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Sem Se Endireitar

Enfrentando fantasmas e vencendo, Dinho Ouro Preto garante que vive o melhor momento da carreira

Murilo Basso Publicado em 13/04/2012, às 14h21 - Atualizado em 09/05/2012, às 15h34

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- - Ignacio Aronovich
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Já passam das 3h da manhã e, durante a noite anterior, o Capital Inicial viajou 310 km de ônibus para ir de São Paulo a Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Mais duas horas e a banda voltará para a estrada, em direção a mais um show no interior fluminense. Antes de retornar ao palco para o bis, o vocalista Dinho Ouro Preto se senta ao meu lado. “Só agora me dei conta de que você é mais novo do que o Capital”, ele diz. “Quando começamos, não imaginava que 25 anos depois teríamos um público tão abrangente.” Ele enxuga o rosto em uma toalha branca antes de voltar para o lugar em que se sente completamente à vontade, pronto para cantar mais quatro músicas. Acima de tudo, é visível que Dinho está tranquilo. Mesmo aos 47 anos, ele tenta se manter como o garoto de duas décadas atrás: calça jeans rasgada, regata preta e uma energia quase juvenil. “É isso que nós somos, cara. Uma banda de rock!”, ele exclama. Luciano, espécie de guarda-costas do músico no backstage, brinca: “O Dinho tenta me convencer há dez anos de que é um cara do rock. Mas você chega ao show dele e as pessoas estão com as mãos para cima gritando ‘pneus de carro cantam, tchuru, tchuru, tchuru, tchuru...’. Não fode, né?”.

Antes da apresentação, ainda no hotel, Dinho se preocupa em voltar ao Twitter, após sete meses de inatividade – sem muita vontade ou dedicação. “Eu vou lançar um disco, cara. Essa é minha preocupação, não tenho o menor saco pra tuitar”, diz. “Já falo pelos cotovelos, não vou conseguir resumir uma ideia em 140 caracteres.” Enquanto toma água esticando as pernas sob a cadeira, ele afirma não se importar com a opinião alheia. “Ano passado teve a treta com o Restart. E, cara, foi só um comentário. Eu e o Lobão falamos mal de nós mesmos, dos nossos discos e, de repente, eu soltei: ‘Que merda de nova geração, que merda esse Restart’. E eu nem sabia direito o que era essa bosta. Só vi as fotos depois, e que mico!”

O trajeto para o local do show só reforça as impressões que constroem a imagem de um Dinho Ouro Preto dicotômico: ele está, ao mesmo tempo, inquieto e feliz. Preocupado com o trânsito, contorce-se sobre o banco e brinca constantemente. Ao descer da van, sorri aliviado. E encontra tempo para tietagens: pausa para duas fotos com fãs e alguns autógrafos antes de seguir até o camarim. “As pessoas vêem o rock como algo circunscrito à adolescência”, ele teoriza. “É raro ver alguém na minha idade envelhecendo e fazendo isso. Tocamos o tempo todo com bandas novas, com a Pitty, com o NXZero... Tocamos para a mesma plateia e eu sou 25 anos mais velho do que eles!”

Assista ao making of da sessão de fotos com Dinho Ouro Preto

Dois dias antes, na casa dele em São Paulo, Dinho começava a relembrar o passado. E como essa memória é? Grande demais para uma pessoa só. Ele tem Brasília como um de seus fantasmas. O Distrito Federal foi berço de algumas das mais importantes e emblemáticas bandas do rock brasileiro que invadiu as paradas de sucesso nacionais nos anos 80. Durante a adolescência do cantor, Brasília representou um parque monotemático: viver em função da política ou para ela. Assim que surgiu a oportunidade, Dinho se mudou para São Paulo. Sempre preferiu a atmosfera mais cinza – tanto que a banda dele foi a única daquela geração a optar por morar na metrópole paulista. A chegada ao Capital Inicial foi aos 18 anos, sempre convivendo com a sombra do ícone Renato Russo, ex-líder do Aborto Elétrico – que, após a separação em 1982, deu origem tanto ao Legião Urbana quanto ao Capital. Com um impacto quase opressor, a presença de Russo se tornou a principal responsável pelos erros de Dinho e da nova banda. “Sabia que ele era melhor e que eu nunca seria como ele”, reconhece.


