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Do Subterrâneo Ao Topo

A história de como o Metallica, antes flagelado pelo Mainstream, chegou ao ponto mais alto das paradas

Por David Fricke Publicado em 22/02/2010, às 17h59

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Metallica - NEAL PRESTON/CORBIS/LATINSTOCK
Metallica - NEAL PRESTON/CORBIS/LATINSTOCK

Essa deve ser inédita. James Hetfield está sentado no lounge do hotel em que a banda está hospedada em Paris, o super-chique Saint James Club, e está usando uma gravata. Mas existem algumas circunstâncias adversas envolvidas na ocasião. O loiro e leonino guitarrista e vocalista surgiu de seu quarto com seu uniforme costumeiro - camiseta preta, jeans preto e botas pretas - empolgado para pedir a primeira cerveja da tarde, quando o maitre o informou com polidez fria: as regras do local exigem que os cavalheiros usem gravata. Hetfi eld, que canta sobre morte e destruição mas gosta de uma brincadeira tanto quanto qualquer pessoa, concordou em colocar uma gravata - por cima da camiseta. Sem mais palavra alguma, o maitre lhe deu uma gravata rosa horrível, com uma grande mancha escura, tirada de uma gaveta.

Agora Hetfield, com sua gravata e sua cerveja, está falando sobre as gravações do álbum mais recente do Metallica quando o que parece ser um homem de negócios, mais velho, norte-americano e com sinais de calvície, vem até a mesa e bruscamente interrompe a conversa. "Só gostaria de dizer que você não precisa de tudo isso para parecer ridículo", diz ele, olhando para Hetfield com frio desdém. "Sei que você normalmente não anda com pessoas que se vestem assim. Mas você é exatamente como uma criança." Hetfield mantém a civilidade até que o homem vai embora. "Coloque a gravata, tire a gravata", ele diz, seu olhos cerrados, com raiva. "Vá se foder. Vou descer pelado da próxima vez."

"Uma das primeiras coisas que as pessoas me perguntam hoje é 'Ei, vocês estão ricos de verdade?'", continua, com um resmungo, "Quem liga? Estamos hospedados neste hotel e eu odeio. Não posso vir para o bar, falar com meus amigos, tomar um drinque. Aí vem esse velho mala de merda me dizer que eu pareço um babaca. Ter dinheiro, fazer parte de tudo isso, me irrita. Gosto de ficar onde a maioria das pessoas não vai me achar, fazendo coisas sozinho ou estando com meus amigos no meio do mato, acampando ou bebendo ou fazendo qualquer outra coisa. Tenho muito tempo para refletir sobre o que toda essa merda significa e sobre o que te faz feliz."

"Há um monte de coisas das quais as pessoas se esqueceram totalmente por ficarem tão presas a tudo isso aqui", diz Hetfield gesticulando, mostrando toda a sala. "Se vestir bem, ser visto nos lugares certos, jogar a porra do jogo. Essa bosta me cansa, não tem nada a ver com a vida real, com estar vivo." Se quisesse, Hetfield poderia gastar dinheiro em bebidas no Saint James's Club até o Juízo Final e ainda dançar sobre as mesas. O Álbum Preto (Metallica é o título original) - quinto trabalho da banda e o primeiro desde o duplamente platinado ...And Justice for All, de 1988 - não só entrou na parada norte-americana em primeiro lugar, como permaneceu nesse posto por um mês, enquanto o single "Enter Sandman" galgou posições até chegar ao Top 30. O disco também emplacou no resto do mundo, liderando instantaneamente as paradas da Inglaterra, Alemanha, Suíça, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Noruega. E ainda assim, depois de anos de exclusão, sendo louvados como os jovens deuses do thrash underground e declarados os anticristos do metal, os quatro membros do Metallica - Hetfield, o baterista Lars Ulrich, o guitarrista Kirk Hammett e o baixista Jason Newsted - descobriram, para decepção do grupo, que ter um disco no topo da parada não é exatamente tudo aquilo que se espera. Como coloca Ulrich, "são só números em uma porra de papel".

