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Notícias / RS 15 ANOS

O dia em que Bob Dylan revelou sua "verdadeira" identidade [Arquivo RS]

No aniversário de 80 anos do icônico bardo, relembre a mais misteriosa entrevista que ele concedeu à Rolling Stone

Mikal Gilmore | Tradução: Ana Ban Publicado em 24/05/2021, às 10h36

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Bob Dylan performa em tributo a Michael Douglas, em 2009, nos estúdios da Sony (Foto: Kevin Winter / Getty Images for AFI)
Bob Dylan performa em tributo a Michael Douglas, em 2009, nos estúdios da Sony (Foto: Kevin Winter / Getty Images for AFI)

Como parte da celebração dos 15 anos da Rolling Stone no Brasil, fui convidado a resgatar e contextualizar as melhores reportagens publicadas na história da revista desde 2006. Dando início aos trabalhos, nenhum tema parece mais adequado do que Bob Dylan, que completa 80 anos nesta segunda-feira (24).

Na entrevista a seguir, publicada na edição 73 [outubro de 2012], o icônico bardo revela ao repórter Mikal Gilmore sobre um suposto processo de "transfiguração" que teria sofrido após um acidente de motocicleta em 1966. Foi a primeira vez em que Dylan falou publicamente sobre o assunto, e apesar de oferecer pistas e detalhes, suas palavras soam insuficientes para esclarecer a questão. Enigmático e obtuso, Dylan apenas cumpriu o que costuma fazer de melhor em entrevistas: fortalecer a espessa aura de mistério sobre sua imagem e obra – e é por essas e outras que ele se mantém tão fascinante quanto necessário atualmente. 
Pablo Miyazawa, ex-editor-chefe da RS Brasil 



"E
stou tentando explicar algo que não pode ser explicado”, diz Bob Dylan. “Preciso da sua ajuda.” Estamos em um dia do alto verão, mais ou menos uma hora antes de anoitecer, acomodados em uma mesa de um pátio sombreado, nos fundos de um restaurante em Santa Monica. As roupas de Dylan são mais quentes do que a Califórnia pede, com uma jaqueta de couro fechada por cima de uma camiseta branca grossa. Também usa um gorro de esqui puxado por cima das orelhas e bem baixo na testa. Uma franja de cabelo desgrenhado loiro meio avermelhado, obviamente uma peruca, sai em cachinhos pela frente do gorro, por cima das sobrancelhas dele. Há um copo de água gelada na frente dele.

Nos 15 anos que se passaram desde o álbum Time Out of Mind, de 1997, Dylan – ele hoje está com 71 anos – viveu o período de maior criatividade contínua de sua vida. O novo álbum, Tempest, conta histórias de fins mortais, ausência de fé moral e graça conquistada a duras penas (ainda que arbitrária), que culmina em um épico rodopiante de 14 minutos a respeito do Titanic, misturando fato e fantasia, seguido por uma música adorável e mística a respeito do amigo já morto John Lennon.

É improvável, no entanto, que Dylan algum dia vá eclipsar a fama de sua explosão de música e estilo na década de 1960, que o transformou em força mítica definitiva daquele tempo. Mas houve momentos em que Dylan não se sentiu à vontade com os efeitos dessa reputação. Em 1966, depois de uma série de performances eletrizantes, estonteantes e controversas, o jovem herói se retirou de seu próprio auge quando foi forçado a pegar leve por um acidente de motocicleta em Woodstock. Os trabalhos que marcaram seu retorno no final da década de 60 – John Wesley Harding e Nashville Skyline – davam a impressão de que Dylan tinha se tornado outro homem. Na verdade, hoje ele diz que ele era isso mesmo – ou melhor, era nisso que estava se transformando. A crença de Bob Dylan em relação ao que aconteceu depois de sobreviver a esse ponto de mutação radical é algo muito mais transformador do que ele jamais revelou. Ele tratou do acorrido de maneira superficial em sua autobiografia de 2004, Crônicas, Volume 1, mas, nesta entrevista, a questão assumiu implicações mais profundas.

Em certos momentos, eu forcei algumas perguntas e Dylan devolveu na base da força. Demos prosseguimento à conversa ao longo de vários dias seguintes, por telefone e por meio de algumas respostas escritas. Dylan não se cerceou nem tentou se proteger à medida que avançávamos. Foi bem o contrário: ele se abriu sem pestanejar, sem se desculpar. Este é Bob Dylan como você nunca viu antes.