A música está presente na vida de Fernando de Ouro Preto desde os 11 anos, época em que teve o primeiro contato com Herbert Vianna e Bi Ribeiro, que mais tarde formariam o Paralamas do Sucesso. Mas, até conhecer Renato Russo, o interesse dele se resumia ao rock anglo-americano. A partir desse encontro, passou a acreditar que a única forma de fazer rock em português seria imitando o colega, embora, paradoxalmente, o que estivesse sendo mostrado por aquela geração era uma nova possibilidade de se fazer música em português. “Só percebi isso quando conheci o Ira!”, ele conta. “Até então, imitava o Renato na cara dura. Mas há um momento em que eu desisto, percebo que nunca serei como Renato, e decido ser mais pop. Que o Capital seja quase uma boy band! E esse é o começo do nosso fim.”

Agora, com uma guitarra em mãos, ele abaixa a cabeça. Pensativo, relembra o período mais obscuro de sua vida: a saída do Capital Inicial, em 1993. “Nosso desentendimento não foi uma simples pausa. Foi: ‘Vamos parar porque nos odiamos’. Nós andávamos juntos há 13 anos, a relação estava estafada. Nosso fim é devido ao excesso de drogas. Um coquetel exagerado, pesado. Tudo que caía na nossa mão, nós usávamos. E isso, misturado com álcool, é uma bomba.”

Mesmo assim, Dinho é capaz de dispensar gentilezas a ele mesmo: vê que é possível deixar a obsessão de lado e rir ao se lembrar dos erros. “Quando saí do Capital, foi foda.” Ele voltava para casa só pela manhã, passando as noites usando drogas. A casa dele virou ponto público, com diversas pessoas entrando e saindo, sem controle algum sobre o que lhe era oferecido. “Comecei a sair direto, usei tudo, de LSD a heroína”, ele explica. A roda-viva foi interrompida por um susto – que teve o impacto de um divisor de águas. Em 1994, um amigo do músico ligou para ele e disse que o cantor havia feito sexo com uma mulher portadora do vírus da Aids. “Porra, eu já era super hipocondríaco”, brinca hoje, mas sem minimizar o peso do acontecimento na época em que ocorreu. O resultado do teste levou cinco dias para ficar pronto e, ao relembrar o período, o cantor fecha os olhos e abaixa a cabeça. “Eu precisei chegar a esse ponto para poder me reerguer, para parar de usar drogas.”

O hiato do Capital Inicial foi fundamental para Dinho se reencontrar pessoalmente e artisticamente. A pausa serviu, sobretudo, como aprendizado: foi nesse período em que ele mergulhou nos estudos, aprendeu a tocar e a ser independente como músico. Dessa época ficaram dois registros solo, Vertigo (1994) e Dinho Ouro Preto (1995), que soam como tentativas de redenção diante da separação da banda, mas foram fracassos comerciais. “Se alguém fala algo sobre o Capital, é diluído entre nós quatro. Se alguém fala sobre o Dinho Ouro Preto, é só em cima de mim. É uma maturidade forçada. Eu amadurei musicalmente nesses quatro anos mais do que em qualquer outro período da minha vida.” O resultado, segundo ele, fez com que o grupo retornasse ao trabalho com mais consistência. “Se você pegar nosso segundo disco, há grandes canções como ‘Independência’, mas tem canções que não estavam prontas. E nós gravamos do mesmo jeito. Claro, era uma droga.”