Ulrich se lembra perfeitamente do dia em que soube que o Álbum Preto tinha chegado ao primeiro lugar. Ele estava em um quarto de hotel em Budapeste, onde a banda estava tocando como parte da turnê europeia do Monsters of Rock, junto com o AC/DC, quando o fax chegou, vindo do escritório da banda em Nova York. Sem fogos, sem banhos de champanhe, sem gostosas suspirando "parabéns" em seu ouvido. Nada. "Você acha que um dia algum porra vai te dizer 'O seu disco é o número 1 dos Estados Unidos' e o mundo todo vai ejacular", diz Ulrich, com uma risada cínica. "Fiquei lá no meu quarto e havia esse fax que dizia 'Vocês são o número 1'. E foi algo tipo 'Bem, ok'. Era só mais uma droga de fax do escritório."

"É bem difícil ficar empolgado com isso", continua Ulrich. "Nunca fomos muito preocupados com a carreira nesse sentido. Nunca tentamos ser os primeiros. Mas agora somos e é, sei lá, normal."

"Nunca pensei no que significa ter um álbum em primeiro lugar", admite Newsted, "porque nunca achei que fosse possível ter um álbum em primeiro lugar, considerando o tipo de música que tocamos".

Essa, é claro, é a beleza de tudo isso. Metallica, o flagelo do mainstream, começa sua segunda década de vida no topo. Não faz muito tempo que a banda representava um gênero em si própria - o Messias solitário do speed metal, idolatrado por um contingente pequeno mas atuante de discípulos, nada impressionados com o punk e decepcionados com o heavy metal farofa comercial do começo dos anos 80. Mas só em 1988 os membros do Metallica foram promovidos de pés-rapados a terror das paradas, abrindo as portas do templo do Top 10 com o mosaico tempestuoso de arrebatadores riffs de guitarra, as complexas e demoníacas mudanças de tempo e os brados apocalípticos de Hetfield em ...And Justice for All.

O fato de ter sido o Álbum Preto - um disco de músicas mais curtas e um clima maior de estúdio - a alcançar o posto de número 1 não chega a ser uma grande surpresa. "É um álbum mais fácil de se ouvir para aqueles que ainda não conheciam o Metallica", admite Hetfield. Mesmo assim, o trabalho é tudo, menos uma fuga dos extremos com que a banda está acostumada. Em Metallica, as composições foram reduzidas ao seu nível mais brutalmente básico. Um produtor de apelo comercial, Bob Rock, foi usado para deixar acessível o som mais pesado, e eles ousaram até se render ao romantismo das baladas. "Sei que chegamos ao primeiro lugar completamente em nossos próprios termos", diz Ulrich, orgulhoso, aproveitando a pausa para o chá da tarde no jardim salpicado de raios de sol do Saint James's Club (gravatas não são obrigatórias aqui). "Toda essa coisa foi feita do nosso jeito. Existe uma satisfação pessoal nisso, dar um grande 'foda-se' ao negócio em si, e a como esperam que você aja e como tivemos de lidar com toda essa merda no meio dos anos 80."

"Sei que há um monte de bandas que diziam 'Ah é, o Metallica vende um monte de discos, mas eles não conseguem tocar ou compor'", completa Ulrich. "Acabei de ler uma entrevista com Ian Astbury [do Cult] na qual ele diz que ir a um show do Metallica é como assistir a uma grande sessão de masturbação, com caras masturbando uns aos outros - e onde está a feminilidade? Ah,

faça-me o favor!"

"Por isso é um grande 'foda-se', não especialmente para Ian Astbury, mas para todas as pessoas que acharam isso por anos e anos e vinham sorrir para a gente, mas assim que iam embora estavam rindo de nós - 'Olha esses caras, o que é essa merda de thrash?'"

"Vamos, seus porras!', rosna James Hetfield enquanto Kirk Hammett entra no solo de guitarra de "Enter Sandman" com a ajuda de um pedal wah-wah. Os fãs do Metallica, vestidos de couro e jeans, pressionados contra o palco do Hippodrome de Vincennes, perto de Paris, automaticamente começam a bater cabeça, transformando seu cérebro em milk-shake, e a vigorosamente socar o ar com as mãos levantadas na tradicional saudação de Ronnie James Dio: o dedinho e o indicador esticados como os chifres de um demônio. Há só mais uma música do álbum novo no set compacto de 75 minutos do Monsters of Rock: a marcha ao estilo Black Sabbath "Sad but True". Mas a reação entusiástica é a mesma, com crescentes ondas de cabelos subindo e descendo em um uníssono fúnebre. As canções mais conhecidas são recebidas com urros de aprovação - a adequadamente intitulada "Whiplash", do seminal álbum de estreia Kill' Em All, de 1983; um medley demoníaco com "Master of Puppets" e "Seek and Destroy", com Jason Newsted fazendo participação especial nos vocais principais; a agonizante "One", de Justice; e o arrasador bis com "Battery". Mas assistir aos parisienses enlouquecerem com as músicas novas torna difícil acreditar que em sua própria casa a banda tem sido criticada por ter amenizado seu som. Para as pessoas que consideram o novo disco o início de uma linda amizade, há fãs radicais que acham que é o começo do fim. "Já encontrei fãs que acharam o álbum um lixo", diz Hammett irritado. "Amigos meus que são muito fãs disseram 'Bom, o álbum não é pesado. Vocês não são tão pesados quanto eram antes'. E eu respondi 'Cara, você está tentando me dizer que 'Sad but True' não é pesada? Que 'Holier Than Thou' não é pesada? Qual sua definição de peso?'"

