrinal real. “O papa nunca disse que essas questões não eram importantes”, alega Wauck. “Ele disse que, quando falamos sobre essas coisas, temos de falar em um contexto. Quem discordaria disso? Então, quando as pessoas estão tentando entender que tipo de homem ele é, você tem de ouvir todos os sinos, não apenas aqueles que soam como ‘Ah, ele vai mudar tudo’.”

Este é um discurso comum entre católicos conservadores sobre o papa Francisco: vocês da mídia liberal secular não estão escutando. O cardeal de Nova York Timothy Dolan, um conservador que havia sido incluído em várias listas de possíveis papas em março, também não perdeu tempo em traduzir a mensagem de Francisco, dizendo ao programa This Morning, do canal CBS: “O Papa Francisco seria o primeiro a dizer ‘Meu trabalho não é mudar o ensino da Igreja. Meu trabalho é apresentá-la da forma mais clara possível... Embora determinados atos sejam errados... sempre amaremos e respeitaremos a pessoa e a trataremos com dignidade’”.

Embora muito disso soe como pensamento ilusório, eles estão certos em uma coisa: as mudanças de tom do papa não necessariamente indicam um absurdo desvio da tradição. Francisco descartou a ordenação de mulheres, por exemplo, e ainda considera o aborto um mal, mas quem está obcecado em contextualizar Francisco faria bem em ver a coletiva de imprensa improvisada que ele concedeu em meados do ano passado a membros da imprensa do Vaticano reunidos durante o voo retornando do Rio de Janeiro (veja box ao lado).

O padre Thomas J. Reese, analista sênior do jornal esquerdista National Catholic Reporter, diz que os argumentos sobre estilo versus substância quando se trata do papa Francisco ignoram a parte essencial da questão. “Na Igreja Católica, estilo é substância”, afirma. “Somos uma igreja de símbolos. É o que chamamos de sacramento: símbolos que nos dão graça. Essas coisas realmente

importam. Então, Francisco já está mudando a Igreja de formas reais por meio de suas palavras e gestos simbólicos. Ele poderia sentar em seu gabinete, revisar o direito canônico e começar a mudar regras e regulamentos, mas não é isso que as pessoas querem que ele faça.”


Até agora, as decisões de estilo de vida humilde de Francisco como papa – andar pela cidade em um Ford Focus em vez de uma limusine Mercedes com chofer, por exemplo – têm sido maravilhosas e tudo o mais, mas os louvores dirigidos a ele podem dar a impressão de que está sendo pontuado em um sistema de curvas. Sim, é óbvio que você não deveria morar em um palácio enorme se é chefe de uma religião baseada nos princípios da caridade e compaixão e fundada por um proto-hippie sem teto, mas Francisco surpreendeu em novembro, com a divulgação de sua primeira exortação apostólica, ou ensinamento oficial por escrito. Os ataques fulminantes sobre a desigualdade de renda no Evangelii Gaudium (“Alegria do Evangelho”), de Francisco, repercutiram no mundo como uma bomba.

Ele descreve uma “cultura de prosperidade” que “nos deixa alheios” à miséria dos pobres: “Todas essas vidas paralisadas pela falta de oportunidade parecem um mero espetáculo: elas não conseguem nos comover”. Dívida, corrupção, evasão fiscal, demissões em massa (“tentando aumentar lucros reduzindo a força de trabalho e, assim, aumentando o número de excluídos”) e degradação ambiental foram atacadas. Algumas pessoas, Francisco escreveu, “continuam defendendo teorias de gotejamento”, uma crença que “nunca foi confirmada por fatos” e que “expressa uma confiança crua e ingênua no bem daqueles que têm poder econômico... Enquanto isso, os excluídos ainda estão esperando”.

Uma coisa é questionar a vontade de Deus quando se trata de moralidade sexual, mas, para os conservadores norte-americanos, atacar as sagradas doutrinas econômicas de Ronald Reagan é um pecado mortal. Sarah Palin, ex-candidata republicana a vice-presidente dos Estados Unidos, disse ao canal CNN que algumas declarações do papa “me pegaram de surpresa” e soaram “meio liberais” (mais tarde, ela pediu desculpas). O comentarista político Rush Limbaugh foi menos cordato, chamando a mensagem do papa de “marxismo puro”. Ken Langone, o bilionário cofundador da rede de lojas Home Depot, disse ao cardeal Dolan que uma reforma multimilionária da catedral de São Patrício, em Nova York, poderia ter dificuldades de financiamento se católicos ricos continuassem sendo magoados pelos comentários “excludentes” do papa.