Em 1998, após o lançamento da coletânea O Melhor do Capital Inicial, a banda decidiu fazer uma turnê em comemoração aos 15 anos do grupo. Dois meses depois, surgiu a proposta para um novo álbum – e o que seria uma reunião despretensiosa acaba se tornando o retorno definitivo, com Atrás dos Olhos (1998), trabalho que marca o início da segunda fase da banda. “Um tempo depois, lançamos o Acústico MTV e ele não parou mais de vender.” Ele aponta para a parede, mostrando o disco, orgulhoso. “Já está com 1,6 milhão de cópias [comercializadas]”. Dinho se levanta e pergunta se quero ouvir as novas canções do Capital. No pequeno estúdio caseiro, escolhe uma das faixas que estarão no sucessor de Das Kapital (2010), que começará a ser gravado em junho. Ele acredita que os melhores anos do grupo estão sendo vividos agora. Sentado novamente, ele respira fundo por alguns segundos antes de retomar o raciocínio: “Quando tocamos no Rock in Rio [no ano passado], eu senti como uma consagração”. O festival ainda está bem vivo na memória do vocalista. Durante a apresentação, o Capital dedicou a música “Que País É Esse” ao presidente do Senado, José Sarney. Enquanto a canção era executada, o público despejava ofensas ao político. Dias depois, Sarney enviou uma carta a Dinho. “Em um primeiro momento, ele se defende de um modo agressivo: diz que empregou o meu pai. Vai tomar no cu, meu pai é funcionário de carreira. Tem 40 anos servindo o Itamaraty. Mas a carta tem outro tom também: ele se diz injustiçado, diz que é um grande defensor da democracia”, conta. “Olha, continuo com a mesma opinião sobre o Sarney, acho o fim da picada. O que posso dizer é que o primeiro disco do Capital Inicial foi censurado – e foi censurado no governo dele.”


A conversa muda de rumo, deixando a política e enveredando por um assunto que parece ainda mais natural: a coleção de instrumentos. Ele mostra as guitarras – são várias, penduradas na parede. O cuidado com todas é perceptível, mas uma Gibson SG Pro edição limitada é especial. “Passei a vida toda achando que era falsa. Mas, uns dias atrás, descobri ela no site da Gibson.” Dinho vai novamente até o computador e mostra o instrumento. E, mais uma vez, entra a máquina do tempo em direção à vida em Brasília: ele relembra os primeiros passos e a falta de estrutura que o Capital Inicial enfrentou. “Não estávamos prontos para o que aconteceu”, sentencia. Apesar de enxergar o despreparo do passado, ele aponta para a estante onde estão alguns de seus discos. “Embora seja tosco, mal gravado, mal embrulhado, o conteúdo era bom”, diz. “Hoje em dia, os caras usam calças coloridas e tocam com Les Paul. Eu só fui comprar a minha primeira depois do Acústico.”

A linha de raciocínio de Dinho parece seguir um ritmo próprio, bem distante de uma lógica cartesiana. Após o passeio entre seus xodós, ele aponta o momento mais marcante de sua vida: em 2009, durante um show na cidade mineira de Patos de Minas, o cantor perdeu o equilíbrio e caiu do palco. O resultado foi um traumatismo craniano que o deixou no hospital por quase um mês, e que deixou sequelas. Em parte, a conversa gira em torno da dor; mas também mostra a que ponto o corpo é capaz de brincar com a memória agindo, de certa forma, como defesa pessoal. “Eu me lembro do show, do lugar e do momento em que piso na fita listrada. Tipo: ‘não pise aqui’. É a ultima coisa que recordo. Eu tento ver no YouTube, mas não consigo.” As consequências físicas do acidente são várias: ele sente dor constantemente, o que vai obrigá-lo a tomar medicação para o resto da vida. Outras áreas também foram afetadas. “Eu perdi meu olfato, cara”, conta. O cantor também enfrenta problemas para dormir – embora acredite que isso seja uma espécie de estresse pós-traumático. Ele mostra o dedo polegar e explica que a sensação de formigamento nele é constante. “Incomoda ao segurar a palheta, mas não me impede de tocar.”

