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No olho do furacão

Resistindo às polêmicas que envolvem o coletivo Fora do Eixo, Pablo Capilé pretende ir muito além

Gustavo Silva Publicado em 01/11/2013, às 11h49 - Atualizado às 13h03

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Ilustração - Índio San
Ilustração - Índio San

Trabalho escravo, calote, sexismo, apropriação, seita, estelionato, mau uso de dinheiro público: esses foram alguns dos termos associados ao coletivo Fora do Eixo em tempos recentes – mais precisamente depois que a entidade e seu líder e porta-voz, Pablo Capilé (“das coisas mais interessantes acontecendo no Brasil hoje”, segundo Caetano Veloso) ganharam visibilidade nacional durante o calor dos protestos de junho, por conta de uma aparição no programa Roda Vida, da TV Cultura. Pouco a pouco, o grupo – que ganhou forças realizando ações no campo da música e hoje se envolve com outros braços culturais e o midiativismo – viu-se em meio a um turbilhão incontrolável de críticas, acusações e denúncias feitas por ex-membros, ex-parceiros, músicos, credores e palpiteiros em geral.

Da distância onde Capilé se ajeita em uma das salas da Casa Fora do Eixo, misto de residência coletiva e QG do grupo, na zona sul de São Paulo, pouco se nota dos traços físicos dele durante mais um compromisso de uma “semana corrida”. A entrevista para uma dupla de repórteres interessada em saber mais e esclarecer polêmicas a respeito do Fora do Eixo é longa e, do meu ponto de vista de observador passivo, entediante – ainda que instrutiva nas sutilezas. O entrevistado, personagem que visualmente seria material para sites satíricos como “hipster ou mendigo” (por causa da vestimenta largada) e “hipster ou cobrador” (por causa do bigode ralo), alterna posições na poltrona enquanto responde a uma série de perguntas incisivas. Pernas e pés mantêm-se inquietos na maior parte do tempo. Cigarros são acesos e bitucas atiradas pela janela sem cerimônia. A voz, que preenche o espaço como se fosse usada em um palanque, não dá sinais de ser afetada pelo fumo. O detalhe mais significativo é a construção das frases, todas indicando um coletivo. O “eu” cede espaço para “o grupo” e outras variações. Opiniões e visões pessoais não fazem parte do discurso – tudo soa institucional. Pablo Capilé, 34 anos, cumpre bem o papel de porta-voz do Fora do Eixo. Líder, chefe ou qualquer outro termo que denomina uma superioridade hierárquica são recusados por ele, pois a rede é, de acordo com quem a integra, formada por lideranças espalhadas, seguindo uma linha de comando e de decisões horizontais.

Após a saída dos repórteres, Capilé me pede cinco minutos antes de iniciarmos nossa conversa, uma hora e meia depois do planejado. O triplo do tempo é gasto na tentativa de ligar um Macbook cuja bateria tem dificuldades em se manter funcional. A maior preocupação dele agora é checar a repercussão de mais uma matéria crítica ao modus operandi do movimento, escrita por um jornalista ex-integrante do Fora do Eixo, e avaliada por Capilé como “sacana, passional e movida por rancor”. Mão no queixo, postura curva, olhar pensativo. Vem o barulho das teclas. Estava claro que uma entrevista naquele momento não renderia em nada. Até que outro encontro fosse possível, quase um mês já haveria se passado.

Os holofotes sob os quais se encontram o Fora do Eixo, contudo, ainda parecem ser os mesmos que iluminam a principal voz do grupo. Pablo Capilé e o coletivo se tornaram sinônimos em reportagens e em redes sociais, e partilham hoje de atenção equivalente – ainda que usar da expressão “a cara do movimento” seja um atestado movido por uma curiosidade quase mórbida de quem foi apresentado a ambos há pouco. Digite “Pablo Capilé” no Google e o recurso autocompletar sugere as pesquisas mais populares: doença e boca. A rede de coletivos, formada por mais de 200 grupos espalhados pelo Brasil, totalizando 2 mil pessoas e que atua há dez anos desde sua criação, parece ter sido personificada em um só elemento. Afinal, Pablo Capilé e o Fora do Eixo são ou não a mesma coisa?

