TRAIU O MOVIMENTO?

O polêmico show elétrico de Bob Dylan, retratado em Um Completo Desconhecido

Músico causou enorme controvérsia no cenário folk da época após simplesmente se apresentar usando guitarra em vez de violão

Igor Miranda (@igormirandasite)

Publicado em 27/02/2025, às 12h02
Bob Dylan durante o Newport Folk Festival em 1965 - Foto: Alice Ochs / Michael Ochs Archives / Getty Images
Bob Dylan durante o Newport Folk Festival em 1965 - Foto: Alice Ochs / Michael Ochs Archives / Getty Images

Um dos momentos de maior destaque na cinebiografia Um Completo Desconhecido é a reprodução do polêmico show de Bob Dylan na edição 1965 do Newport Folk Festival, realizado na cidade de mesmo nome no estado americano de Rhode Island. Durante o tradicional evento de música folk, o artista resolveu se apresentar com uma banda utilizando instrumentos elétricos, abdicando dos violões para dar lugar às guitarras.

Parece besteira atualmente, mas tratava-se de uma “heresia” naqueles tempos. O rock dividia opiniões em meio a parcelas mais tradicionais da sociedade — e o folk era visto como um refúgio para quem ainda queria ouvir música considerada tradicional.

Apesar de algumas alterações propositais para dar encaixe à trama, Um Completo Desconhecido reproduz com certa fidelidade a revolucionária apresentação de Dylan no evento. Ainda assim, a Rolling Stone Brasil revisita essa história, até mesmo para apresentar alguns detalhes que, claro, não daria tempo de o filme destacar.

Bob Dylan durante o Newport Folk Festival em 1965
Bob Dylan durante o Newport Folk Festival em 1965 - Foto: Alice Ochs / Michael Ochs Archives / Getty Images

Antecedentes

Fundado em 1959, Newport Folk Festival teve uma segunda edição em 1960. Deu uma pausa e retornou em 1963, quando Bob Dylan esteve entre as atrações e obteve ótima recepção ao tocar “Blowin’ in the Wind” com Joan Baez e o trio Peter, Paul e Mary, além de outros artistas. No evento seguinte, tocou With God on Our Side e Mr. Tambourine Man e também agradou, mas começou a dividir opiniões por sua personalidade, digamos, “brincalhona”.

Também em 1964, Johnny Cash fez um show com instrumentos elétricos, claramente inspirando Bob em sua postura futura. Porém, Cash já era visto como um rebelde. Dylan, por sua vez, havia se tornado uma espécie de “queridinho” daquela geração, inclusive ajudando a renovar o interesse pela música folk especialmente com os álbuns The Freewheelin’ Bob Dylan (1963) e The Times They Are a-Changin’ (1964).

Johnny Cash no Newport Folk Festival de 1964
Johnny Cash no Newport Folk Festival de 1964 - Foto: Gai Terrell / Redferns

Inspirado por essa movimentação de Cash e especialmente pelo novo momento que o rock and roll vivia, Dylan lançou em 1965 Bringing It All Back Home, com parte das faixas gravadas ao lado de instrumentistas de rock. Ou seja: em formato elétrico. Deste trabalho vieram músicas como “Subterranean Homesick Blues”, “Maggie’s Farm”, “She Belongs to Me” e “On the Road Again”.

Alguns meses depois, aconteceu o Newport Folk Festival daquele ano. Pouco tempo antes da apresentação que entraria para a história, Dylan soube que o organizador do evento, Alan Lomax, fez críticas à Paul Butterfield Blues Band, uma das atrações, por apresentar-se com instrumentos elétricos. Incomodado, o artista resolveu mudar a programação: ele iria fazer um set acústico no festival, mas um dia antes, decidiu tocar com guitarras e apoiado por músicos de rock. A banda foi rapidamente montada e Dylan ensaiou com os colegas apenas uma vez, na noite anterior.

O show de Bob Dylan no Newport Folk Festival

Domingo, 25 de julho de 1965. Hora de fazer história. Escalado entre duas atrações mais tradicionais — Cousin Emmy e Georgia Sea Island Singers —, Bob Dylan subiu ao palco junto a Barry Goldberg (piano/órgão) e três membros da então criticada Paul Butterfield Blues Band: Mike Bloomfield (guitarra), Jerome Arnold (baixo) e Sam Lay (bateria). Além disso, Al Kooper tocou teclado em “Like a Rolling Stone”.

Era a primeira vez que Dylan se apresentaria em formato elétrico. O set contou com cinco músicas em duas seções distintas. Primeiro, eles tocaram “Maggie’s Farm”, “Like a Rolling Stone” e “Phantom Engineer” (uma versão anterior de “It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry”) como banda, com guitarras e tudo o mais. Depois, Bob retornou sozinho para um bis acústico, executando “It’s All Over Now, Baby Blue” e “Mr. Tambourine Man”. Uma performance bem reduzida, praticamente a metade do que deveria ter durado.