Hetfield já ouviu as mesmas reclamações. "Os moleques vêm e me perguntam 'Por que vocês não fazem outro Kill 'Em All?'", conta. "E eu respondo 'É, eu gosto daquele álbum também. Mas há mais na nossa música que isso'. Ainda podemos tocá-lo ao vivo. E quando tocamos é sempre para valer, cara. Mas já temos aquelas músicas no nosso repertório. E elas vão ficar lá enquanto a banda existir."

"Mas ficar sentado aqui se preocupando se as pessoas vão gostar ou não do disco, e por causa disso se ver obrigado a escrever um certo tipo de música - você acaba compondo para os outros", continua Hetfield. "Cada pessoa é diferente. Se todos fossem iguais, ia ser chato pra caralho." O tédio foi um fator que contou na decisão do Metallica de deixar de lado o metal alucinado - capaz de quebrar pescoços - presente em Justice. "Durante a turnê, percebemos que as músicas eram longas demais", diz Kirk Hammett. Ele se lembra da turnê do disco, em 1988-89, e de olhar para a plateia quando a banda estava na metade dos dez minutos da música-título. "Todo mundo tinha aquela cara de saco cheio", diz ele. "E eu pensava: 'Droga, eles não estão se divertindo tanto quanto a gente'." Hammett admite que os integrantes da banda também estavam aborrecidos no fim da turnê: "Lembro de sairmos do palco uma noite, depois de tocar 'Justice' e um de nós dizer 'Porra, essa é a última vez que tocamos essa merda de música!'"

No começo, a existência do Metallica servia basicamente para curar o tédio juvenil. Ulrich era um promissor tenista junior dinamarquês, mais interessado em metal underground do que no esporte, quando conheceu Hetfield, um garoto da classe operária do subúrbio de Los Angeles com gostos musicais similares, na primavera de 1981. Ao fim do ano, os dois já estavam tocando juntos na sala de estar de Hetfield, com uma formação que era um protótipo do Metallica e contava com o futuro líder do Megadeth, Dave Mustaine. A banda, conta Ulrich, era basicamente um jeito de escapar "daqueles empregos que nos deixavam putos e da cena de merda que era a do heavy metal em Los Angeles". Sucesso, ao menos do tipo que rende discos de platina, não fazia parte do plano. "Quando alguém fala em Led Zeppelin, as pessoas sabem do que se trata", explica Hetfield. "Quando alguém fala em Metallica, espero que saibam do que se trata. Esse era o objetivo."

Nesse sentido, a banda alcançou sucesso instantâneo. O Metallica logo se tornou o grande expoente da então nascente fraternidade do speed metal. O começo veio com uma fita demo lançada em 1982, No Life 'til Leather. Quando Kill 'Em All foi lançado, um ano mais tarde, Kirk Hammett e o baixista Cliff Burton já faziam parte do grupo. Em 1986, Burton morreu em um acidente com o ônibus da banda, na Suécia. Mas o Metallica perseverou, recrutando Jason Newsted e gravando um EP de covers, Garage Days Re-revisited, que serviu de aquecimento antes que voltassem formalmente à ativa com ...And Justice for All.

De acordo com Ulrich, a evolução do Metallica, passando do thrash linear de Kill 'Em All para os arranjos tortuosos de Justice, foi em parte fruto da própria insegurança da banda. "Estávamos assustados com a rapidez com que as coisas estavam acontecendo", diz ele. "Não é como se tivéssemos passado cinco anos pagando nossos pecados tocando em casas noturnas. Lá estávamos nós, tocando covers, escrevendo nossas próprias músicas e, do nada, já estávamos excursionando pelos Estados Unidos, gravando um disco. Tínhamos 19 anos e já estávamos metidos naquilo tudo."