A reação do outro lado do espectro tem sido menos complicada. “O papa Francisco é uma benção dos céus, uma voz profética disposta a ser crítica do capitalismo e do imperialismo”, afirma Cornel West, há muito tempo uma voz importante da ala esquerdista cristã. “Não quero transformar o papa em um fetiche. Ele comanda uma organização profundamente patriarcal e homofóbica da qual sou crítico, mas amo quem ele é, no que se refere ao que diz, e o impacto de suas palavras sobre forças progressivasem todo o mundo.”

Jorge Mario Bergoglio nasceu em Buenos Aires, mas os pais dele eram italianos; o pai fugiu da Itália quando o ditador Benito Mussolini tomou o poder. A família se instalou em Flores, um bairro arborizado e de classe média. Havia muitos parentes italianos por perto, incluindo um tio-avô que Bergoglio descreveu em um livro de entrevistas de 2010 como um “homem sacanamente velho” que “nos ensinou a cantar algumas cantigas bem ousadas em dialeto genovês. Isso explica por que não vale a pena repetir as únicas coisas que consigo dizer em genovês”. Buenos Aires era uma cidade cosmopolita, onde vestígios do colonialismo espanhol se misturavam com uma aspiração em adotar a cultura europeia (há uma velha piada sobre argentinos serem italianos que falam espanhol e acham que são britânicos).

Bergoglio estudou química em uma escola técnica, trabalhou em um laboratório, fez bico como segurança em um bar de Buenos Aires, amava futebol e dançava tango. Então, aos 17 anos, enquanto estava com alguns amigos, passou por uma igreja e teve uma epifania. Em uma entrevista a uma rádio de Buenos Aires, descreveu que sentiu “como se alguém tivesse me agarrado por dentro e me levado ao confessionário... Enquanto estava ali, senti que tinha de me tornar um padre, e não tive dúvidas”.

Ele não contou a ninguém sobre esse incidente nos quatro anos seguintes, continuou trabalhando e estudando, mas em 1958, aos 21 anos, entrou para um seminário jesuíta. A mãe não ficou feliz com a decisão e se recusou a visitá-lo durante anos. “Minha mãe entendeu isso como uma pilhagem”, lembrou Bergoglio. “‘Não sei, não te vejo como... você deveria esperar um pouco... É o mais velho... continue trabalhando... acabe a faculdade’, ela dizia. A verdade é que minha mãe ficou extremamente triste.” Mais tarde, ele afirmou ter se atraído pelos jesuítas por sua ênfase na obediência e na disciplina e também porque esperava trabalhar como missionário no Japão, onde os jesuítas foram os primeiros a introduzir o cristianismo, por volta de 1540, embora problemas de saúde – perdeu uma parte do pulmão depois de uma pneumonia – impedissem que ele fizesse essa viagem. Em vez disso, ensinou literatura em uma escola jesuíta, levando o grande escritor argentino Jorge Luis Borges para uma palestra e, aos 36 anos, acabou sendo indicado como superior provincial dos jesuítas na Argentina, o que significava supervisionar as atividades da ordem religiosa em todo o país. De acordo com a biografia de Paul Vallely, Pope Francis: Untying the Knots (Papa Francisco: Desatando os Nós), ele não era uma figura unânime, visto por alguns jesuítas argentinos, ironicamente, como uma volta conservadora à tradição pré-Segundo Conselho do Vaticano. Bergoglio usava a palavra “autoritarismo” para descrever seu estilo de liderança na época, admitindo: “Nem sempre fiz as consultas necessárias... Meu estilo de governo como jesuíta no começo tinha muitas falhas”.


O período dele como superior provincial coincidiu com uma das eras mais traumáticas na história argentina, a chamada “Guerra Suja”, que devastou o país após o golpe militar de 1976. Nos sete anos seguintes, o país foi governado por uma ditadura de direita; esquadrões da morte aterrorizavam a nação enquanto dezenas de milhares de civis eram dados como “desaparecidos”. A junta militar era aparentemente católica e muitos líderes da Igreja colaboravam abertamente. Um dos poucos bispos argentinos a falar contra o governo foi assassinado em um acidente de carro forjado.