Bob Dylan durante o Newport Folk Festival em 1965
Bob Dylan durante o Newport Folk Festival em 1965 - Foto: Alice Ochs / Michael Ochs Archives / Getty Images

A reação se mostrou dividida, para dizer o mínimo. Partes da plateia vaiaram a apresentação praticamente desde os primeiros compassos da música de abertura. Mas também dá para ouvir aplausos. Nem todo mundo repudiou. Quando Dylan e a banda saíram de cena após “Phantom Engineer” — no que parecia ter sido o fim do show —, o próprio mestre de cerimônias, Peter Yarrow, implorou pelo retorno do artista, que, apupos à parte, havia saído por não estar com uma gaita de tom correto.

A parte final do set, com “It’s All Over Now, Baby Blue” e “Mr. Tambourine Man” tocadas por Dylan solitariamente no violão, recebeu enorme aclamação. Nada de vaias nesta parte.

As razões para as vaias

Não é unânime a versão de que Bob Dylan recebeu vaias por estar se apresentando com instrumentos elétricos. Tem quem defenda que muitas pessoas reagiram negativamente à qualidade ruim do som, especialmente dos vocais, que soavam distorcidos.

O também músico Pete Seeger, interpretado por Edward Norton em Um Completo Desconhecido, queria cortar o som de Dylan justamente pela questão da qualidade. Numa carta enviada a 1990 para Bob, ele chegou a dizer que, por décadas, foi acusado injustamente de tentar encerrar o set do amigo em função dos instrumentos elétricos. “Neguei isso tantas vezes… na verdade, fiquei furioso com o som distorcido, pois ninguém conseguia entender a letra de Maggie’s Farm, declara em um dos trechos.

Um Completo Desconhecido ainda retrata a iniciativa de um fã no Newport Folk Festival em chamar Dylan de “Judas!” por estar supostamente “traindo” o movimento. Isso aconteceu, mas não nesse evento e sim durante um show em Manchester, na Inglaterra, em 1966.

Pós-Newfolk

O Newport Folk Festival continuou a acontecer anualmente até 1969. Depois, teve novo intervalo, retornando em 1985 e segue até hoje. Bob Dylan retornaria ao palco do evento apenas 37 anos depois, em 2002. Curiosamente, apresentou-se usando uma peruca e uma barba de mentira.

De imediato após seu show no evento de 1965, o artista seguiu com sua proposta revolucionária de unir folk e rock. Suas turnês realizadas naquele ano e em 1966 continuaram a receber reações mistas — incluindo a já mencionada ocasião em Manchester, com um grito de Judas que extraiu do artista a resposta “não acredito em você, você é um mentiroso” e a reação à sua banda de apoio: “toquem bem alto!”.

Na tour, cujo repertório se dividia entre formatos acústico e elétrico, o músico era acompanhado pela banda de apoio The Hawks, que não muito tempo depois se tornaria a The Band. Não era o plano inicial: do grupo em questão, ele trouxe apenas o guitarrista Robbie Robertson e o baterista Levon Helm, pois havia mantido Al Kooper no teclado e contratado o baixista Harvey Brooks, dupla que tocou em Highway 61 Revisited (1966). Porém, Kooper abandonou a tour logo no início devido às reações negativas.

Tanto Al quanto Harvey foram substituídos pelos demais membros da The Hawks/futura The Band: Rick Danko (baixo), Richard Manuel (piano) e Garth Hudson (órgão). Com o tempo, Helm também se preocupou com a hostilidade de parte da plateia e saiu, tendo sua vaga ocupada por Bobby Gregg, Sandy Konikoff e Mickey Jones. Fato é que Levon retornaria quando The Hawks se tornou The Band e também fez história com álbuns próprios, que se tornariam clássicos do roots rock.

The Band em 1971: (E-D) Rick Danko, Robbie Robertson, Levon Helm, Richard Manuel e Garth Hudson
The Band em 1971: (E-D) Rick Danko, Robbie Robertson, Levon Helm, Richard Manuel e Garth Hudson - Foto: Gijsbert Hanekroot/Redferns

Por falar em material gravado, os discos de Bob nesse período também estão entre os mais importantes de sua carreira. Highway 61 Revisited (1965) e Blonde on Blonde (1966) apresentam faixas como “Like a Rolling Stone”, “From a Buick 6”, “Tombstone Blues”, “Desolation Row”, “One of Us Must Know (Sooner or Later)”, “Rainy Day Women #12 & 35”, entre tantas outras que se consagraram como clássicas.

Dylan promoveu uma mudança até mesmo no Newport Folk Festival. Na edição de 1966, rolaram vários shows com instrumentos elétricos, de atrações como Chuck Berry, Howlin’ Wolf e Lovin’ Spoonful. Diferentemente de Bob, eles não foram vaiados.

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