"Nos sentíamos inadequados enquanto músicos e compositores", relembra Ulrich. "Isso nos fez ir longe demais, na época de Master of Puppets e Justice>, na tentativa de provar algo para nós mesmos. 'Vamos fazer toda essa merda esquisita do jeito mais difícil para provar que somos músicos e compositores competentes'." Voltar ao básico não foi um problema para o Metallica. As 12 músicas do novo álbum foram compostas em um período de dois meses durante o verão de 1990, e Hetfield ressalta que muitas de suas contribuições para o trabalho datam da época da turnê de Justice. O riff de "Sad but True" surgiu ano passado, enquanto a banda gravava a cover do Queen "Stone Cold Crazy", que ganhou um Grammy, para a coletânea de aniversário da Elektra Records, Rubaíyát. "Podíamos ter feito mais umas 12 boas músicas usando todos aqueles riffs de Justice, espalhá-los um pouco mais", conta Hetfield.

Colocar tudo isso em prática no estúdio foi um pesadelo. Os membros do Metallica não são só perfeccionistas; são perfeccionistas fechados, defensivos e desconfiados. O grupo levou mais de dez meses até que o álbum ficasse pronto, gastou mais de US$ 1 milhão nas gravações e quase levou o produtor Bob Rock à loucura. "Eu costumava chamar James de Dr. Não", diz Rock. "Sempre que eu estava para fazer uma sugestão que era um pouco fora do padrão, ele dizia 'não' antes mesmo de eu terminar a primeira frase." Hetfield e os outros acabaram gostando do risco de dizer "sim" às vezes - por exemplo, no caso dos sutis violoncelos em "The Unforgiven" e a orquestra adicionada na última hora por Rock na atordoante balada confessional de Hetfield, "Nothing Else Matters". "Continuamos teimosos como sempre fomos", insiste Hetfield. "Só estamos um pouco mais confiantes. Não temos medo de ouvir uma sugestão e adequá-la ao nosso modo."

"Antes a gente nem queria ouvir", complementa. "Agora nós ouvimos. E só aí dizemos: 'Vá se foder'."

Esse sentimento - ou ao menos a coragem resoluta para botar para fora o que quer que seja quando vale a pena - permanece sendo o centro do modus operandi do grupo em seu repentino apelo popular. "As pessoas olham para o Metallica e pensam: 'Essa porra é de verdade'", diz Ulrich com veemência. "Eles sabem que é pra valer. Não é fabricado. Não é um produto. São pessoas reais compondo músicas reais, ficando putas, tendo certos sentimentos, escrevendo sobre eles e fazendo música sem se preocupar com as consequências."

"Tudo se resume a estar 100% envolvido no que se está fazendo", diz Hetfield, um tanto irritado, como se lhe doesse ter que repetir o óbvio. "Não tem como errar desse jeito."

Quando o Metallica estreou o novo álbum com uma enorme festa de audição no Madison Square Garden, em Nova York, Hetfield deu um jeito de se infiltrar na plateia durante "Nothing Else Matters". "Eu tinha de ver o que eles estavam achando", diz ele, meio envergonhado. "Precisava saber se eles estavam se matando ou matando uns aos outros. Ou dormindo..." O vocalista ficou surpreso ao notar que ninguém estava fazendo nada disso. "Eles estavam prestando muita atenção", Hetfield diz, sem disfarçar seu contentamento. "Estavam escutando o que a música dizia."

O Metallica já havia escrito baladas anteriormente - canções sombrias e melancólicas, pontuadas por passagens de guitarra explosivas, como "One" e "Fade to Black", a visão aterradora de Hetfield sobre a desoladora falta de esperança que leva ao suicídio. E Hetfield, que escreve todas as letras, jamais se furtou a usar de sua própria experiência pessoal para demonstrar um ponto de vista; "Dyers Eve", em Justice, e "The God That Failed", no Álbum Preto, são baseadas em suas difíceis experiências adolescentes como filho incrédulo de um casal membro da Ciência Cristã. Mas "Nothing Else Matters" é diferente de tudo que Hetfield já compôs - e de qualquer coisa que o Metallica já ousou gravar. É a admissão cândida de uma afeição romântica e de uma fidelidade sólida, relatada com uma sinceridade emocionada, muito distante da costumeira postura feroz de Hetfield. É, em resumo, uma canção de amor. E Ulrich ficou impressionado quando a ouviu pela primeira vez, em uma das fitas demo de Hetfield. Ao contrário de fãs e críticos, que ficaram espantados com a versão final mostrada no álbum, Ulrich não se surpreendeu. "Nada que ele faz me surpreende", diz o baterista. "Acho que muita gente ficou surpresa por causa do jeito que ele é, de como mantém tudo muito fechado dentro de si. Mas eu sei que há muitas coisas ali. Sei que é só uma questão de surgir o momento em que ele se sente bem reconhecendo isso." Para Hetfield, foi uma questão de admitir algo para si mesmo. "Essa música surgiu em um momento em que eu estava só, eu e meu violão, na estrada", conta. "Foi em algum lugar do Canadá, acho. Só me sentei no quarto e trabalhei nela. Era pessoal. Toquei para mim mesmo. E aí a toquei para Lars e ele disse 'Cara, isso é muito legal'. E eu pensei 'É mesmo'."