Se há algo próximo de uma mancha no currículo de Bergoglio, é o comportamento dele durante esse período. Como superior provincial, tinha muito menos poder ou estatura do que um bispo, e denúncias públicas contra a junta provavelmente o condenariam à morte. Defensores argumentam que ele trabalhou efetivamente nos bastidores, arriscando a própria vida ao disfarçar como seminaristas centenas de civis que estavam na mira dos militares e retirando-os do país. No entanto, críticos acreditam que ele foi cúmplice na prisão e tortura de dois ativistas jesuítas com quem estava brigando. Bergoglio negou veementemente a acusação, insistindo que “deu o pontapé inicial” imediatamente para orquestrar sua libertação, mas um dos padres, Orlando Yorio, escreveu um livro alegando que Bergoglio os havia dedurado à junta. Yorio morreu em 2000. O outro padre, Francisco Jalics, rebate a acusação de Yorio; em outubro, encontrou com o papa em Roma e já haviam celebrado uma missa juntos. Elisabetta Piqué, que passou boa parte da carreira de jornalista cobrindo guerras, acredita em Jalics, considerando a polêmica “totalmente falsa, como sabemos agora. Bergoglio tem a consciência limpa, está em paz consigo mesmo. Ele fez o que podia”.

O autodescrito reino “autoritário” de Bergoglio terminou em banimento. Depois de seu trabalho como provincial, seus novos superiores jesuítas receberam tantas reclamações sobre sua personalidade difícil que ele acabou sendo transferido para um novo posto em Córdoba, a 720 km de distância. Ali, Vallely escreve, ele “ficou ruminando”, sentindo-se “deixado de lado e diminuído”. Os colegas que havia alienado mal podiam reconhecê-lo quando ele voltou à capital, em 1992. O “exílio” tinha forçado Bergoglio a amadurecer, suavizar, abrir a cabeça. Seis anos depois, em 1998, ele se tornou arcebispo de Buenos Aires. Prenunciando seu comportamento como papa, ele rejeitou muitas das armadilhas principescas de seu novo cargo, andando pela cidade de ônibus, morando em um apartamento simples e cozinhando as próprias refeições aos finais de semana. Um entrevistador uma vez lhe perguntou se era bom cozinheiro, e Bergoglio respondeu: “Bom, ninguém morreu ainda”. Pedia para amigos passarem CDs para fitas cassete para ele, pois tudo o que tinha em casa era um toca-fitas.

Boa parte da atenção de Bergoglio era voltada para os desfavorecidos: percorreu os piores bairros da cidade, beijou os pés de pacientes com Aids em um abrigo, ouviu confissões de prostitutas nos bancos de parques, disfarçou-se com um poncho para marchar em uma procissão de favela, enfrentou traficantes que ameaçavam um de seus padres. O marido de Elisabetta, Gerry O’Connell, também jornalista, que cobre o Vaticano para o jornal La Stampa, lembra-se de visitar a residência palaciana do arcebispo pouco depois de Bergoglio assumir o cargo. A “grandiosa sala de reunião”, onde arcebispos anteriores recebiam visitantes, agora estava repleta de caixas com roupas e alimentos para os pobres. “Foi impressionante”, diz O’Connell. “Ele transformou a sala em um armazém!”

A ascensão de Jorge Bergoglio ao topo da igreja argentina coincidiu com uma crise nacional que deixaria marcas indeléveis em seu pensamento. No ano em que assumiu o cargo, a economia da Argentina mergulhou em uma recessão brutal, uma situação que piorou quando o Fundo Monetário Internacional pressionou o governo a tomar duras medidas de austeridade. Mais da metade da população caiu na pobreza, houve tumultos e o paco, uma droga semelhante ao crack feita com resíduos de cocaína barata e aditivos como ácido sulfúrico, veneno para ratos e querosene, tomou conta das favelas. As coisas começaram a melhorar em 2003, quando o país decidiu dar calote nas dívidas com o FMI. Foi uma jogada que não passou despercebida por Bergoglio, que, no Evangelii Gaudium, detona “ideologias que defendem a autonomia absoluta do mercado... rejeitando o direito dos estados... de exercer qualquer forma de controle” e chama o endeusamento do mercado livre de “uma nova tirania... que de forma incansável e unilateral impõe suas próprias leis e regras”.

