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O renascimento de Marshall Mathers

Sóbrio e grande como sempre, Eminem reflete sobre uma vida dedicada ao hip-hop

Brian Hiatt | Tradução: Ana Ban Publicado em 10/02/2014, às 08h45 - Atualizado em 13/03/2014, às 15h10

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EM PAZ
Eminem em Detroit, em outubro último - Mark Seliger
EM PAZ Eminem em Detroit, em outubro último - Mark Seliger

Não dá para ver direito por baixo do bonezinho militar preto que Eminem está usando nesta tarde. Mas, pela primeira vez em mais ou menos meia década, o rapper retomou o visual loiro platinado de Slim Shady que ele renegou depois de vencer uma batalha quase fatal contra o vício em remédios. Depois da desintoxicação, o seletor emocional interno de Eminem parecia estar levemente emperrado na posição “determinação implacável”, mas agora o humor dele é brincalhão para deixar qualquer um desarmado. No decorrer de uma longa conversa, ele começa a imitar Yoda, despeja em ritmo de rap uma parte de “My Name Is”, dá risada, sorri, tira sarro de si mesmo – coisas que as pessoas achavam que ele havia deixado para trás.

Eminem está fazendo um intervalo nas mixagens do álbum The Marshall Mathers LP 2 (lançado em novembro), em seu estúdio instalado em um complexo de galpões em um subúrbio de Detroit, onde fliperamas das antigas se enfileiram em uma parede (Mortal Kombat é o único que de fato parece estar funcionando), TMZ e Judge Judy passam na TV da sala da frente e compilações de gibis da Marvel são fornecidas como leitura de banheiro. Eminem está esparramado em uma cadeira ergonômica na sala do empresário Paul Rosenberg, com uma garrafa de água e uma lata de energético diet a seus pés. Veste uma camiseta branca bem passada, bermuda cargo que vai até abaixo dos joelhos e tênis Nike Air Max 1 branco e azul de cano baixo, ainda com as etiquetas. Há uma corrente de prata ao redor do pescoço dele. A forma física de Eminem é fantástica, com bíceps enormes que quase não combinam com o rosto ainda sem rugas – ele está com 41 anos, mas não aparenta. Na parede acima de sua cabeça, há um quadro enorme da capa do álbum Paul’s Boutique, do Beastie Boys; uma cabeça em tamanho natural de Venom, o vilão do Homem-Aranha, com uma língua gigantesca, tem lugar de honra na mesa de Rosenberg.

Passadas duas horas, o empresário chega com seis mixes diferentes para a música “Rap God”, para Eminem escolher um. Uma expressão de agitação genuína passa por seu rosto – ele achava que já estava com o trabalho do dia quase terminado. Então, o rapper joga as mãos para cima, fingindo irritação, e levanta da cadeira com um salto. “Já deu”, ele diz e abre um sorriso sacana. “Vou voltar às drogas!”

Como foi olhar no espelho e voltar a ver o cabelo loiro de antigamente?

Parecia que eu tinha tido uma recaída nas drogas. Foi meio arrepiante. É certeza que passei uns momentos bem ruins com aquela merda [de cabelo], principalmente por tomar um monte de comprimidos e babar em cima de mim mesmo. Foi um tempo de merda, e acho que ficar de cara limpa e devolver a cor normal ao meu cabelo significou lavar as mãos de tudo aquilo. Voltar a tingir provavelmente teria sido ruim para mim um ou dois anos depois daquilo. Mas agora estou me sentindo mais à vontade com a sobriedade. Fez sentido quando as músicas começaram a ganhar forma, então eu simplesmente pensei: “Que se foda”.

Você parece menos intenso neste disco do que em Recovery (2010). Talvez mais feliz, talvez mais como era antigamente.

Acho que talvez eu tenha ficado muito alegre ou muito piadista ou muito abobado em Relapse [álbum de 2009]. Tudo era piada: sotaques, umas merdas engraçadas, umas merdas só para chocar, toda a merda que eu, tipo, despejei. E daí Recovery foi assim: “Deixa eu tentar ser sério por um minuto, deixa eu voltar a fazer músicas que têm alguma sensação de verdade”. Mas, depois, fazer o EP Bad Meets Evil [colaboração com Royce da 5’9” ] começou a abrir a minha cabeça de verdade. Fiquei mais uma vez com a sensação de fazer música sem restrições.

E parece que a sua vida recente tem sido bem menos dramática do que no período anterior a Relapse e Recovery.

Neste disco, não estou saindo de uma overdose, sabe como é? E não acabei de perder Proof [rapper assassinado em 2006], um dos melhores amigos que tive na vida. Aqueles períodos foram brutais pra caralho, e essas eram as coisas de que eu precisava tratar em Recovery, que, acho, foram terapêuticas para mim. Sabe, sinto saudade de Proof todos os dias e eu o amo e queria que ele estivesse aqui o tempo todo. Mas aquele simplesmente foi um período diferente.

Você anda feliz de verdade ultimamente?

