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Uma estrela centenária

Com presença poderosa e enorme talento, Luiz Gonzaga subverteu as raízes humildes, criou seu próprio mito e tornou universal a música do Nordeste do Brasil

Cristiano Bastos Publicado em 13/12/2012, às 11h49 - Atualizado em 14/12/2012, às 10h08

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- - MEMORIAL LUIZ GONZAGA E GOVERNO DE PERNAMBUCO
- - MEMORIAL LUIZ GONZAGA E GOVERNO DE PERNAMBUCO

Dezembro é o mês da troca das estrelas no céu. O fenômeno astrológico é perfeito para explicar a inspiração celestial que regeu a vida e a obra de Luiz Gonzaga do Nascimento, que veio ao mundo em dezembro de 1912, uma sexta-feira 13, em Exu, sertão pernambucano. Gonzaga morreu em 2 de agosto de 1989, mês que também levou outra lenda da música brasileira, o discípulo Raul Seixas. Nasceu na fazenda Caiçara, terras do barão de Exu, segundo dos nove filhos do casal Januário José dos Santos e Ana Batista de Jesus. Na pia batismal da matriz de Exu, recebeu o nome de Luiz (por ser o dia de Santa Luzia) Gonzaga (por sugestão do vigário) Nascimento (por ter nascido em dezembro, também mês de nascimento de Jesus Cristo).

O legado do músico, também chamado de Rei do Baião, Gonzagão e Lua, ainda é colossal. E, apesar da violenta dilapidação da identidade nordestina promovida atualmente por bandas que se escondem falsamente sob o rótulo de forró, sua herança musical permanece perene e intocável. Luiz Gonzaga foi o ourives nordestino de inestimáveis e abundantes pérolas da música brasileira. E, dentre tantas, basta citar uma delas: a universal “Asa Branca”. E há outras, como “Assum Preto”, “Paraíba”, “Vozes da Seca” (premonitória canção de protesto), “Respeita Januário” (ode ao pai e ao lugar de nascença) e, uma que não é dele, “A Triste Partida”, de Patativa de Assaré.

Homem simples que sempre foi, no preâmbulo da grandiosa aventura que dedicou à música, Gonzaga trabalhou duro na lavoura. O menino gastava suas horas de folga para aprender sanfona com o pai, Januário. Aos 12 anos, o acompanhava em bailes e festas. Perto dos 18 anos, mudou-se para Crato, no Ceará, onde virou corneteiro no 23º Batalhão de Caçadores. Viajou por Minas Gerais e São Paulo até chegar ao Rio de Janeiro, no final dos anos 30. Desligou-se da vida militar e passou, então, a dedicar-se exclusivamente à música. Assinou contrato com a Rádio Nacional e, daí em diante, popularizou ritmos como xaxado, forró, coco, xote, ciranda, embolada e, claro, o baião. Depois dele, a música brasileira – especialmente a nordestina – jamais foi a mesma. Em 50 anos, Luiz Gonzaga gravou 625 músicas em 266 discos, os quais assim se dividem: 125 em 78 rotações, 79 LPs de 12 polegadas, seis LPs de 10 polegadas, 41 compactos simples e duplos, de 45 e 33 rpm; e 15 LPs de coletâneas. Das 625 músicas gravadas por ele, 53 são de sua autoria (sozinho), 243 são em parceria (Gonzaga e outros compositores) e 329 são de outros autores, sem sua participação.

Luiz Gonzaga, sem dúvida, é o guru de todos os artistas nordestinos. E, curiosamente, é um dos primeiros artistas pop do Brasil. Foi pop no sentido de criar um jeito diferente de se apresentar. Partia do regional, mas mirava no universal. Para isso, criou toda uma indumentária. “Reforço essas características do vaqueiro, do cangaceiro, do matuto, mas não sou besta, não”, o Velho Lua declarou. “É um jeito de dizer que não me envergonho do que sou, que até me orgulho de ser diferente, mas que também estou doidinho para bater um papo contigo, para interagir, para que você preste atenção em mim. Para que se renda ao meu charme.”