***

Você considera Tempest um álbum tão relevante quanto Time Out of Mind ou Love and Theft?
Tempest foi igual a todos os outros: as músicas simplesmente combinaram. Mas não é o álbum que eu queria fazer. Eu tinha outro em mente. Queria fazer algo mais religioso. Exige muito mais concentração – para conseguir fazer isso dez vezes com o mesmo fio – do que um álbum como o que eu acabei produzindo, em que vale tudo e você simplesmente precisa acreditar que vai fazer sentido.

Ainda assim, parece estar entre as suas maiores obras, como Time Out of Mind, apesar de ser mais voltado para fora, menos voltado para dentro.
Bom... o álbum Time Out of Mind foi o início da minha fase de fazer álbuns para o público que me assistia noite após noite. Era gente diferente, com trajetória de vida diferente, ambientes e idades diferentes. Não havia motivo para essas pessoas novas ficarem escutando canções que eu tinha composto 30 anos antes, por motivos diferentes. Se eu quisesse prosseguir, precisava de novas canções, e precisava compô-las, não necessariamente para fazer álbuns, mas para tocar para o público.
As canções de Time Out of Mind não foram feitas para escutar em casa. A maior parte das canções funciona; já antes, talvez os discos fossem melhores, mas as canções não funcionam. Então, vou me ater ao que fiz depois de Time Out of Mind em vez do que fiz nas décadas de 70 e 80, em que as músicas simplesmente não funcionam.

O álbum foi recebido claramente como um ponto de mutação. Deu início a uma onda contínua de vitórias. Tudo desde então se transformou em um corpo de obra que se sustenta sozinho.
Espero que sim. A ideia é que se conecte com as pessoas. O negócio é que tem o que é velho e o que é novo, e é necessário conectar-se com os dois. O velho vai embora e o novo entra, mas não existe uma fronteira definida. O velho ainda está rolando enquanto o novo entra em cena, às vezes sem que ninguém perceba. O novo vai se sobrepondo ao mesmo tempo em que o velho vai enfraquecendo. A coisa se desenrola assim. Eternamente, ao longo dos séculos. Cedo ou tarde, antes que se perceba, tudo é novo, e o que aconteceu com o velho? É igual a um truque de mágica, mas é necessário conectar-se a isso.
É a mesma coisa que acontece quando se fala sobre a década de 1960. Se você nasceu mais ou menos nessa época, vai saber que o início dos anos 60 até talvez 64, 65, na verdade era a década de 1950, o final dos anos 50. Ainda estávamos nos anos 50, ainda era a mesma cultura, pelo menos nos Estados Unidos. E ainda tinha muita força, mas já enfraquecendo. Em 1966, provavelmente os novos anos 60 começaram a chegar em algum ponto daquela época e já tinham dominado tudo até o fim da década. Então, na época de Woodstock, já não existia mais década de 50. Eu na verdade não fiz muito parte do que chamam de “década de 60”.

Parece que você não gosta da década de 1960.
A década de 1950 foi um período mais simples, pelo menos para mim e para a situação em que eu me encontrava. Eu não passei pelas coisas que muitas pessoas da minha idade passaram, nas cidadezinhas e cidades mais mainstream. Eu cresci o mais longe possível do centro cultural. Era bem longe do caminho batido.
Mas a gente podia circular pela cidade toda e não parecia haver tristeza nem medo nem insegurança. Eram só bosques e céu e rios e riachos, inverno e verão, primavera, outono. A mudança das estações. A cultura era principalmente de circos e de parquinhos de diversões itinerantes, pregadores e pilotos que faziam acrobacias com aviões, apresentações de caipiras e comediantes, big bands e essas coisas. Programas de rádio de muita força e música de rádio de muita força. Isso foi antes dos supermercados e dos shopping-centers e dos cinemas multiplex e de todo o resto. Sabe, era muito mais simples. E quando a sua infância é assim, isso fica com você. Então eu fui embora, acho, lá pelo fim da década de 50, mas vi e senti muita coisa dos anos 50 que me impulsionam até hoje. Eu meio que sou isso. Acho que os anos 50 devem ter acabado mais ou menos em 65. Realmente não tenho sentimentos calorosos por aquele período. E por que teria? Aquela época foi cruel.

Por quê? Será que estar no centro ardente de tudo foi agito demais para você?
É, isso e mais um monte de coisa. Tudo estava começando a se tornar corporativo. Não devia fazer muita diferença para mim, mas também estava acontecendo com a música. E eu adorava a música, de verdade. Eu vi a morte do que eu adoro e de um certo modo de vida que eu tinha tomado como correto.