Um safanão nas forças do capitalismo global tende a focar a mente, mesmo aquela preocupada com o místico. É possível ver como “obcecar” com o casamento gay e o controle da natalidade pode começar a parecer se ater a meros “problemas de primeiro mundo”. Embora ainda seja aparentemente ortodoxo, Bergoglio fez piada com um amigo sobre líderes da Igreja que “querem enfiar o mundo inteiro dentro de uma camisinha”. Também conquistou como inimigos a presidente argentina Cristina Kirchner e seu falecido marido (e antecessor), Néstor Kirchner, envergonhando-os com denúncias de iniciativas pífias contra a pobreza e corrupção desenfreada. Um dos documentos diplomáticos dos Estados Unidos divulgados no WikiLeaks descreveu Bergoglio como um “líder da oposição”; quando houve a notícia de que ele havia sido eleito papa, aliados de Cristina Kirchner no Congresso aprovaram uma homenagem ao falecido presidente venezuelano Hugo Chávez.

Elisabetta diz que Bergoglio se tornou um antagonista conveniente para os Kirchner, que “não tinham nenhuma oposição real, então era útil para eles ter um inimigo sobre o qual falar”. Na visão da jornalista, Cristina Kirchner egoisticamente empregou uma iniciativa popular de casamento homossexual para criar discórdia com a Igreja. Bergoglio, nos bastidores, pressionou por uma concessão envolvendo uniões civis, mas não conseguiu a adesão de bispos conservadores. Uma carta particular dele descrevendo o casamento gay como “a rejeição total às leis de Deus” vazou, prejudicando sua imagem, embora Vallely, autor da biografia, argumente que ele a tenha escrito como um meio estratégico de bajular um favor dos conservadores. Marcelo Márquez, líder dos direitos dos homossexuais em Buenos Aires, enviou uma nota raivosa a Bergoglio e recebeu um telefonema dele uma hora depois. “Ele ouviu minhas opiniões com muito respeito”, Márquez disse ao The New York Times. Eles se encontraram duas vezes. Márquez contou ao futuro papa sobre seus planos de casamento e saiu dali com um presente: uma cópia da biografia de Bergoglio.


Em 27 de fevereiro de 2013, Bergoglio voou para Roma (insistindo em ficar na classe econômica, embora o Vaticano tivesse enviado uma passagem de primeira classe) e se hospedou em um hotel simples (60 euros por noite, incluindo café da manhã). Parece improvável que o cargo de papa fosse algo que Bergoglio perseguisse ou para o qual até estivesse mentalmente preparado. Ele comentou posteriormente, em um discurso privado que vazou, que havia ido a Roma “só com as roupas necessárias... Não tinha chance! Nas casas de apostas de Londres, eu estava em 44º lugar. Vejam só. A única pessoa que apostou em mim ganhou muito dinheiro, claro!”

Ao entrar no conclave, havia três favoritos reconhecidos – Bergoglio não era um deles. Praticamente todo observador do Vaticano presumiu que, embora tivesse sido considerado junto com Ratzinger no conclave de 2005, o argentino não era mais uma opção forte. Quando Bergoglio surgiu como vencedor, a mídia mundial praticamente menosprezou. Um branco de origem europeia com 70 e tantos anos: que escolha radical! Até dentro do Vaticano, ninguém sabia bem o que esperar. “Ironicamente, achei que ele seria um desastre, do ponto de vista de relações públicas, porque ele não dá entrevistas”, admite Greg Burke, ex-repórter da Fox News (e membro laico da Opus Dei), contratado por Bento para ajudar nos esforços de relações públicas da Santa Sé depois do VatiLeaks. No entanto, o cinismo normalmente infalível da mídia derreteu na presença de tanta simpatia pontifical. O papa cancelou a própria assinatura do jornal, ligou para pessoas que lhe haviam mandado cartas (“Ciao, Michele, aqui é o papa Francisco”, disse a um italiano espantado) e falou coisas boas sobre ateus.