Gonzaga abriu caminho para todos os contemporâneos nordestinos que vieram depois dele – de Zé Ramalho e Alceu Valença a Chico César, entre tantos outros. E é Chico César quem dá o veredicto: ‘“Asa Branca’ é tão importante quanto ‘Garota de Ipanema’. Gonzaga é pop como Elvis Presley, Michael Jackson, Madonna. Tinha postura, atitude, além daqueles apetrechos – a roupa, o chapéu, os anéis, o lenço no pescoço. Todos nós, dos mais sérios aos mais loucos, pegamos uma trilha maravilhosa aberta por ele. Graças a Gonzaga nos sentimos muito à vontade no mundo como nordestinos tocando o que nos der na telha e falando do jeito que a gente quiser”. César também diz que certa vez mostrou o disco instrumental Quadrilhas e Marchinhas, de Luiz Gonzaga, para uma moça irlandesa. E ela, intrigada, perguntou: “Por que você está me mostrando um disco com música de minha terra?”. “Ficamos teimando sobre a territorialidade da música de Gonzaga: Irlanda ou Nordeste do Brasil. Concluímos que é universal”, relata.

O fato, aliás, é indiscutível. Basta lembrar que a maior influência brasileira do conterrâneo nordestino Raul Seixas, por exemplo, foi o Rei do Baião. “Luiz Gonzaga tinha um remelexo ‘elvispresleyniano’”, falou Raulzito, que publicamente aludiu e cantou Gonzaga em inúmeras ocasiões. Também foi admirado por grandes músicos, nacionais e internacionais, como Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Caetano Veloso e David Byrne. Gonzaga foi, ainda, um dos pouquíssimos artistas laureados com Prêmio Nipper, ao lado de figurões como Frank Sinatra e Nelson Gonçalves, concedido pela RCA Victor apenas aos astros com maior tempo de permanência na gravadora.


Em Pernambuco, neste mês, uma série de festejos vão comemorar em grande estilo o centenário do Rei do Baião. A cargo da Secretaria de Cultura do Estado, uma vasta programação acontecerá em Recife e Exu entre os dias 13 e 16 de dezembro. Nomes como Alceu Valença, Elba Ramalho e Fagner, entre outros, se apresentarão no Recife antigo. Em Exu, shows de Gilberto Gil, Dominguinhos e Daniel Gonzaga vão fazer a festa. Sobre os lançamentos discográficos previstos para o centenário, as gravadoras brasileiras, lamentavelmente, fazem pouco caso. A Sony/BMG – que detém quase todo o extenso catálogo (78 discos) do Lua na RCA Victor – deverá reeditar alguns títulos. Porém, apenas em 2013. Mas já está nas lojas pela Sony um álbum de duetos póstumos chamado Baião de Dois, idealizado por Fagner, que une digitalmente a voz de Gonzaga com a de artistas como Gal Costa, Ivete Sangalo e outros. A gravadora EMI, que detém os discos lançados pelo Rei do Baião na extinta Odeon, não preparou nada. Se o mercado fonográfico dorme, pelo menos a vida de Gonzaga se manteve presente na tela grande. A cinebiografia Gonzaga – De Pai Pra Filho, de Breno Silveira, já é umas das maiores bilheterias nacionais do ano – em pouco mais de um mês, arrecadou R$ 1,3 milhão.

As façanhas musicais de Luiz Gonzaga não estiveram circunscritas apenas ao Brasil. Ele também gozou de seu momento internacional. A cantora paraense Nazaré Pereira, difusora da música nordestina na capital francesa, hoje radicada em Paris, foi quem levou o Velho Lua à França pela primeira vez, em 1982. Nazaré diz que deve muito de sua carreira a ele. Gonzaga a chamava de “minha filha”, o que, de acordo com a cantora, chegava a causar ciúmes por parte das filhas verdadeiras do sanfoneiro. Juntos, escreveram “Acre Doce”, sucesso na voz de Elba Ramalho. Nazaré conta um caso engraçado sobre o Rei do Baião durante sua estadia parisiense. Ela diz que um dos hábitos dos quais Gonzaga não abria mão era de sua religiosa janta. Chegando em Paris, ele quis comer frango assado com farofa no restaurante mais chique da cidade, o mítico Bobino. Mas, como o cardápio não tinha o prato, Nazaré arrumou um jeito: foi para casa, buscou uma farofa paraense que lá tinha guardada, comprou um frango no supermercado e, ela mesma, fez a comida para o artista – na cozinha do restaurante mais chique da cidade. Falando em Elba Ramalho, a quem Gonzaga chamava de “minha cachacinha”, a paraibana conta que sua primeira participação em uma música dele foi no baião “Danado de Bom”. Resumia-se apenas a uma fala introdutória. Elba diverte-se contando: “Na música, ele falava com aquela voz bem grave: ‘Ô Elba, tá danado de quê?’. E eu então respondia: ‘Tá é danado de bom, Seu Lua!’.”

