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Sabotage Vive: lendário rapper ganha disco póstumo 13 anos depois de morrer

Dissecando as origens e a produção do álbum que traz 11 faixas inéditas de um dos maiores artistas brasileiros

Lucas Brêda Publicado em 17/10/2016, às 19h03 - Atualizado às 20h00

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O rapper Sabotage  - Cesar Schaeffer
O rapper Sabotage - Cesar Schaeffer

O que Sabotage estaria fazendo se estivesse vivo? Esta é uma das perguntas mais repetidas no meio musical brasileiro desde que Mauro Mateus dos Santos foi assassinado, aos 29 anos, no dia 24 de janeiro de 2003, em São Paulo. Desde o primeiro minuto desta segunda, 17, uma hashtag tomou as redes sociais, anunciando que “#SabotageVive”. Trata-se de Sabotage, disco póstumo, inédito e autointitulado do Maestro do Canão, lançado via Spotify, e que chega não para responder ao questionamento do início deste texto, mas para jogar nova luz sobre a obra de um dos maiores artistas nascidos no Brasil.

Sabotage contém 11 faixas e é resultado de um recorrente exercício de imaginação. “Como ele não está aqui para responder, nós nos baseamos nisso: está a altura do Sabotage? É falta de respeito colocar uma música meia boca na rua, não é bacana”, comenta Tejo Damasceno, integrante do Instituto (ao lado de Rica Amabis), com quem Sabotage costumava trabalhar em vida, e um dos diretores musicais do álbum póstumo. “Tentamos manter o nível que ele sempre teve: um crivo muito alto de flow, de letra, tudo.”

Além da dupla do Instituto, um ex-integrante do grupo, o produtor Daniel Ganjaman (conhecido mais recentemente pelo trabalho com Criolo), também foi responsável direto por Sabotage. “Estávamos começando a fazer o segundo disco dele”, conta Ganjaman, a quem Sabotage faz seguidas menções em rimas no “novo” álbum. “Isso foi durante muito pouco tempo, uma semana. Segunda, terça, quarta, quinta e na sexta ele foi assassinado. A partir daquilo, obviamente, tudo ficou encostado durante um tempo. Tanto esse material quanto qualquer outa coisa relacionada ao Sabotage.”

“Foi super delicado esse processo”, confessa Damasceno. “Levei quatro anos para abrir uma track e tentar ouvir a voz dele”. Segundo Ganjaman, as gravações deixadas só foram começar a ser revisitadas quando os produtores tiveram “estômago” para tal.

Com o Instituto, Sabotage deixou material suficiente para seis músicas, gravado nos estúdios da YBmusic. “Ia ser um EP”, lembra Damasceno, comemorando em seguida: “Mas o Quincas [Moreira] ligou falando: ‘Tem mais coisa aqui’. Cheguei lá e vi outras cinco músicas, uma mais linda que a outra”. Moreira possuía um estúdio caseiro e morava em frente à produtora YBmusic. “Às vezes o Sabota ia até o estúdio nos encontrar e, quando estava todo mundo ocupado, acabava indo à casa do Quincas – e deixou muita coisa lá”, acrescenta Ganjaman, que à época estava trabalhando com o Planet Hemp.

Algumas das gravações caseiras de Moreira acabaram, inclusive, vazando na internet, em versões precárias. “O Quincas dava uma estrutura, um beat, só para gravar a voz guia do Sabotage”, explica Damasceno, já se defendo das “críticas” de que nem todo material do disco póstumo é exatamente inédito. “Quem ouviu as músicas vazadas ouviu algo tosco, com um loop, mal editado. É um ‘rabo de mix’ de 2002 que o Quincas costumava fazer e dar a ele gravado em um CDzinho, para que ele pudesse estudar em casa. Uma ou outra acabou na internet.”

Entre as razões para a demora do álbum póstumo – que ganha vida quase 14 anos depois da morte de Sabotage – estão a negociação com os herdeiros do artista e a vontade de fazer do projeto uma “homenagem”, reunindo as pessoas que trabalharam musicalmente com ele. Wanderson “Sabotinha” do Santos, o filho mais velho do rapper, por exemplo, tinha entre dez e 12 anos de idade quando o pai morreu. “Teve também uma cobrança interna nossa de trazer algo que não deixasse nenhum tipo de falha ou aresta, perante a representatividade do trabalho dele, não só falando de Sabotage, mas também na cena do hip-hop brasileiro”, diz Ganjaman.

Sem Sabotage por perto, Instituto e Ganjaman decidiram reunir o mais representativo grupo de pessoas que já havia trabalhado com o rapper. “A dinâmica foi só trabalhar com quem trabalhava com ele, já que ele não está aqui para dar opinião.”, conta Damasceno. “Todos os participantes e produtores trabalharam com ele – não só quem ‘conhecia’ ele –, com exceção de um ou outro instrumentista. Foi a regra que a gente colocou para deixar aquilo verdadeiro. São pessoas das quais ele respeitava as qualidades musicais. Amigos ele tinha milhares, mas me refiro a gente que trabalhou com ele mesmo.”