No entanto, as pessoas achavam que a sua música falava aos anos 60 e também refletia a época. Acha que é esse o caso em relação à sua música desde 1997?
Claro, a minha música sempre se refere a uma época recente. Mas não vamos nos esquecer de que a natureza humana não está atrelada a um momento específico na história. E que sempre começa por aí. As minhas canções são música pessoal; não são comunais. Eu não ia querer que as pessoas cantassem junto comigo. Soaria estranho. Não estou brincando de tocar violão em volta da fogueira. Não me lembro de ninguém cantar junto com Elvis, ou Carl Perkins, ou Little Richard. Você precisa fazer com que as pessoas sintam suas próprias emoções. Um intérprete, quando faz o que deve fazer, não sente absolutamente emoção nenhuma. O intérprete possui um certo tipo de alquimia.

Você não se considera uma voz especialmente norte-americana – pela maneira como suas músicas fazem referência à história ou fizeram comentários sobre ela?
Elas são históricas. Mas também são biográficas e geográficas. Elas representam um estado mental específico. Um território específico. O que os outros pensam a meu respeito ou sentem em relação a mim é totalmente irrelevante. Da mesma maneira que é para mim quando vou ver um filme, digamos, O Morro dos Ventos Uivantes ou algo assim, e acabo sendo obrigado a ficar pensando como Laurence Olivier é na vida real. Quando vejo um ator no palco, não penso em como eles são. Estou ali porque quero esquecer a respeito de mim mesmo, esquecer a respeito das coisas com que eu me importo ou com que não me importo. O entretenimento é uma espécie de esporte. [Dylan de repente parece animado] Deixe-me mostrar uma coisa. Quero mostrar uma coisa para você. Talvez isso o interesse. Talvez leve isso a algum lugar. Pode ser que você reescreva suas perguntas, ou pense em novas [risos]. Deixe-me mostrar uma coisa. [Ele se levanta e vai até outra mesa]

Quer que eu vá junto?
Não, não, não, já peguei. Achei que isto poderia interessar a você. [Ele leva um livro encadernado em brochura bem gasto até a mesa] Está vendo este livro? Já ouviu falar deste cara? [Ele me mostra Hell’s Angel: The Life and Times of Sonny Barger and the Hells Angels Motorcycle Club, de Sonny Barger]

Já sim, claro.
Ele é um Hells Angel.

Ele foi “o” Hells Angel.
Olhe só quem escreveu este livro. [Aponta para o nome dos coautores, Keith Zimmerman e Kent Zimmerman] Esses nomes lhe dizem alguma coisa? Parecem familiares? O que você acha? Daí você fica pensando: “O que isso tem que ver comigo?”. Mas eles de fato parecem familiares, não é mesmo? E são dois. Não são dois? Será que um não basta? Certo? [Dylan agora está sentado e sorri]
Vou fazer uma referência a um lugar aqui. [Ele abre o livro em uma página com a ponta dobrada] Leia isto em voz alta. Apenas leia para o seu gravador.

“Um dos primeiros presidentes dos Berdoo Hells Angels foi Bobby Zimmerman. Quando estávamos voltando para casa depois do Bass Lake Run de 1964, Bobby estava em sua posição de costume – na frente, à esquerda – quando o escapamento caiu da moto dele. Ele achou que dava para voltar e pegar, por isso fez um retorno rápido na frente da turma. No mesmo momento, um Richmond Hells Angel chamado Jack Egan queria passar de trás do grupo para a parte da frente. Egan estava do lado errado da estrada, ultrapassando uma fila comprida de motos em alta velocidade, bem quando Bobby fez o retorno dele. Jack foi para cima do coitado de Bobby e o matou no mesmo instante. Nós arrastamos o corpo sem vida de Bobby para o acostamento da estrada. Não havia nada que pudéssemos fazer além de mandar alguém até a cidade para buscar ajuda.” Coitado do Bobby.
É, coitado do Bobby. Sabe como isso se chama? Chama-se transfiguração. Já ouviu falar disso

Já.
Bom, está olhando para alguém assim.

Alguém que... foi transfigurado?
É, absolutamente. Eu não sou igual a você, sou? Também não sou igual a ele. Não sou como tantos outros. Só sou igual a outra pessoa que foi transfigurada. Quanta gente assim ou como eu você conhece?