"Essa é uma questão que é muito mais uma projeção do recorte que você quer fazer de ouvidoria do que propriamente uma realidade”, ele mesmo contesta, uma semana após nosso primeiro encontro, falando por telefone Picos (Piauí), em meio a mais uma “coluna” (“pegar um carro e passar em algumas cidades para conhecer a realidade delas e conversar com as pessoas”). “Essa discussão em meio a uma histeria deixa os temas superficiais, aí as pessoas somam muito rápido determinadas coisas e não se preocupam em aprofundá-las”, completa.


Tudo começou na pequena São José da Boa Vista, no Paraná, quando o paulista Antonio da Silva Pompeo teve uma ideia que lhe renderia uma história: criou um medicamento para curar infecções que, acompanhado de cachaça, reza o conto, funcionava também como um anti-inflamatório sanguíneo. A invenção, feita à base de xarope de avenca – uma espécie de samambaia cujo nome científico é Adiantum capillus veneris –, ganhou nome popular pelo qual o criador também passou a ser conhecido: Capilé. Foi quando nasceu o primeiro filho de Antonio, Manoel, que o apelido foi oficializado como sobrenome, posteriormente tornando-se tradicional em certas regiões do Mato Grosso, onde a família se estabeleceu.

Mais de um século separam Pablo – hoje o herdeiro de maior visibilidade da família – daquela primeira geração dos Capilé. Ele não se isolou de traços históricos comuns dispersos entre as centenas de parentes: a última bancada regional de jurados do Prêmio Anu, realizado pela Central Única de Favelas, conta com quatro Capilés (Pablo incluso) em sua composição, o que ilustra a relevância do clã nos meios socioculturais. A vida de João Augusto, o Sinjão, avô de Pablo, é a que melhor representa a faceta política da família: prefeito de Dourados (MT) nos anos 40, ocupou em décadas seguintes diversos cargos no estado. Do alto dos 98 anos, ele revê uma carreira pública que envolve, entre outros feitos, a fundação de novas cidades, e um legado particular que moldou gerações posteriores. “Meu avô optou em não conceder aos filhos posses, mas sim conhecimento”, conta Fabio Arthur Capilé, um primo de Pablo.

O ambiente familiar contribuiu muito na formação pessoal de Pablo Capilé – uma vida de classe média com livros, discos e filmes sempre acessíveis e hábitos de leitura incentivados. Mas a genética também cumpriu com seu papel – de maneira direta. “O Pablo nasceu com o hemangioma herdado da minha avó, que provocou um glaucoma no olho esquerdo cujo tratamento incluiu cirurgias”, explica a mãe dele, Marina Tereza. A má-formação dos vasos sanguíneos é visível no inchaço no lábio inferior e em manchas pelo rosto. “Eu me antecipava, e tinha um campo de observação em torno de qual era a reação das pessoas, mas consegui superar isso ainda na infância”, Pablo relembra. “Quando consegui superar, isso fez que eu acreditasse mais em um monte de coisas e que fosse possível fazê-las.”


Os feitos de Pablo dos tempos de criança são tão relevantes quanto uma infância normal permite que sejam – estudos, teatro na escola, brincadeiras com familiares no sítio do avô e futebol (“ele era fanático pelo Vasco, deixava de brincar para ver os jogos”, entrega o primo). Foi o início da maioridade que marca realizações que ecoam até hoje. “O surgimento do Fora do Eixo tem a ver com o Monza do Pablo”, comenta Rafael Rolim, ex-membro do coletivo. O que em 2005 se transforma no Fora do Eixo é fruto de uma iniciativa, em Cuiabá, denominada Cubo Mágico, uma produtora de audiovisual em que parte da estrutura – casa, reformas, equipamentos, estúdio – fora parcialmente bancada com a venda do carro de Capilé, um presente da família. “Ele começa a ser admirado por ser o rico que saiu de casa e largou o conforto para se dedicar a esse espaço”, aponta Fábio Arthur sobre a decisão que ressona como um mito. “Eu mesmo trouxe 50 pessoas para a rede, porque ia às cidades contar sobre esse surgimento”, completa Rolim. “Tem o causo, a historinha infalível, que faz parte do processo mágico, visionário, lá em Cuiabá.”