Estou o mais feliz possível, acho.

A letra de “Survival” sugere que você nunca vai se aposentar. É assim que pensa agora?

No que diz respeito ao hip-hop, parte de mim sente que eu posso continuar fazendo isso até quando quiser. Pode ser que depois eu queira só ficar produzindo. Parte de mim sente que um dia eu vou querer ficar por trás dos panos, só fazendo música. Então, independentemente de eu largar ou não o microfone, sempre quero estar envolvido com música. Faz o tempo passar [risos]. Ou melhor, meio que ocupa todo o tempo. Mas todo mundo tem uns dias em que pensa: “Caralho, cara, eu nem quero mais fazer isso”.

Você quase morreu de overdose de metadona. Ficou com alguma sequela física por causa das drogas e da overdose? Tem algo que persiste ou alguma coisa preocupante?

Acho que não. Eu sei que provavelmente devo ter reduzido a minha vida em alguns anos. Tive sorte, com toda a certeza. Mas acho que o meu TOC [transtorno obssessivo-compulsivo] está piorando.

Você que fez o diagnóstico do seu TOC ou um médico de fato disse que você tem TOC?

Eu é que me diagnostiquei. Eu poderia dar uma de joão-sem-braço e dizer que é por causa da música, mas não é. Quando fiquei sóbrio, comecei a reparar em umas merdas em mim mesmo. Tipo, se eu corresse na esteira, se tivesse enfiado na cabeça que precisava queimar 500 calorias, eu fazia exatamente esse número. Parte de mim fica se perguntando: “Será que faço isso porque tenho TOC ou porque não quero ser uma pessoa que desiste das coisas?” Mas daí eu fico lá zoando com a bateria durante duas horas na mesa de mixagem. Pensando: “Caralho, o som desta caixa está errado”. Então, eu não sei se isso sempre existiu ou se foi reprimido pelas drogas.

Você tem TOC em relação a limpeza? Precisa que a sua casa esteja sempre certinha?

Na verdade, não.

Então talvez você não tenha TOC.

Não sei se algum outro rapper fica tipo: “Yo, a gente precisa subir um decibel naquela nota aguda” – isso é, tipo, a menor medida de decibéis possível. A maior parte das pessoas provavelmente nem ia ouvir um decibel. Mas eu fico lá: “Não, tem que ter a relação exatamente certa com a caixa e o vocal”. É aí que eu me deixo levar. Alguém precisa literalmente chegar e arrancar a porra do disco da minha mão, porque eu não paro de mexer. E é provável que ninguém ouça a diferença.

Você já deixou claro, inúmeras vezes, que na verdade não tem problema nenhum com gays. Então, por que o uso da palavra “faggot” [bicha, viado] em 2013? Por que usar “gay-looking” [jeito de gay] como insulto em “Rap God”?

Não sei como responder a essa pergunta sem ser do jeito que já respondi um milhão de vezes antes. Mas essa palavra, esse tipo de palavra, quando eu fazia batalha de rap ou sei lá o quê, nunca realmente relacionei essas palavras...

Com o significado real de “homossexual”?

É. Era mais como xingar alguém de puta, ou de moleque, ou de cuzão. Então, essa palavra simplesmente era proferida com muita liberdade naquela época. Remonta àquela batalha, fica indo e vindo na minha cabeça, é a vontade de querer sentir liberdade para dizer o que eu quiser, e depois [me preocupar com] o que pode ou não atingir as pessoas. E, sem dizer se é certo ou errado, mas a esta altura da minha carreira... cara, eu falo tanta merda só de sacanagem. Eu tiro sarro dos outros, de mim mesmo. Mas o verdadeiro eu que está aqui sentado conversando com você não tem absolutamente nenhum problema com gay, hétero, transexual. Fico feliz por vivermos em um tempo em que realmente está começando a parecer que cada um pode ter a sua vida e se expressar. E não sei de que outra maneira posso dizer isso, ainda me vejo do mesmo jeito que me via quando participava das batalhas e não tinha um centavo no bolso.

Eu meio achava que você fazia isso porque, quando faz rap na pele de Slim Shady, parte da sua missão é irritar as pessoas.

Bom, olha, eu faço esta merda há quanto tempo, 14 anos agora? E acho que as pessoas sabem qual é a minha posição pessoal a respeito das coisas e os personagens que crio na minha música. E, se alguém até agora não entendeu, acho que não posso fazer nada para que essas pessoas mudem de ideia.

Você se lembra quando foi que o abuso de substâncias começou?