Quando diz transfiguração, está falando no sentido de se transformar? Ou está falando de transmigração, quando uma alma passa para outro corpo?
Não estamos falando de transmigração. Isso é outra coisa. Eu sofri um acidente de motocicleta em 1966. Já expliquei a você sobre novo e velho. Certo? Então, você pode juntar tudo isso como bem entender. Pode trabalhar com isso do jeito que quiser. Transfiguração: pode pegar e aprender a respeito disso com a igreja católica, pode aprender sobre isso em alguns livros místicos antigos, mas é um conceito real. Vem acontecendo ao longo das eras. Ninguém sabe com quem isso aconteceu nem por quê. Mas há provas verdadeiras aqui e ali. Não é uma coisa com que se pode sonhar e pensar. Não é a mesma coisa que criar uma realidade nem igual à reencarnação – nem quando talvez você pense que é alguém do passado, mas não tem provas. Não tem nada a ver com passado ou com futuro.
Então, quando você faz algumas das suas perguntas, está fazendo-as para uma pessoa que morreu há muito tempo. Está fazendo perguntas a uma pessoa que não existe. Mas as pessoas cometem esse erro a meu respeito o tempo todo. Eu já vivi muita coisa. Já ouviu falar de um livro chamado No Man Knows My History [Nenhum homem conhece a minha história]? Fala sobre Joseph Smith, o profeta mórmon. O título poderia se referir a mim. Transfiguração é aquilo que permite à gente se arrastar para fora do caos e voar acima dele. É por isso que eu ainda sou capaz de fazer o que faço e compor as músicas que canto e simplesmente continuar seguindo em frente.

Quando você diz que eu estou falando com uma pessoa que já morreu, está se referindo ao motociclista Bobby Zimmerman ou a Bob Dylan [o nome verdadeiro de Dylan é Robert Zimmerman]?
Bob Dylan está aqui! Você está conversando com ele.

Então a sua transfiguração é...
É o que é. Nem em 1 milhão de anos eu poderia voltar para trás e encontrar Bobby. O mesmo vale para você e para todas as pessoas na face da Terra. Ele se foi. Se eu pudesse, eu voltaria. Eu gostaria de voltar. A esta altura, eu gostaria de voltar e encontrá-lo, estender a mão. E dizer a ele que tem um amigo. Mas não posso. Ele se foi. Ele não existe.

Então quando você fala de transfiguração...
Eu só sei o que disse a você. Você vai ter que ir lá e fazer o seu trabalho por conta própria para descobrir o que é isso.

Estou tentando determinar de quem você foi transfigurado, ou como quem.
Eu acabei de mostrar. Vá ler o livro.

É ele que você tem em mente? Qual poderia ser a sua conexão com aquele Bobby Zimmerman, além do nome?
Eu não tenho isso em mente. Eu não escrevi aquele livro. Eu não inventei isso. Eu não sonhei com isso. Não estou lhe dizendo que tive um sonho ontem à noite. Lembra aquela música, “Last Night I Had the Strangest Dream” [Ontem à noite eu tive um sonho dos mais estranhos]? Também não fui em quem escrevi. Estou lhe mostrando um livro que foi escrito e publicado. Quer dizer, olhe só para todas as coisas que se conectam: motocicletas, Bobby Zimmerman, Keith e Kent Zimmerman, 1964, 1966. E tem ainda mais do que isso. Se você fosse procurar a família deste sujeito, ia encontrar mais um monte de coisa que se conecta. Só estou explicando para você. Vá até o túmulo dele.

Quando foi que este livro caiu na sua mão?
Hum, sabe... Quando foi que esse livro caiu na minha mão? Alguém me entregou há anos. Eu fui apresentado a Sonny Barger na década de 1960, mas não o conhecia muito bem. Ele era amigo de Jerry Garcia. Talvez eu tenha visto o livro em uma prateleira por aí e o vendedor o colocou na minha mão. Mas eu comecei a ler, e achei que estava lendo sobre Sonny, mas aí eu cheguei àquela parte e percebi que não era a respeito dele coisa nenhuma. Eu só fui ver o nome dos autores mais tarde, e também foi uma loucura completa. Mais ou menos um ano depois, fui a uma biblioteca em Roma e encontrei um livro sobre transfiguração, porque não é uma coisa de que a gente ouve falar todos os dias, e faz parte daquele domínio místico, e eu aprendi o suficiente apenas para saber que, hum, certo, eu não sou autoridade no assunto, mas isso meio que deixa claro aquilo que o diferencia.
Eu sempre fui diferente das outras pessoas, mas este livro me disse o porquê. Como certas pessoas se diferenciam. Sabe, é como aquela frase, “colegas” – quer dizer, eu vejo esta coisa de: “Bom, os seus contemporâneos isto, os seus contemporâneos aquilo”. E eu sempre fiquei imaginando: quem são meus contemporâneos? Quando recebi a Medalha da Liberdade, comecei a pensar mais sobre isso. Quem são eles? Mas daí ficou claro. Meus contemporâneos são Aretha Franklin, Duke Ellington, B.B. King, John Glenn, Madeleine Albright, Pat Summitt, Toni Morrison, Jasper Johns, Martha Graham, Sidney Poitier. Gente assim, e eles também são diferenciados. E me sinto orgulhoso de ser incluído entre eles. Ninguém compõe os tipos de canções que eu componho. E não acho que alguém vá voltar a compô-las deste jeito, da mesma maneira que ninguém jamais vai compor uma canção de Hank Williams ou de Irving Berlin. Disso tenho certeza. Só acho que levei a coisas a um nível novo porque foi preciso, porque fui forçado. A gente tem de reformatar as coisas constantemente, porque tudo sempre se expande por cima de você. A vida tem seu jeito de se espalhar.