"Cada um tem sua interpretação sobre o amor", prossegue Hetfield. "Para alguns, amor é dormir com alguém submisso. Para outros, é apenas estar com a outra pessoa. Amor para mim é poder depender de alguém, especialmente na estrada. É fácil se perder ali. E aí você vai para casa e percebe: 'É, aqui é minha base. É aqui onde eu começo e é aqui onde eu vou terminar'." "É uma música perigosa", argumenta Hetfield. "É preciso ter coragem para compor algo assim. Não é o tipo de música que deveríamos estar fazendo. E aí você vira e diz: 'Ah é? Quem disse que não poderíamos? É a gente quem manda aqui'."

Considerando a longa reputação que Hetfield tem, inclusive entre os integrantes da banda - de teimoso e intimidador -, "Nothing Else Matters" é uma admissão rara de vulnerabilidade emocional. Por ser uma das primeiras a ser sugerida para a inclusão no Álbum Preto, a música também ofereceu a Hetfield e Ulrich - os compositores da banda - uma fuga do beco sem saída das composições de protesto em que haviam chegado depois de ...And Justice for All. "Passamos pelos nossos 'anos de CNN', como os chamamos. Quando eu e James nos sentávamos no sofá, assistíamos à CNN e dizíamos 'É, podemos escrever sobre esse novo turbilhão político'", relembra Ulrich. "Essa coisa de política já deu. Alguns dos temas do último álbum eram coisas que me deixavam puto. Eu lia sobre as listas negras que estavam fazendo, a gente arrumava um título, 'The Shortest Straw', e a música surgia a partir disso."

"Desta vez as músicas são um resultado do que se passa com o James", continua Ulrich. "Você pode olhar em volta procurando coisas que te enlouquecem e escrever sobre elas. Desta vez se trata de olhar para dentro, para todas as experiências que passamos."

Ironicamente, a faixa do Metallica que vem causando mais polêmica é a contemporânea "Don't Tread on Me". Críticos que aplaudiram Hetfield por seu corajoso retrato psicológico de um veterano de guerra terrivelmente mutilado em "One" voltaram-se contra ele quando ele supostamente levantou a bandeira do patriotismo exagerado e insensível pós-Guerra do Golfo nessa canção. A banda ficou chocada com a reação. "Nos chamaram de ufanistas - que é uma palavra que tivemos de procurar no dicionário", conta Hammett, rindo. O caso é que Hetfield escreveu a música em agosto de 1990, antes da invasão do Kuwait, e a bandeira a que eles aderem não é exatamente a norte-americana, e sim a de uma milícia formada em Culpeper, na Virgínia, durante a Revolução Americana, que trazia o lema "Don't tread on me" (algo como "não ouse pisar em mim") e uma cobra enrolada nele. Uma réplica da bandeira ficou pendurada no estúdio durante toda a gravação do disco, e a mesma cobra aparece na capa do Álbum Preto.

A verdade é que se Hetfield pode ser culpado de algo, é de ter escolhido terrivelmente mal a hora de lançá-la e de expor pontos de vistas confusos. Ele defende que "Don't Tread on Me" é uma reação ao que ele agora sente ter sido um tom exageradamente antinorte-americano em ...And Justice for All. "É tipo: 'Ah, que bando de reclamões'", diz Hetfield. "Este é o outro lado. Os Estados Unidos são um lugar bom pra cacete. Acho mesmo isso. E esse sentimento vem de ter excursionado tanto.Você descobre o que gosta em certos lugares e percebe por que vive nos Estados Unidos, mesmo com todas as merdas horríveis. Ainda é o melhor lugar para viver."