No entanto, esse encanto disfarçava a destreza de Bergoglio – e, se a situação exige, crueldade – como operador. Elisabetta o chama de “animal político” e, realmente, nos últimos dez meses, ele mostrou ser um líder astuto, capaz de conjurar aquela velha força autoritária se ela servir a um propósito maior. Francisco começou a mudar a composição do Colégio de Cardeais, onde italianos tradicionalmente eram excessivamente representados. Sua primeira rodada de nomeações incluiu cardeais do Haiti, Nicarágua e Costa do Marfim; de seus 16 indicados votantes, nove eram da Ásia, América Latina e África. O cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano durante o pontificado de Bento XVI e retratado como um esquematizador do poder nos documentos do VatiLeaks, apoiou cardeais conservadores como Guido Pozzo (responsável pelo contato com ultratradicionalistas) e Mauro Piacenza (que supervisionou o clérigo e era conhecido como firme apoiador do celibato dos padres, o que muitos acreditam que possa mudar com Francisco). Desde então, ambos foram demovidos pelo papa. Francisco também substituiu Bertone pelo arcebispo Pietro Parolin, que disse em uma entrevista que o celibato dos padres não era um dogma da Igreja – o que significa que pode ser mudado.

Nos próximos meses, Francisco também continuará se encontrando com os oito cardeais que nomeou para uma força tarefa especial de reforma da Cúria. Além disso, montou uma comissão para lhe aconselhar sobre a melhor forma de lidar com o problema da pedofilia dentro da Igreja, de medidas preventivas à orientação às vítimas. Consultores externos foram contratados para examinar as engrenagens do Banco do Vaticano, do qual Francisco já demitiu vários oficiais (inclusive o arcebispo de São Paulo, o brasileiro dom Odilo Scherer). Quando os bispos se reunirem no terceiro trimestre para o próximo sínodo, ou assembleia geral, que se concentrará no tema da família, terão de levar em consideração os resultados de um novo questionário distribuído a paróquias católicas pelo papa, pedindo opiniões sobre casamento homossexual, sexo pré-matrimonial, divórcio e contracepção. Para uma organização tão rigidamente hierárquica como a Igreja Católica, esse aceno à democracia é profundo, e potencialmente crucial.

Em meu último domingo em Roma, retorno ao Vaticano para o Angelus semanal do papa, uma oração curta feita de uma janela no Palácio Apostólico. Fora da Praça de São Pedro, comerciantes vendem de tudo, de passeios pela Capela Sistina a pinturas de Tupac, Bob Marley e, claro, do papa. Pergunto a um vendedor, um homem alto e careca de Belize, se o aumento do público com Francisco tem sido bom para os negócios. Ele faz uma careta e balança a cabeça, depois responde em um inglês perfeito: “Nah, esse cara, tudo o que ele faz é falar sobre os pobres, então está trazendo os turistas mais pobres de lugares como a Argentina. Essa gente não tem dinheiro! Quando Ratzinger era papa, os alemães chegavam de ônibus. Eles são organizados, gastam! Agora, todo mundo quer desconto”.

Finalmente, o papa surge, acenando da janela distante, uma figura minúscula do tamanho de uma amêndoa. “Fratelli e sorelle, buongiorno [Irmãos e irmãs, bom dia]”, diz, abençoando a todos nós, a voz ecoando de alto-falantes escondidos e parecendo levemente divina. No final da oração, começa a chover – inicialmente só uma garoa fina, mas depois o céu desaba. Quando termina, ele sai do roteiro e nos diz o quanto lhe desagrada não poder estar na piazza conosco neste tempo horrível. Parece realmente estar falando a verdade.

Ele se sente solitário lá em cima? O livro de Paul Vallely descreve um homem que, quando não está entre as pessoas, leva uma existência solitária, como um monge, na qual “cuida da vida interior e não tem realmente uma social”. Essas são as palavras de um de seus assistentes mais próximos de Buenos Aires, que acrescenta: “Se você define amizade como se divertir com as pessoas, então ele não tem amigos. Amizade é uma relação simétrica, e suas relações não são assim. As pessoas acreditam ser amigas dele, mas ele nunca vai jantar na casa delas”.

Na praça embaixo de chuva, a multidão saúda seu novo amigo, o bacana papa Francisco, até que ele volte para os mistérios da cidade murada que agora comanda. Isso me faz lembrar outro momento da coletiva de imprensa no avião, quando um repórter tentou pressioná-lo sobre o casamento gay e o aborto. E qual é a posição do santo papa sobre essas questões? O drible de craque de Francisco me pareceu brilhante. “É a da Igreja”, disse simplesmente. “Sou um filho da Igreja.”

Ele não acrescentou – porque não precisava – que agora é o pai também.