Por que você tem essa necessidade de reformatar as coisas o tempo todo?
Porque essa é a natureza da existência. Nada fica onde está durante muito tempo. As árvores crescem e ficam altas, as folhas caem, os rios secam e as flores morrem. Gente nova nasce todos os dias. A vida não para.

Você descreveu o que faz não como uma carreira, mas como uma vocação.
Todo mundo tem uma vocação, não é mesmo? Alguns têm uma vocação elevada, outros, uma vocação baixa. Todos são invocados, mas poucos são escolhidos. Há muitas distrações para as pessoas, então é possível que você nunca encontre seu verdadeiro eu. Muita gente não encontra.

Alguns de nós vemos a sua vocação como a de alguém que deu o melhor de si para ser testemunha do mundo, e da história que fez esse mundo.
A história é uma coisa engraçada, não é mesmo? A história pode ser mudada. O passado pode ser mudado e distorcido e usado para fazer propaganda política. As coisas que nos dizem ter acontecido talvez não tenham acontecido de jeito nenhum. E as coisas que nos dizem que não aconteceram na verdade podem ter acontecido. Jornais fazem isso o tempo todo, livros de história fazem isso o tempo todo. Todo o mundo modifica o passado a sua própria maneira. É comum, sabe? Nós sempre vemos as coisas da maneira que na verdade não foram, ou as vemos da maneira que bem desejamos. Não podemos mudar o presente nem o futuro. Só podemos mudar o passado, e fazemos isso o tempo todo.

Há aquele velho ditado: “A história é escrita pelos vencedores”.
Absolutamente. E, depois, temos Henry Ford. Ele não via nem um pouco de utilidade na história.

Há uma boa dose de mortalidade nas últimas três músicas do novo disco– “Tin Angel”, “Tempest” e “Roll On John”. As pessoas têm fins bem difíceis.
As pessoas em “Frankie and Johnny”, “Stagger Lee” e “El Paso” têm fim bem difícil também, e com toda a certeza é assim em uma das minhas músicas preferidas, “Delia”. Posso citar uma centena de músicas em que tudo termina em tragédia. Isso se chama tradição, e é com isso que eu trabalho. Tradicional com T maiúsculo. Talvez as pessoas precisem ter uma maneira simplista para identificar algo quando não conseguem apreender a coisa da maneira adequada – usar algum termo que elas acham que são capazes de compreender, como mortalidade. Ah, tipo: “Estas músicas devem ser sobre mortalidade. Quer dizer, o Dylan, ele não é bem velho? Deve estar pensando nisso”. Sabe o que eu digo a esse tipo de merda? Que esses idiotas não sabem do que estão falando. Vão achar outro para incomodar. Há montes de músicas sobre morte. Você deve saber muito bem, na música folk, uma canção sim, outra não, trata de morte. Todo o mundo as canta. A morte faz parte da vida. Quanto mais cedo você souber disso, melhor vai ser para você. Essa é a única maneira de olhar para a questão. Já no que diz respeito a concordar com o que o consenso diz a respeito do que as minhas músicas querem ou não dizer, é só bobagem. Eu não tenho como verificar o que outras pessoas dizem a respeito do tema das minhas músicas.

Você também tem uma música a respeito de John Lennon, “Roll On John”, neste álbum. O que o levou a gravar isto agora?
Não me lembro – simplesmente me deu vontade, e agora me pareceu um momento tão bom quanto qualquer outro. Eu nem tinha certeza se essa música ia combinar com esse álbum. Eu assumi um risco e a enfiei ali. Acho que talvez a tenha terminado para que fosse incluída. Ela não foi composta ontem. Comecei a ensaiá-la no fim do ano passado, em alguns palcos.

Lennon disse que você o inspirava, mas que ele também se sentia competitivo em relação a você. Ambos foram leões culturais das décadas de 1960 e 70. Será que isso alguma vez causou mal estar ou sensação de competição quando vocês se encontravam?
Acho que nós já falamos da questão dos colegas há um tempinho, não foi? John veio das regiões do norte da Grã-Bretanha. De longe dos centros. Do mesmo jeito que aconteceu comigo nos Estados Unidos, por isso, nós tínhamos alguns tipos de coisas ambientais em comum. Ambos os lugares eram bem isolados. Apesar de o meu ser mais fechado do que o dele. Mas tudo se junta contra você quando vem disso. Você precisa ter o talento de superar tudo isso. Era uma coisa que eu tinha em comum com ele. Nós todos tínhamos mais ou menos a mesma idade e ouvimos as mesmas coisas na infância. Os nossos caminhos se cruzaram em um certo momento, e nós dois deparamos com muita adversidade. Até isso nós tivemos em comum. Gostaria que ele ainda estivesse aqui, porque poderíamos conversar a respeito de muitas coisas agora.