"Já nos odiaram por coisas piores", completa Hetfield dando de ombros. "Se eles não gostam do Metallica por causa do que eu disse em uma música, então estão mesmo na merda." Ulrich avisa para não levarem tudo isso tão a sério. Esta é, afinal, uma banda conhecida em alguns círculos do heavy metal mais por seus talentos etílicos do que por sua profundidade. E que em certo ponto de sua carreira carregou com orgulho o apelido de Alcoholica. "Houve sempre essa coisa conosco, essa consciência social, sobre como somos sérios", diz Ulrich. "Isso é ótimo, mas há outros lados nesta banda. Posso me arrastar pelos corredores de um hotel pelado às 4h da manhã. Não terminamos todas as noites desse jeito, mas ainda acontecem coisas assim."

Há basicamente dois tipos de fãs do Metallica: os garotos que curtem a música e os garotos para quem curtir a música é um modo de se revoltar contra - entre outras coisas - a escola, os pais, seu trabalho e as autoridades em geral. Para estes últimos, músicas como "Battery", "Seek and Destroy"e "Harvester of Sorrow" representam o som de sua própria raiva, impotente ou não, rebatendo de volta para eles próprios com a força de um avião em velocidade máxima. Em 28 de setembro, uma semana depois do show em Paris, a banda tocou para o que pode ser considerado o público perfeito para o Metallica: um campo de pouso cheio de jovens russos sedentos pela vibração da música e cheios de revolta. O show gratuito, que fazia parte do Monsters of Rock e realizado na periferia de Moscou, foi produzido pela Time Warner (que filmou o acontecimento para lançamento posterior em vídeo) e apresentado pelas autoridades russas como um gesto de gratidão aos jovens que tiveram um papel crucial no impedimento da tentativa de golpe em 19 de agosto. O público estimado variou de 150 mil a quase meio milhão, mas o verdadeiro show, segundo Ulrich, aconteceu na noite anterior ao concerto.

Depois de dar entrada no hotel e tomar algumas cervejas, algumas pessoas da comitiva do Metallica, incluindo Ulrich e Hammett, chamaram táxis e foram para a cidade. Viram a troca da guarda no túmulo de Lênin às 2h da manhã e então seguiram para o lugar próximo à Casa Branca Russa, onde três pessoas foram mortas por soldados no auge de uma crise durante um dramático confronto entre os militares e um exército improvisado pelos moscovitas. "Havia uns caras prestando homenagem aos mortos", relembra Ulrich, recuperando-se do jet lag em sua casa, em São Francisco, dois dias depois do show. "Eles tinham levantado um acampamento na praça onde os garotos foram mortos. Perguntamos o que havia acontecido. Eles nos levaram para uma caminhada, mostrando onde haviam ficado as barricadas e onde haviam acontecido as mortes. Disseram que estavam assustados porque achavam que

aquilo voltaria a acontecer, só que dez vezes pior."

"Isso colocou muita coisa em perspectiva", continua Ulrich. "Você tem essa viagem de rockstar, ficando em hotéis e reclamando porque seu quarto é menor que o dos outros caras. E aí você compara com isso e percebe que é uma questão de vida ou morte." E, de certo modo, uma questão de rock'n'roll. Ulrich ficou impressionado e emocionado pelo fato de que, para aqueles jovens, a música era uma genuína fonte de força, não um produto de consumo. Sua noite no acampamento também colocou o sucesso do Metallica sob uma perspectiva mais sóbria. "Foi estranho porque lá estávamos nós, número 1 em todo o resto do mundo", diz ele. "E, sentados ali naquela praça, não significava porra nenhuma se tínhamos vendido dois milhões de discos na primeira semana nos Estados Unidos ou não. Falamos com aqueles garotos e o que eles queriam era liberdade. Tinham os mesmos desejos e anseios de nossos fãs de qualquer outro lugar. E não importava se éramos número 1 ou mil."

"Me lembro de um garoto no hotel", continua Ulrich. "Eu estava passando pela recepção, ele entrou e ficou parado na minha frente, chorando. 'Você não sabe o que significa para mim vocês terem vindo aqui'. Fiquei lá parado olhando para ele. Eu não sabia nem como expressar como eu me sentia. Aqueles garotos estavam tão gratos por termos ido até lá, e foi muito significativo poder pensar que, talvez, nossa música tenha dado a eles algo em que se apoiar."