Entre os participantes está a família RZO, em especial o DJ Cia, que assina a produção de três faixas do disco (“País da Fome: Homens Animais”, “Quem Viver Verá” e “Míssel”), Sandrão (rima em “Míssel”) e Negra Li (voz em “Canão foi Tão Bom”). O RZO – assim como Rappin’ Hood, que canta em “Maloca é Maré” – foi o grupo responsável por resgatar Sabotage da vida criminal e trazê-lo de volta ao hip-hop, apostando e abrindo espaço nos shows. Helião, outro MC do RZO, inclusive, chegou a criar, com Sabotage, grande parte dos refrães das primeiras músicas do artista, que acabaram em Rap É Compromisso (2001).

Quando começou a trabalhar no segundo disso de estúdio da carreira, contudo, Sabotage já havia feito a multipremiada trilha sonora do filme O Invasor (2002) – de Beto Brant, no qual ele também atua – com o Instituto e participado do disco de estreia do grupo, Coleção Nacional (2002), além de ter desenvolvido tinha um diálogo musical com Ganjaman, que era do Instituto, mas também havia coproduzido Rap É Compromisso.

“Ele já estava mais calejado, fizemos a trilha de Invasor e ele começou a escrever umas coisas diferentes, que nem eram refrães, mas que a gente transformava em refrães até hoje amados pela galera”, recorda Damasceno, pontuando que as músicas “Sai da Frente” e “Canão Foi Tão Bom”, por outro lado, já tiveram os refrães estruturados por Sabotage. “As outras eu acabei mais fazendo essa parte. Peguei todos arquivos, resgatei tudo. Como eu fazia isso com ele em vida, acabei fazendo agora. O Cia também fez uma parte.”

Com @sabotageoficial e os parceiros do @selo_instituto #SabotageVive

A photo posted by Daniel Ganjaman (@danielganjaman_) on

Entre as faixas produzidas por DJ Cia está a tocante “País da Fome: Homens Animais”, uma das mais íntimas de Sabotage, que destaca a relação dele com a família, particularmente o irmão e a mãe, cujas mortes são temas delicados em sua poesia. “Não tinha como pedir para ele fazer isso ou aquilo, então, tentei deixar sempre que a voz dele fosse o principal instrumento da música”, conta o DJ do RZO. “Em ‘País da Fome’, eu nem quis colocar muita batida, pela história da família dele, do irmão, da mãe, foi muito louco. Em alguns momentos ele até chora na gravação. Era uma história muito sincera, uma parada muito dele. Optei por não encher de batida, só deixar a voz e fazer os climas.”

O DJ Cia também trabalhou em uma das duas músicas do disco póstumo que contêm participações inéditas: “Quem Viver Verá”, com rimas do rapper Dexter. “O fato de eles não terem tido uma colaboração em vida foi um mero acaso”, justifica Ganjaman. “Ele participou de uma música que eu comecei com o Sabotage e é muito triste porque a metade do segundo verso da gravação é ele [Sabota] errando e falando: ‘Volta’. Fatalmente precisaríamos de alguém para complementa a música”. O outro é o norte-americano Shyheim, cuja voz pode ser ouvida em “Superar”, faixa com colaboração do DJ Nuts na produção. O rapper, afiliado ao Wu-Tang Clan, coletivo do qual Sabotage era fã, esteve no Brasil e visitou os produtores em estúdio para registrar a colaboração.

Sabotage ainda conta com outros colaboradores do Maestro do Canão em vida, como BNegão, DBS e Zé Gonzales. O DJ Zegon foi o primeiro nome chamado para produzir Rap É Compromisso, antes de convocar Ganjaman – quem ele conhecia do trabalho com o Planet Hemp –, e volta a “trabalhar” com Sabotage na música “Mosquito”. A canção de abertura do álbum póstumo é assinada pelo Tropkillaz, atual projeto de Zegon, e é a mais ousada do LP, especialmente pela influência do trap. Nas primeiras horas de vida de Sabotage, o DJ já foi ao Twitter se defender da fatia mais xiita dos fãs, que se queixaram de a música destoar do trabalho anterior do rapper. “Opinião de quem não entende, o Sabotage estava anos luz à frente, com certeza não estaria limitado ao rap tradicional”, escreveu.

“Não se pode dizer que [o álbum] não tem a ver com o Sabotage”, posiciona-se Damasceno. “Podem dizer que preferem o outro. Mas até a música do Tropkillaz, do Zé Gonzales, não é um ‘trap pista’. E um ‘trap gangsta’. Todo mundo teve muita noção disso. Todo mundo é muito autoral, mas está tudo dentro do universo dele.”