A partir de 1980, passou a existir muito território obscuro nas suas canções. Será que uma parte disso é reflexo de constantes batalhas religiosas internas em você?
Que nada, não tenho nenhuma dessas batalhas religiosas internas. Acabei de mostrar aquele livro para você. A transfiguração elimina tudo isso. Você deixa de ter esse tipo de batalha interna. Nunca teve, e nunca terá. Não. Tem que amplificar a sua fé. Essas são batalhas internas para outras pessoas. Outras pessoas que você não conhece e nunca vai conhecer. Todo o mundo enfrenta algum tipo de batalha interna, isso é certeza.

A sua noção de fé mudou?
Certamente mudou, homens de pequena fé. Quem pode dizer que eu realmente tenho qualquer fé de algum tipo? Eu vejo a mão de Deus em tudo. Em cada pessoa, lugar e coisa, em cada situação. Quer dizer, é possível ter fé em praticamente tudo. Não é? Você pode ter fé nesse bloody mary que está bebendo. Ele pode acalmar os seus nervos.

[Risos] É água – não é um bloody mary.
Bom [risos], para mim parece um bloody mary. Vou dizer que é. Vou reescrever a sua história para você.

Antes, você se mostrou disposto a falar sobre estas questões.
É, mas isso foi antes e isto é agora. Eu tenho fé suficiente para mim para ser fiel a mim mesmo. A fé é boa – é capaz de mover montanhas. Não essa fé de blood mary que você tem, mas o tipo de fé que gente como eu tem. Dá para ver se as outras pessoas têm fé ou não pela maneira como se comportam, pelas merdas que saem da boca delas. Um pouco de fé é capaz de fazer muita coisa. É a coisa certa para as pessoas terem. Quando não temos quase mais nada, isso basta. Mas demora um pouco para ser adquirida. Você só precisa continuar procurando.

Quero saber mais a respeito da questão da transfiguração. Existe algum momento em que você tomou consciência dela?
Sim, posso citar partes do livro [a biografia de Sonny Barger]. Acontece gradativamente. Eu diria que aquele acidente, no entanto, se quiser chamar assim, acho que foi mais ou menos em 1964? [Ele está se referindo à morte de Bobby Zimmerman que, na verdade, ocorreu em 1961] Como eu disse antes, eu próprio sofri um acidente de motocicleta, em 1966, então estamos falando de uns dois anos – uma espécie de retirada discreta gradual e, hum, algum tipo de coisa diferente que apareceu do nada. E faz sentido total, porque no mundo da verdade, nada começa nem termina. Sabe, é como se as coisas começassem enquanto outra coisa está terminando. Nunca há qualquer fronteira ou divisória distinta. Nós já falamos sobre isso. Você sabe como temos linhas de divisão entre os países. Temos fronteiras. Bom, fronteiras no mundo cosmológico realmente não existem, do mesmo jeito que não existem entre a noite e o dia.

Depois do seu acidente de moto, você se tornou em alguns aspectos uma pessoa diferente?
Estou tentando explicar algo que não pode ser explicado. Preciso da sua ajuda. Leia as páginas do livro. Algumas pessoas nunca chegam a se desenvolver ao que deveria ser. São tolhidas. Seguem em outra direção. Acontece muito. Nós todos vemos pessoas com quem isso aconteceu. Nós as vemos nas ruas. Parece que têm uma placa pendurada no pescoço.

Você fazia alguma ideia a esse respeito antes de ler o livro de Barger?
Eu não sabia quem eu era antes de ler o livro de Barger.

Eis aqui uma maneira de olhar para isto: na década de 1960, as pessoas consideravam que você era uma "bola de fogo revolucionária" até o acidente de motocicleta. Depois, com a música feita em Woodstock com a The Band, e com [os álbums] John Wesley Harding e Nashville Skyline, algumas pessoas ficaram perplexas com a sua transformação. Você voltou daquele hiato com aparência diferente e som diferente na voz, na música e nas palavras.
Por que as pessoas têm de ficar loucas quando falam de mim? Porra, qual é o problema deles? Claro, eu sofri um acidente de motocicleta. Claro, eu toquei com a The Band. Sim, fiz um álbum chamado John Wesley Harding. E, claro, o som ficou diferente. E daí, porra? Essa gente quer saber o que não há como saber. Estão buscando algo. Como naquela música de Pete Townshend em que ele está tentando encontrar o caminho para 50 milhões de fábulas. Para quê? Por que estão fazendo isso? Na verdade, não sabem de nada. É triste. De verdade. Que o Senhor tenha misericórdia para com elas. São almas perdidas. Realmente não sabem nada. É triste para mim, e é triste para elas.