Tamanha era a fama dele que, nos anos 60, época em que vivia um período de ostracismo, nem os Beatles escaparam do falatório envolvendo Luiz Gonzaga. Em 1968, a imprensa brasileira disparou, por conta dos boatos disseminados pelo agitador cultural Carlos Imperial, o factoide: de que os Beatles gravariam “Asa Branca” – composta por Gonzaga e o parceiro Humberto Teixeira. Boato ou não, vários jornais, revistas e rádios daquela época confirmaram a história como fato. Gonzaga teria comentado: “Agora é que eu quero ver se os Beatles vendem mesmo. Minha gravação vendeu mais de dois milhões de discos”, provocou. Os rumores afirmavam que o brasileiro ganharia US$ 50 mil, no mínimo, pela liberação dos direitos ao quarteto de Liverpool. A confusão, na verdade, teria se dado por causa da música “The Inner Light”, de autoria de George Harrison, que tem uma sequência melódica próxima à de “Asa Branca”. Anos mais tarde, Gonzagão admitiu que Imperial havia aplicado o golpe. “Todo mundo queria saber a verdade: se eu tinha ganhado dinheiro com essa história toda. Não passou de uma grande mentira”, o Lua deixou bem claro.

Desde menino, Alceu Valença gostava de escutar Luiz Gonzaga nos alto-falantes de São Bento do Uma (PE), sua cidade de nascença, e sentia uma identidade muito forte com a música, o estilo e as melodias. Por ter nascido em uma região muito próxima à de Gonzaga, cresceu escutando as mesmas manifestações que ajudaram o Rei do Baião a consolidar a sua obra. O pequeno Valença escutava os aboiadores, que tangiam o gado próximo às fazendas da região, e adorava ver os cegos cantadores de feira, emboladores e cordelistas que recitavam seus versos em decassílabos. Ele enfim teve a chance de conhecer Gonzaga pessoalmente, quando o mestre foi assistir a um show dele em Juazeiro do Norte (CE). “Fiquei observando de longe, de cima do palco. Mas ele estava sem chapéu e eu achei sua cabeça muito grande. Fiquei em dúvida se era ele mesmo. Quando o show terminou, veio me abraçar. Perguntei: ‘Seu Luiz, o senhor veio fazer algum show na região?’. Ele disse, com aquele jeito peculiar: ‘Vim de novo a Exu só pra lhe ver’. Fiquei pensando: ‘Será que ele gostou do meu som, pesado, com guitarras?’. Perguntei o que ele achava da música que eu fazia. Luiz respondeu: ‘Adorei, Alceu. É uma banda de pífanos elétrica’.”

A jornalista Dominique Dreyfuss, que dirigiu a edição francesa da Rolling Stone e é autora do livro Vida de Viajante: a Saga de Luiz Gonzaga, enfatiza que a carreira do Velho Lua teve dois períodos fundamentais: a primeira, dos anos 40 até 1958, quando chegou a bossa nova (que deixou a sua música em segundo plano), e a segunda, do final do anos 1960, com a aparição dos tropicalistas (que o resgataram), até sua morte em 1989. “Ele sofreu uma fase de esquecimento e de discriminação – mas qual artista com tal longevidade não sofreu algo igual?”, argumenta. Na opinião da pesquisadora, ele voltou para as luzes da ribalta graças ao apoio da turma da tropicália, em um retorno prestigioso e prestigiado. “Para se fazer uma tal carreira é necessário ter público e, portanto, ser amado. Se Gonzaga durou tanto e com tal sucesso é porque, afinal, ele foi amado”, decreta.

A cantora e compositora Amora Pêra, filha de Gonzaguinha e neta de Gonzagão, acredita que celebrar o Seu Luiz (como ela ainda o chama), hoje, é primordial. “Ele nos lembra de um outro Brasil, um outro momento cultural. É fundador de muitas coisas. Mexeu em nosso inconsciente coletivo na parte musical, poética e estética”, divaga. Amora também opina que se não fosse o avô e mais alguns, como Oswald e Mario de Andrade, Grande Otelo, Oscarito, Dorival Caymmi, Glauber Rocha e João Gilberto, o Brasil seria completamente outro. “Gonzagão foi um bravo, um guerreiro, um desbravador e, sobretudo, um homem”, diz. “Um extremo humano. Sem tirar nem pôr, cheio de belezas e dores. Das coisas que mais me emocionam na vida é esse homem e o que ele trouxe para mim e para nós.”