Tanto a pegada trap do Tropkillaz como o samba de “Maloca É Maré” ou o tom melodioso de “País da Fome” são resultado de exercícios particulares de imaginação, somados aos “rascunhos” deixados por Sabotage. “Estávamos fazendo o serviço de uma pessoa que não estava aqui”, diz Damasceno, confessando que a maioria das vozes veio de “guias”, com exceção de “Sai da Frente”, feita inicialmente para o filme Carandiru. “Ele sempre adorou trabalhar com todo mundo que estava lá. Eu frequentemente tinha medo de tirar uma frase sem ter o cara para me explicar se aquilo fazia sentido.”

“Nenhum material de voz do Sabotage era definitivo”, segue Ganjaman. “Era quase tudo guia, gravado em home estúdio. Com a tecnologia, conseguimos transformar isso num material utilizável, mas muita coisa ficou de fora porque não tinha qualidade técnica para virar um material utilizável”. A produção também trabalhou desmembrando ou aglutinando músicas e ideias deixadas pelo “Maurinho”. Ele acrescenta: “Sem dúvida foi diferente, mas o Sabotage era um cara tão genial – e o material que ele deixou foi tão rico – que fizemos questão de deixar o disco com algumas características que nós sabíamos muito que ele queria. Algumas coisas que podem até soar datadas, mas fizemos questão de manter aquele aspecto do que ele estava acreditando se importante para o trabalho.”

Em noite de super lua cheia, chega o disco novo do eterno @sabotageoficial Foram 13 anos de trabalho para superar, compilar, organizar, produzir e finalizar esse trabalho, sempre respeitando e priorizando a vontade da família e a memória desse grande amigo e eterna inspiração. Esse disco só foi possível pelo belíssimo trabalho de todos os produtores, músicos e MCs envolvidos, em especial meu grande irmão @tejodamasceno eterno parceiro no núcleo de produção Instituto. Sem sua seriedade, empenho, bom senso e profissionalismo, esse disco não existiria, nem estaria sendo lançado dessa forma tão apropriada. Mauro Mateus brilha, igual a lua! Obrigado, meu irmão. Você mudou minha vida! Ouçam agora no spotify e compartilhem! #SabotageVive Paz https://open.spotify.com/album/54fqpmy2k6wjUGdPSxN8Me

A photo posted by Daniel Ganjaman (@danielganjaman_) on

O tempo também foi elemento determinante no disco e é possível, inclusive, que a demora para Sabotage sair ofusque o quão o rapper do Canão estava à frente da própria época. “Um grande legado que o Sabotage deixou é ter sido o primeiro artista verdadeiramente da periferia a trazer algo experimental, diferente, trabalhar com outros segmentos”, opina Ganjaman. As marcas da época também constituem Sabotage, que traz referências à famosa personagem Tiazinha, à novela da Rede Globo O Clone, ao game Mortal Kombat, entre outras coisas famosas na virada dos anos 1990 para os 2000.

“Relâmpago” é uma palavra costumeiramente utilizada para definir a passagem de Sabotage pelo planeta e muito tem a ver com a evolução extremamente veloz que ele teve e que acabou abrindo caminhos e sendo influente de maneira inédita para o hip-hop nacional – até então um gênero demasiadamente “fechado”. Durante as sessões de Rap É Compromisso, por exemplo, Ganjaman chegou a ser “repreendido” por alguns MCs ao pegar uma guitarra no estúdio. “Montei os instrumentos e quanto pluguei a guitarra, para aquecer, dei uma solada”, conta. “Na mesma hora, os caras olharam: ‘Rap não tem esse bagulho não’. E eu: ‘Calma aí’. No fim, foi um aprendizado para todo mundo. Ele abriu espaço para experimentação no rap, trouxe uma mistura com outros estilos de um jeito homogêneo.”

“Quando a música está pronta e você ouve o cara cantar de madrugada”, conta o DJ Cia sobre a produção de Sabotage. “Imagina 4h da manhã você ouvindo o cara cantando. Imagina, você está lá ouvindo e o cara não está com você. No sentido de saudades, é muito louco e triste. Você fica chateado. São ‘homens animais’. O homem matou o homem. Dá saudades.”

“Eu estava vendo ele diariamente, foi um choque”, acrescenta Ganjaman. “Meu contato com ele foi muito musical, tínhamos uma relação musical muito forte, nos entendíamos muito bem. Nem combinamos o segundo disco, ele só foi indo lá em casa. Mais do que um disco de uma pessoa que não está presente, tem o fato de o Sabotage ter sido um mito. O MC mais talentoso com quem trabalhei, um gênio, né, cara? Acredito no artista como instituição e ele tinha um conjunto de características que trazia um brilho único. Ele era o tipo de pessoa que, por exemplo, se estivesse aí na redação da Rolling Stone, todo mundo estaria em volta dele – e na mesa do bar seria a mesma coisa.”

“O cara que era do crime, mas era um cara que era do bem, inteligente, cheio de talento. E semianalfabeto. Em exemplo desse, você fica como?”, lamenta Cia. “Às vezes você vê as coisas que estão acontecendo e pensa: ‘Poxa, e se o Sabotage estivesse aqui?’.”