Por que você acha que isso acontece?
Não faço a menor ideia. Se você algum dia descobrir, venha me contar.

Está dizendo que não dá para conhecer você de verdade?
Ninguém sabe nada. Quem sabe quem foi transfigurado e quem não foi? Quem sabe? Talvez Aristóteles? Talvez ele tenha sido transfigurado? Não sei dizer. Talvez Júlio César tenha sido transfigurado. Não faço ideia. Talvez Shakespeare. Dante. Napoleão. Talvez Churchill. A gente nunca sabe, porque não está nos livros de história. É só isso que estou dizendo.

Às vezes é possível nos aprofundarmos ou oferecermos auxílio a outra pessoas ao tentar conhecê-las melhor.
Se somos responsáveis por nós mesmos, então podemos ser responsáveis por outras pessoas também. Mas precisamos nos conhecer primeiro. As pessoas escutam as minhas músicas e devem ficar achando que sou de um certo jeito, e talvez eu seja. Mas existe mais coisa do que isso. Também acho que podem escutar as minhas músicas e entender quem elas mesmas são.

Quando você diz que as pessoas que fazem conjecturas a seu respeito na verdade não sabem do que estão falando... Isso significa que você se sente incompreendido?
Não significa nada disso, de jeito nenhum! [Risos] Quer dizer, tipo, o que há para ser compreendido? Quer dizer – não, não. É bem o contrário. Quem é que deveria entender? A família da minha mulher? Será que eu devia ser um artista incompreendido que mora em um sótão? Você é que pode me dizer. O que há para ser compreendido? Por favor, será que podemos parar agora?

Com essa pergunta? Só mais uma: nos últimos dez anos, você escreveu uma biografia; houve uma biografia cinematográfica ficcional, Não Estou Lá [I'm Not There, dirigida por Todd Haynes em 2007]; e houve o documentário de Martin Scorsese, No Direction Home – três grandes tentativas de esclarecer sua história, sendo que a maior delas foi seu livro, Crônicas. De certo modo, será que não foram tentativas de explicar certas coisas a respeito da sua vida?
Se você leu Crônicas, sabe que ele não tenta ser nada mais do que é. Você não vai encontrar o sentido da vida ali. Nem da minha nem da de mais ninguém. E se você viu No Direction Home, talvez tenha reparado que termina em 1966. E Não Estou Lá – não sei nada sobre esse filme. Só sei que licenciaram 30 músicas minhas para ele.

Você gostou de Não Estou Lá?
Gostei, achei bacana. Você acha que o diretor se incomodou com o fato de as pessoas entenderem ou não? Acho que ele não se incomodou nem um pouco. Acho que ele só quis fazer um bom filme. Achei bonito, e os atores foram incríveis.

Acho que o filme nasceu de uma percepção arraigada de você como alguém de muitas fases e identidades.
Eu não me vejo assim. Mas que diferença faz? É só um filme.

Em julho de 2009, a polícia deteve você em Nova Jersey enquanto fazia uma caminhada, supostamente à procura da antiga casa de Bruce Springsteen. O que aconteceu ali?
Estávamos hospedados em um hotel. O ônibus estava saindo; eu só resolvi dar uma caminhada. Estava chovendo, e acho que não estão acostumados a ver gente caminhando na chuva por aquelas bandas. Eu era a única pessoa na rua, alguém me viu de uma janela e chamou a polícia. Quando eu vi, uma viatura encostou e pediu a minha identidade. Bom, eu não tinha nenhuma [risos]. Eu troco de roupa tanto, o tempo todo. A policial não me conhecia. Porque a maior parte das pessoas não me conhece. Já ouviram o nome. Posso estar em um lugar e ninguém me conhece. De repente chega alguém que me conhece, e daí eu tenho que dizer a todos os presentes e daí... a coisa fica sem jeito. Esse é o lado das pessoas que eu vejo. As pessoas gostam de trair as pessoas. Há algo nas pessoas que simplesmente as faz ter vontade de trair alguém. “É aquele ali.” Querem entregar você. Do mesmo jeito que entregaram Jesus. Elas querem ser aquela pessoa que entrega. Tem algo nas pessoas que simplesmente é assim. Já passei por isso. Muito.