Além do trabalho com o Capital, Dinho mantém apresentações individuais e lança, neste mês, um novo álbum solo. A ideia surgiu quando ele percebeu uma necessidade de se expressar de maneira mais livre. “O trabalho em uma banda impõe restrições: não posso impor a minha vontade. Se eu fizer isso, eles vão jogar fora as minhas músicas e falar que são uma bosta.” Ele hidrata as cordas vocais com mais água e continua: “Todo mundo que trabalha em grupo sonha, em algum momento, fazer as coisas do seu jeito. É uma sensação imensa de liberdade”. Black Heart traz releituras de canções internacionais, e ele justifica a opção por ser apenas intérprete, em inglês, como uma vontade de soar diferente. “Se cantasse em português e tivesse composto as músicas, as pessoas diriam que era mais do mesmo”, explica. Interrompo-o enquanto ele começa a tocar os acordes de “Steady, as She Goes” (do Racounteurs, presente no álbum) e digo que o conceito do disco, desde o título ao repertório, soa depressivo. Enquanto toca “(Are You) The One That I’ve Been Waiting for?” na guitarra, ele corrige: “Não é depressivo, é melancólico. Essa música do Nick Cave é uma canção de amor, e olha as palavras que ele escolhe. Em ‘Dancing Barefoot’, a Patti Smith coloca o amor como se fosse um vício”.

Já no portão de casa, Dinho descreve seu dia-a-dia: ele frequenta a academia sempre que está em São Paulo; como costuma dormir tarde, chega à academia por volta das 11h. O percurso é todo feito de bicicleta: são cerca de 3 km e, no trajeto, cumprimenta as pessoas e tem a sensação de estar no interior. “Nessa esquina fica o Chiquinho. É um pedinte, são-paulino também! Nós sempre conversamos. Um dia ele comentou que o filho dele queria tocar violão. Dei um violão para ele e o moleque manda muito bem”, conta. “Os guardas de trânsito me conhecem, pedem discos, mas eu nunca me lembro de trazer.” A rotina de exercícios faz parte da busca pela melhora na condição física, já que o acidente impôs limitações. Ele ainda não voltou à forma normal, não consegue correr as mesmas distâncias com a intensidade que impunha ao exercício antes – o que não o impede de sonhar com um futuro glorioso no asfalto. “Gostaria de, um dia, conseguir correr uma São Silvestre. O único problema é que essa bosta de corrida é no Réveillon. Quem corre no dia 31?”, brinca.

Outro capítulo importante para o atual momento de Dinho Ouro Preto é a relação com os filhos. Quando menciona as crianças, sorri e baixa a guarda por completo. “Minha filha do meio, a Bebel, é colega do Lucas Jagger [filho de Mick Jagger com a apresentadora Luciana Gimenez]. Ela chegou e falou: ‘Meu pai é rockstar’. E ele respondeu: ‘O meu também’. Perdi, não é? Não dá para concorrer com o cara”, diverte-se. Apesar da rotina de turnês e ausências que o trabalho cria, ele tenta estar presente sempre que possível – mesmo que de uma forma meio torta. “Está tendo uma rifa na escola dela. Pediram a discografia do Capital Inicial autografada. Mas, porra, também vai ter o Tattoo You autografado pelo Jagger! Comprei quase todas as rifas. Se eu não ganhar, vou tentar comprar o disco de quem ganhar.”

Hoje, Dinho diz estar em paz com ele mesmo e com a banda, faz questão de reiterar que abandonou as drogas e que é capaz de olhar para o passado com nostalgia – da mesma forma que observa os discos na parede de casa. Mais maduro, a única intenção do quase cinquentão é manter o foco para poder ter uma carreira ainda mais longa.

“Daqui a dez anos eu ainda serei 13 anos mais novo que o Mick Jagger. Quero estar fazendo a mesma coisa que ele”, afirma, entre a seriedade e a brincadeira. “Foram necessários 40 anos da minha vida para que pudesse... eu ia dizer para que eu pudesse me endireitar. Mas eu nunca vou me endireitar, certo?”