À medida em que o Cubo Mágico se desenvolve, novos elementos aparecem em cena na mesma medida em que uma nova cena alternativa local floresce. “Eu conheci o Pablo muito antes da música, a gente jogava bola junto no condomínio quando era criança”, diz o guitarrista Bruno Kayapy. “Fazia uns cinco, seis anos que não o via, mas meu irmão ensaiava no estúdio do Cubo Mágico. No fim acabei indo tocar no [grupo] Donalua.” A carreira da banda não foi duradoura, mas teve tempo suficiente para deixar marcas: Capilé, então o vocalista, nunca mais assumiu um papel ativo na música enquanto membro; a bateria, posto de Douglas Godoy (hoje no Vanguart), veio a ser ocupada depois por um brasiliense chamado Ynayã Benthroldo. Com o encaixe do baixista Ney Hugo, nascia o Macaco Bong, banda que seria o expoente máximo da interligação entre a música e os ideais propagados pelo Fora do Eixo com o álbum-manifesto Artista Igual Pedreiro, mas também símbolo das divergências dentro do processo. A banda segue atualmente apenas com Kayapy, sem ligação alguma com o Fora do Eixo, enquanto os dois ex-integrantes ainda são parte da rede.

As atividades do Cubo Mágico fizeram com que o coletivo fosse notado em outras esferas regionais. “Eles não tinham muito interesse nesse papo de política, a jogada deles era mais mercado – produzir artistas, obras, e colocar pra vender – então os chamei pra dentro da discussão política”, conta Mário Olímpio, produtor cultural então envolvido na organização do Fórum de Cultura Matogrossense. Olímpio e o Cubo Mágico articulam-se efetivamente em Cuiabá, de tal forma que o primeiro foi convidado a ser secretário de cultura na cidade – cargo que assumiu por cinco anos – enquanto o Cubo Mágico evoluiu e se tornou o Espaço Cubo, de penetração além das fronteiras locais. “Éramos tão fortes que tivemos um poder muito grande na indicação do futuro secretário de cultura do estado”, diz Olímpio, que relata que posteriormente Capilé foi convidado para assumir cargos de coordenação na secretaria. “Ele nunca aceitou”, conta.

“Se a gente concentra tudo no Estado, se transforma no Estado”, Capilé explica, negando interesse em qualquer cargo público – apesar de atualmente circular bem em Brasília e com certo trânsito entre políticos, inclusive já tendo encontrado o ex-presidente Lula e a atual, Dilma Rousseff. “É mais interessante você ter um movimento social que está o tempo inteiro dialogando e fazendo pressão do que você se transformar no Estado.” Grande parte das críticas à gestão do Fora do Eixo, ele crê, ocorre porque “as pessoas acham que o Fora do Eixo tem de ser o Estado”. “Parte significativa das reclamações que os músicos fazem a nós deveriam fazer pra Funarte, pro Ministério da Cultura. Estamos tentando contribuir pra acelerar os processos, mas quem tem que fazer acontecer, dar mais condições, melhor estrutura, são esses órgãos. Tentar imputar essa culpa ao Fora do Eixo é uma besteira. Quando se criminaliza o Fora do Eixo não é um problema para o grupo, mas para a música brasileira.”

Seja sentado em posições estranhas na poltrona da Casa Fora do Eixo, seja via telefone no interior do Piauí ou na TV, Pablo Capilé exibe uma liderança natural e uma capacidade argumentativa que, não por acaso, o levaram a ser associado ao adjetivo “messiânico”. Usa um português quase impecável na mesma medida que coloca “saca?” ao final de quase toda oração, seja para enfatizar, seja para garantir a compreensão do ouvinte. Mas não se trata de uma questão de carisma pessoal. Não há a menor beleza física envolvida (o que não o impede de ser um bem-sucedido galanteador, contam alguns) e não há um jeito extrovertido (a educação e a simpatia são alheias a sorrisos e a qualquer descontração, ponto baseado em um total de quase quatro horas de conversas). O segredo de Pablo é a rapidez de raciocínio e uma inteligência não acadêmica (ele estudou direito e publicidade sem concluir nenhum dos cursos) que obriga o interlocutor a aceitar que as críticas em questão nada mais são que pontos particulares guiados por ideologia, idiossincrasia, ou problemas que devem ser relativizados.


Dívidas? Capilé se explica: “Quem que não deve? O X da questão é que a Globo deve R$ 500 milhões e a gente R$ 60 mil. Analisa: como é que a gente vai criminalizar de tal forma essa dívida sabendo que o Brasil e todo mundo deve pra caralho? No Brasil, a galera da produção cultural não é caloteira, é administradora de dívidas. Falta investimento público na cultura no Brasil.”