Antes de terminarmos a conversa, quero perguntar sobre a controvérsia a respeito das citações nas suas músicas das obras de outros escritores, como de Confessions of a Yakuza, do japonês Junichi Saga, e a poesia da Guerra Civil de Henry Timrod. Alguns críticos dizem que você não citou as suas fontes com clareza. No entanto, no folk e no jazz, a citação é uma tradição rica e enriquecedora. Qual é a sua resposta a esse tipo de acusação?
Ah, sim, no folk e no jazz, a citação é uma tradição rica e enriquecedora. Isso certamente é verdade. É verdade para todo mundo, menos para mim. Quer dizer, todas as outras pessoas podem fazer isso, menos eu. As regras são diferentes para mim. No que diz respeito a Henry Timrod, você já ouviu falar dele? Quem o lê ultimamente? E quem o colocou em evidência? Quem fez com que você fosse ler? E pergunte aos descendentes dele o que acham dessa confusão. E se você acha que é tão fácil citá-lo e que isso vai ajudar no seu trabalho, faça isso e veja até onde consegue chegar. Reclamões e covardes falam dessas coisas. É algo bem antigo – faz parte da tradição. Remonta a um passado bem distante. Essas são as mesmas pessoas que tentaram me classificar de Judas. Judas, o nome mais odiado da história humana! Se você acha que já foi xingado de um nome feio, tente imaginar o que é isso. Sim, e por quê? Por tocar guitarra? Como se isso de algum modo fosse comparável a trair o Senhor e entregá-lo para ser crucificado. Todos esses filhos da puta maldosos podem apodrecer no inferno.

Está falando sério?
Estou trabalhando dentro da minha forma de arte. É simples assim. Eu trabalho dentro das regras e limitações dela. Existem figuras autoritárias que podem explicar esse tipo de forma de arte a você melhor do que eu. Chama-se composição musical. Tem a ver com a melodia e o ritmo e, depois disso, vale tudo. Você faz com que tudo seja seu. Nós todos fazemos isso.

Quando esses versos entram em uma música, você tem consciência do que realmente aconteceu?
Bom, não exatamente. Mas, mesmo que tenha, você deixa passar. Eu não vou limitar o que posso dizer. Preciso ser verdadeiro com a música. Trata-se de uma forma de arte específica, que tem suas próprias regras. É um tipo de coisa diferente. Tudo que é meu deriva da tradição folk – não tem identificação necessária com o mundo pop.

Você considera esse tipo de crítica irrelevante, ou boba?
Tento superar tudo isso. É necessário. Quando você me pergunta se eu considero a crítica ao meu trabalho irrelevante ou boba, não, não se for construtiva. Se alguém for capaz de apontar aqui ou ali onde o meu trabalho pode ser aprimorado, acho que eu estaria disposto a escutar. As pessoas que ficam obcecadas com crítica – não é crítica honesta. De todo modo, não é para essas pessoas que eu toco.

Mas você certamente já ouviu falar dessa controvérsia específica?
Pessoas tentaram me deter a cada centímetro do caminho. Sempre tem coisa ruim a ser dita a meu respeito. A revista Newsweek acendeu o pavio há um tempão. A Newsweek publicou que um garoto qualquer de Nova Jersey compôs “Blowin’ in the Wind”, que não tinha sido eu de jeito nenhum. E como isso não colou, fui acusado de roubar a melodia de um hino protestante do século 16. E como isso não funcionou, disseram que tinham cometido um erro e que na verdade era uma canção espiritual negra. Então, o que há de diferente? Isso acontece há tanto tempo que talvez agora eu não seja mais capaz de viver sem isso. Que se fodam. Vou enterrar todos eles. Tudo que as pessoas dizem a respeito de você ou de mim, estão dizendo a respeito de si mesmas. Estão se entregando. Já reparou nisso? No meu caso, existe um mundo todo de estudiosos, professores e “dylanologistas”, e tudo que eu faço os afeta de alguma maneira. E, sabe, de certo modo, eu lhes dei vida. Eles não estariam em lugar nenhum sem mim.

E servem como inspiração.
Não, para isso eles não servem.

O lado oposto de as pessoas serem críticas...
É, ter altíssima admiração por alguém [risos].

O lado oposto é que também há o público, que ama você de verdade.
Claro que sim. Eles acham que sim. Eles amam a música e as canções que eu toco, não eu.

Por que diz isso?
Porque as pessoas são assim. Elas dizem que amam um monte de coisa, mas, na verdade, não amam. É apenas uma palavra que foi usada em demasia. Quando você coloca a sua vida na reta por alguém, isso é amor. Mas você só vai saber quando o momento chegar. Quando alguém se prontifica a morrer por você, isso também é amor.