Já no começo da carreira, quando tudo começou a acontecer muito rápido. Acho que foi mais bebida do que qualquer outra coisa. Eu usava mais como uma muleta para a ansiedade de subir no palco. Antes, eu nunca precisava disso quando me apresentava em clubes por Detroit – tinha, no máximo, umas 200 pessoas. Mas aí eram 10 mil pessoas. “Caralho! Mas que porra é esta?” Era para levar essas sensações embora. Não estou dizendo que nunca teria me tornado um viciado se não fosse famoso. Eu obviamente tenho as características de propensão ao vício. Mas era mais assim: “Preciso disto para subir no palco... não consigo segurar tanta gente olhando para mim”. Então, o que acontece é você fazer isso seis, sete dias por semana, porra. Aí o seu corpo começa a depender da substância química e você fica ainda mais ansioso só de pensar em não ter à disposição. Simplesmente foi coisa demais de uma vez só. Ser arrastado de um lugar para o outro e dar autógrafos e mais um monte de merda. Eu não entendia.

Você não gostava que olhassem para você antes mesmo de ficar famoso.

É mais a coisa do: “Será que esta pessoa quer brigar comigo?” A paranoia toda. Sempre brinco que esta é uma escolha de carreira dos infernos para alguém que na verdade não gosta de atenção.

Um dos seus vícios era em soníferos. Você sempre teve problema para dormir?

Acho que só aconteceu quando a minha carreira começou, quando assinei contrato com o Dre. Uma noite, quando estava na Califórnia, fiquei pensando que não estava dormindo para compor, queria dar o melhor de mim e impressionar Dre. Foi nos estágios iniciais de desenvolver meu problema com drogas e provavelmente meu problema com bebida, porque se eu não tivesse recorrido aos remédios teria me tornado um alcoólatra completo. Comecei a ter problema para dormir em primeiro lugar quando estava sentindo as pressões de ter que estar em lugares em um horário determinado para me apresentar – e estar pronto para dar o melhor de mim em tudo que eu fazia, porque todo mundo estava de olho. E, na minha cabeça fodida, eu ficava pensando: “Eles querem que você fracasse, Marshall. Estão de olho em você. Estão esperando o seu fracasso”.

Você dorme bem agora?

Na maior parte do tempo, acho que sim. Tem noites em que só fico lá deitado na cama, pensando: “Preciso levantar. Preciso anotar esta ideia para uma música”. Ainda uso caneta e papel porque, se tenho uma ideia, preciso escrever imediatamente. E não confio em um telefone – e se eu perder o telefone ou se ele, porra, deletar sem querer ou algo assim? Durante os dois anos inteiros que eu passei trabalhando neste álbum, andava por aí com caneta e papel, independentemente de eu precisar ou não.

A música “Rhyme or Reason” – que sampleia “Time of the Season”, do Zombies – sugere que o problema de verdade na sua vida era o fato de o seu pai não estar presente.

A esta altura, é um pouco mais irônico do que isso de fato. Tem mais a ver com a ideia de retomar antigos temas e assuntos. É simplesmente dizer: “Talvez, se os meus pais fossem de um certo jeito, eu não fosse tão fodido”.

Ao mesmo tempo, uma parte disso não foi a raiva que você direcionou a essa coisa enorme que faltava na sua vida?

Acho que foi mais o fato de eu ficar me mudando muito [de bairro]. Eu provavelmente tinha mais raiva disso, de sempre me sentir um merda por causa disso. Mas não sei se necessariamente ainda tenho raiva a esta altura. É mais pensar: “A puta pergunta: ‘Como você se chama? Quem é o seu pai?’”. Obviamente, eu preciso dizer alguma coisa.

Você nunca falou com o seu pai. Não seria um ponto final para você se pelo menos pudesse falar na cara dele o que pensa sobre ele?

Parte de mim talvez às vezes sinta isso. Mas realmente não é algo em que eu pense demais. E, quer dizer, está tudo bem comigo.

Você fala sobre perdoar a sua mãe na música “Headlights”. Uma parte disso simplesmente é ter ficado mais velho e ver as coisas de um jeito diferente?

É, a gente começa a ter perspectivas diferentes em certas coisas. Muita gente passa por muita coisa e não tem isto ou não tem aquilo na vida – e acho que o negócio é o que você faz a respeito. Hum, vou dizer o seguinte. Eu a amo porque é a minha mãe. Vou sempre amá-la por causa disso.

Antes, você disse que está “o mais feliz possível”. A sua vida é intensa e produtiva, mas um tanto fechada. Você trabalha, é pai, e basicamente é isso. Basta para você?

Não vou ficar falando: “Ah, porra, como eu sou feliz, eu sou um cara feliz!” Mas sou capaz de fazer o que amo. Tem algumas partes que eu não amo, mas estou vivendo o sonho que tentei realizar, no que diz respeito a fazer hip-hop. Estou satisfeito agora. Sei que a percepção é de que eu não saio muito ou que não faço coisas. Mas sou capaz de fazer algumas coisas comuns, do dia a dia. Não é como eu gostaria que fosse. Mas se faço alguma coisa ou se vou a algum lugar, eu simplesmente não divulgo. Não faço isso por causa da atenção – e eu sei que isso provavelmente parece ridículo –, mas a única coisa que eu sempre quis, de verdade, meu sonho máximo, é ser respeitado por outros MCs, os meus colegas, fazer [o rapper] KRS-One dizer: “Yo, isso é uma loucura”.