E o fato de Lobão ter composto uma canção dedicada ao Fora do Eixo e a apresentá-la como “um roquinho feito para o punheteiro de pau mole em geral e para o Capilé em especial”? “Assim como no caso do Reinaldo de Azevedo [colunista da revista Veja], estar do lado oposto do Lobão no debate é uma honra”, afirma Capilé. Mas o Lobão não havia ajudado o cenário independente com a Outracoisa, revista que lançava os CDs de grupos independentes? “Isso foi legal pra caralho, mas foi só um lapso. Ele é um babaca”, retruca.

E as acusações de mau uso de verbas públicas? “Se fosse pra ficar rico, a gente estaria produzindo show internacional, prestando consultoria pra um monte de gente. Cachê é um problema da distribuição de renda no Brasil. Está todo mundo recebendo muito mais recurso público que a gente. É uma puta hipocrisia esse debate. Em sete anos a gente capta R$ 1 milhão em Lei Rouanet e tem fundação que capta R$ 60 milhões todo ano.” (Capilé declara ter como bens pessoais apenas um laptop e um celular – que, seguindo os preceitos do coletivismo do Fora do Eixo, pertencem à rede. Quando não dorme em um dos beliches da Casa – que tem uma população flutuante que chega até 30 moradores – ou em um dos quartos com cama de casal que “são usados de acordo com a necessidade”, ele está viajando pelo Brasil. Bruno Kayapy define, aos risos: “Pablo e enriquecimento ilícito? Mas ele é um fodido!”)

E como Capilé enxerga as críticas em geral? Aparentemente, com tranquilidade. “Muito do que está sendo levantado agora já foi discutido por nós há uns dois anos, e muitos dos problemas apontados já estão sendo solucionados”, diz, com a expressão serena.

Dificilmente o funcionamento, o financiamento e os ideais do coletivo Fora do Eixo deixarão os holofotes do escrutínio público, especialmente porque, de acordo com Pablo Capilé, “o movimento não vai parar, ele só vai crescer”. “Desde o início de todas as polêmicas, ninguém saiu da Casa, e em breve vamos lançar um edital de vivência. Já recebemos mais de 2 mil e-mails de gente interessada”, ele afirma sem soar pretensioso, um caso curiosamente raro de um indivíduo com personalidade marcante desassociada de ego.

O Fora do Eixo é um amálgama de várias vozes, e frentes – a Mídia Ninja, na comunicação, e a Rede Brasil de Festivais, na música, caminham rumo à autonomia total em relação ao coletivo no futuro, aponta Capilé –, que encanta vários públicos, por razões das mais variadas. A voz dele nesse organismo varia de acordo com a narrativa escolhida. A oficial prega que há lideranças, no plural, e dentro dessa linha há um discurso interno sobre uma “segunda geração” que surge cada vez mais forte. A narrativa familiar é insípida (“Sempre notei o espírito de liderança dele em todos os locais que ele frequentava”, diz a mãe, Maria Tereza). Já as vozes dissidentes são críticas. “O Pablo é o Fora do Eixo; aquilo não é uma rede, mas uma pirâmide”, afirma enfaticamente Mário Olímpio – uma visão partilhada por Rafael Rolim, Bruno Kayapy e outros ex-membros da rede.

Pablo Capilé é uma espécie de Luís XIV pós-moderno da estrada. A afirmação “O Fora do Eixo sou eu!”, nesse contexto, não indica a ideia do poder absoluto, mas sim a fusão completa da pessoa com os ideais de um movimento que, ele próprio define, tem como o cerne para sua compreensão “o ineditismo, as novas alternativas propostas e a riqueza estética e antropológica” – ou seja, uma complexidade ainda difícil de ser compreendida. A linha que separa criador de criatura se torna nebulosa à revelia da própria vontade. Já aconteceu uma vez, quando o ancestral de Pablo, Antonio da Silva Pompeu, fez do xarope Capilé seu legado de vida. Seria a história se repetindo?

“O que há é uma consciência de que há vários ciclos que começam e se encerram em uma rede como a nossa”, Capilé contesta, calma e diplomaticamente, sobre se cogitara a possibilidade de se afastar. “Acho que o mundo é grande o suficiente para ter vários outros desafios a serem enfrentados e a rede já é forte o suficiente. Eu, em breve, vou dar conta de outros ciclos. Eu não sei se vai ser agora, se vai ser daqui a um, dois anos. O que eu sei é que outras redes, outros movimentos, outras articulações vão ser puxados para além do Fora do Eixo, vindos de mim.”