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Por que já passou da hora de parar de romantizarmos a Lolita? [ANÁLISE]

Com adaptações cinematográficas de Stanley Kubrick e Adrian Lyne, história de abuso sexual foi vendida como uma avassaladora paixão - e fortalece a cultura do estupro

Larissa Catharine Oliveira | @whosanniecarol Publicado em 20/11/2020, às 12h00

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Dominique Swain como Lolita em 1997 (Foto: Reprodução)
Dominique Swain como Lolita em 1997 (Foto: Reprodução)

Lolita narra um caso de sequestro e pedofilia. É importante enfatizar esse fato sobre a história criada pelo autor Vladimir Nabokov logo de cara. A história do aliciamento e abuso sexual de Dolores Haze, de 12 anos de idade, foi sempre contada pelo ponto de vista do predador Humbert Humbert, fosse no livro ou nas duas adaptações cinematográficas de Stanley Kubrick (1962) e Adrian Lyne (1997).

Publicado em 1955, o livro foi assimilado pela cultura pop como um romance. Narrado pelo predador sexual, a realidade e fantasia doentia do professor de literatura se confundem e o tornam indigno de confiança. Desde a primeira página, o leitor é colocado na condição de cúmplice de um relato que tenta, a todo momento, justificar o comportamento do abusador e colocar Lolita na posição de uma pequena sedutora, algo reproduzido em ambos os filmes baseados na obra. As mais de 300 páginas mostram o comportamento abusivo do narrador, mas a absorção da história como de amor por parte considerável do público prova que não foi o suficiente. 

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Na visão de Kubrick, com o próprio Nabokov no roteiro, Humbert Humbert foi retratado como um homem de meia-idade quase socialmente inapto, longe do perfil manipulador e charmoso do personagem na literatura. A Lolita interpretada por Sue Lyon, com 16 anos na época, é retratada de maneira adultizada e, mesmo sem cenas dos abusos propriamente ditos, o filme causou grande polêmica, assim como a adaptação seguinte. Lyne apresentou uma versão ainda mais fiel aos fatos narrados no livro e, por isso mesmo, ainda mais problemática. O ritmo febril e as cenas quase oníricas descritas por Humbert se traduzem na tela com bom gosto estético e trilha sonora grandiosa. Dominique Swain, com 17 anos, aparece com comportamento mais próximo ao da Dolores infantil e moleca das páginas, filmada em diversos takes sugestivos. No filme de 1997, o público não é poupado das cenas de abuso - apesar disso, o longa ainda foi vendido como o retrato de uma avassaladora paixão, e os protagonistas foram indicados na categoria de Melhor Beijo na premiação MTV Movie Awards. 

Humbert Humbert e Lolita (Sue Loye) no filme de Kubrick (Foto: Reprodução)

Lolita rapidamente se tornou parte integral da cultura pop. O impacto cultural foi tamanho que o apelido da personagem se tornou um termo comum para descrever as “novinhas” do imaginário coletivo e relacionamentos entre jovens mulheres e homens mais velhos, como quando Marilyn Manson usou referências do filme para contracenar com Evan Rachel Wood no clipe de “Heart-Shaped Glasses”. Na época, o rockstar tinha 38 anos e a namorada apenas 19. Para as gerações mais novas, Lana del Rey apresentou a versão romantizada da história no primeiro álbum, Born to Die (2012), com histórias sobre romances conturbados com homens mais velhos. “Não me importo com o que dizem sobre mim / Porque sei que é A-M-O-R”, canta em “Lolita”

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Pôster de Lolita de Kubrick (Foto: Divulgação), Evan Rachel Wood em "Heart-Shaped Glasses" (Foto: Reprodução/Youtube) e Lana del Rey em 2012 (Foto: Divulgação)

A incorporação duradoura da imagem de Lolita no imaginário coletivo é o sintoma de uma sociedade machista e problemática, e foi chamada de Efeito Lolita por Meenakshi Gigi Durham, professora na Universidade de Iowa e autora do livro de mesmo nome. “O termo [Lolita] tornou-se uma alusão cotidiana, uma referência cultural simplista uma garotinha prematuramente sexualizada, mesmo que inadequadamente - isto é, uma garota que, pela definição jurídica, ainda não é um adulto e que, por esta razão, é impedida pela lei de ter uma atividade sexual”, descreve a autora no livro. Na lei brasileira, assim como em muitos países, não existe consensualidade com nenhuma garota menor de 14 anos de idade, e qualquer relacionamento do tipo é considerado como “estupro de vulnerável”. Mesmo se a vítima “consentir” - algo que é incapaz de fazer com total discernimento do ponto de vista psicológico e jurídico -, não há alteração no crime. 

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“O Efeito Lolita está presente nas revistas para adolescentes, nos programas de TV, nos shopping center, na pornografia e nas ruas”, continua Gigi. Não é exagero. Quando Britney Spears surgiu, com o hit “...Baby One More Time”, apareceu como uma colegial de rosto inocente, mas roupa e dança provocante. Na pornografia adulta, os termos mais pesquisados anualmente são “teen” (adolescente, em português) , segundo levantamento do Pornhub. Em 2019, a cosplayer Belle Delphine, sempre vestida de maneira infantil, esteve entre as maiores tendências do site pornográfico, no qual se encontra com facilidade vídeos que simulam sexo entre padrastos e enteadas, exatamente como acontece em Lolita. O site se tornou alvo de uma campanha por suposto conteúdo ilegal e vídeos de abusos sexuais reais este ano.

No Japão, existe um estilo de mangá chamado “Lolicon”, uma abreviação de “Complexo de Lolita”. Nesse tipo de produção, as personagens femininas, conhecidas como Lolis, possuem aparência e comportamento infantil, muitas vezes imitados por jovens reais que adotam esse apelido. De acordo com a BBC UK, as produções incluem sexualmente explícitas desse tipo de personagem. Existem fóruns ao redor do mundo dedicados a esse tipo de conteúdo. 

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É impossível responsabilizar a história de Lolita pela erotização da infância, afinal, essa é uma questão preexistente ao lançamento do livro. Mas a obra certamente contribuiu para a naturalização desse tipo de imagem na mídia convencional e, por consequência, dificultar o entendimento coletivo da natureza do abuso e exploração de crianças e adolescentes.

Na sociedade patriarcal, com misoginia refletida na cultura do estupro, o problema não está na abordagem do tema da pedofilia e abuso sexual. Pelo contrário, o tema é de grande importância e a presença dessa discussão na mídia é essencial para uma mudança social com relação a esses crimes. O grande desafio é abordar a problemática da maneira correta, com um esforço consciente para não deixar brechas à culpabilização da vítima e naturalização da ideia de que algumas meninas são, na verdade, ninfetas prontas para seduzir homens maduros. A segurança das crianças e mulheres depende da desconstrução desse entendimento.

 “O Efeito Lolita consiste em uma fantasia masculina e adulta da sexualidade das garotas da mesma forma que Lolita era objeto das fantasias de Humbert Humbert”, define Gigi. “Em essência, o Efeito Lolita é uma questão de direitos humanos e uma questão ética. Trata-se da liberdade das garotas de ter uma vida segura, controlada e saudável, livre de coerções e explorações”.  

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A naturalização de Lolita como uma história de amor contribui para a cultura do estupro e torna imagens erotizadas de crianças e jovens garotas mais aceitáveis no coletivo social, relativizando as violências sofridas por esse grupo. Passou da hora de combater essa romantização danosa com informação sobre abuso sexual infantil, apoio à educação sexual nas escolas e a desmitificação da imagem das “novinhas” vitimadas pelo machismo. Lolita narra um caso de pedofilia e não existe nenhum traço de romantismo ou amor, apenas um crime hediondo. 


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